Seis lançamentos em torno do bicentenário da Independência do Brasil

Mostra, série, filme e livros jogam luz sobre as contribuições de mulheres, negros e cidadãos comuns no processo de emancipação do país.


origin 15



Toda efeméride traz no seu rastro uma enxurrada de revisões críticas, novas miradas – e, é claro, lançamentos comerciais. Não é diferente neste bicentenário da Independência do Brasil, mote para uma programação intensa de novidades literárias e audiovisuais, além de uma ambiciosa exposição no Masp.

A liga que une boa parte dessas obras ou eventos é a da expansão do entendimento histórico convencional. Se Dom Pedro 1º não chega a sair de cena, ganham cores mais vívidas as contribuições de mulheres, negros e cidadãos comuns ao processo de emancipação do país, ainda muito pautado por uma perspectiva masculina, branca e sudestina.

Também adquirem relevo as contradições e pontos cegos de um momento-chave da formação da sociedade brasileira, com implicações que atravancam até hoje a materialização do ideal de liberdade para todos.

Veja abaixo a seleção de eventos e lançamentos em torno deste Sete de Setembro:


VEM AÍ | Independências, a nova dramaturgia na TV Cultura

www.youtube.com


Independências

Um dos grandes criadores do audiovisual brasileiro nos últimos 30 anos, Luiz Fernando Carvalho está no comando desta série de 16 capítulos que a TV Cultura começa a exibir no dia exato da efeméride (07.09), às 22h. Diretor de novelas de grande sucesso, como Renascer (1993) e O rei do gado (1996), e de minisséries incensadas pela crítica, como Os Maias (2001) e Hoje é dia de Maria (2005), ele se propõe aqui a apresentar uma visão alternativa dos fatos e personagens que ritmaram o processo de emancipação do Brasil em relação a Portugal. Nessa mirada – bem distante da eurocêntrica, branca e masculina consagrada pelos livros paradidáticos de história –, mulheres e negros ocupam posições de destaque, e a herança de autoritarismo, violência e escravidão da ex-colônia em transformação não é edulcorada. Carvalho descreve o trabalho como “uma escavação profunda”, na qual o público vai se deparar com fantasmas que ajudam a explicar o Brasil de 2022. O elenco combina nomes consagrados (e com os quais o criador carioca coleciona várias parcerias), como Antonio Fagundes (que interpreta Dom João 6º) e Walderez de Barros (D. Maria 1ª), com atores jovens, mas já tarimbados, como Daniel de Oliveira (Dom Pedro 1º) e Gabriel Leone (Dom Miguel). E o time de roteiristas conta com outro fiel escudeiro, Luis Alberto de Abreu, um dos maiores especialistas no teatro de raiz popular.


A Viagem de Pedro | Trailer oficial

www.youtube.com

A viagem de Pedro

Um monarca dilacerado entre Brasil e Portugal, entre a recém-independente nação de adoção e o reino europeu usurpado pelo irmão Miguel, entre a lembrança de Leopoldina, a falecida primeira mulher, e a premência de gerar novos descendentes com a nova companheira, Amélia. É esse Dom Pedro 1º, bem distante da imagem de heroísmo e virilidade cristalizada pela história oficial e pela iconografia do quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, que a diretora Laís Bodanzky pinta no filme recém-lançado. Depois de Tarcísio Meira em 1972 (Independência ou morte) e Marcos Palmeira em 1995 (Carlota Joaquina, Princesa do Brazil), cabe a Cauã Reymond (aqui também no papel de produtor) a responsabilidade de dar densidade e dimensão humana ao líder luso que, nove anos depois de declarar a independência do Brasil, aboleta-se em uma fragata no Atlântico rumo ao trono que supostamente ainda lhe é seu por direito. Conhecida pelo olhar sensível para relações familiares, burilado na última década em filmes como As melhores coisas do mundo (2010) e Como nossos pais (2017), Bodanzky se lança aqui também em mares desconhecidos. A viagem de Pedro é seu primeiro longa histórico. Ela diz ter se valido da quase inexistência de registros históricos sobre esse périplo transatlântico para imaginar livremente (com coerência factual, é claro) o que ia pela cabeça do monarca durante a travessia. Assim como a série Independências, o filme busca mostrar a riqueza de rostos, credos e culturas que compunham o caldo social brasileiro da primeira metade do século 19, problematizando a visão que fez o país equivaler (e se restringir) aos usos e costumes da corte.

image 165

Jota, Davi e Golias, 2021. MT Projetos de Arte, Rio de JaneiroFoto: Jaime Acioli

Histórias brasileiras

Depois de abrigar exposições marcantes de Abdias Nascimento e Luiz Zerbini nos primeiros meses de 2022, o Masp (Museu de Arte de São Paulo) atinge o clímax de sua agenda anual com estas Histórias Brasileiras, em cartaz até 30 de outubro. A mostra reúne mais de 400 peças, entre documentos, livros, mapas, bandeiras, pinturas, esculturas, fotografias, jornais, revistas, instalações, vídeos e desenhos, para tentar tomar o pulso do Brasil de 2022, quando o bicentenário da Independência coincide com o centenário da Semana de Arte Moderna e o centenário de morte do escritor Lima Barreto, entre outras efemérides. A ideia aqui é lançar luz sobre discursos, reflexões e grupos sociais que foram silenciados pelos “donos” da história oficial. O mastodôntico esforço de releitura crítica do caminho percorrido desde 1822 (11 curadores assinam a ficha do evento, dividido em dois andares e oito núcleos temáticos) quase foi torpedeado por fogo amigo: alguns meses antes da abertura da exposição, o museu vetou uma série de fotografias do Movimento dos Trabalhos Rurais Sem-Terra (MST). Uma curadora chegou a pedir demissão por causa da decisão, mas voltou atrás depois de o Masp reconsiderar a interdição. No conjunto apresentado, há espaço tanto para esse Brasil que ainda engatinha em matéria de justiça social (tema que certos setores gostariam que permanecesse na periferia do debate público, pouco ou nada visível) e o país mais palatável da exuberância natural e do hedonismo festeiro.

image 166

Foto: Divulgação


Adeus, senhor Portugal – Crise do absolutismo e a Independência do Brasil

Ventos liberais vindo da Europa iluminista e dos EUA recém-emancipados sopravam rumo ao Brasil no começo do século 19, é certo. Ou seja, os dias do Brasil colônia estavam contados. Mas uma enorme crise econômica poucas vezes lembrada também teve papel importante (senão mais decisivo) para pôr abaixo o castelo de cartas do absolutismo português. Eis o que sustentam Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira em Adeus, senhor Portugal (Companhia das Letras), que integra a leva de lançamentos em torno da efeméride bicentenária. O historiador e jornalista e o professor da Escola de Economia da FGV-SP mostram que, nos primeiros anos do século 19, as despesas exorbitantes da Coroa portuguesa, tanto no front tropical (onde a família real residia desde a fuga de 1808) quanto no europeu (palco das guerras napoleônicas), levaram a um endividamento quase inadministrável. Empréstimos foram tomados a baciadas no então recém-criado Banco do Brasil, impostos, reajustados, papel-moeda, impresso sem freio (o que pressionava a inflação). Enquanto isso, servidores recebiam calote – nada de salário. Essa conjunção de fatores esquentava os ânimos dos súditos da colônia-continente (em todos os andares da pirâmide) e fazia trepidar a autoridade da monarquia. A independência aqui toma antes de tudo ares de admissão de capitulação pelo poder luso.

image 167

Foto: Divulgação


O sequestro da Independência – Uma história da construção do mito de Sete de Setembro

A prolífica historiadora Lilia Moritz Schwarcz se alia aqui a Lúcia Klünk Stumpf e Carlos Lima Junior para tirar o véu mítico que cobre o imaginário em torno do processo de emancipação do Brasil. O trio sugere que a iconografia legada pelos eventos de 1822 sufocou contribuições e personagens que fugissem ao ideal branco, masculino e eurocêntrico da época – daí o “sequestro” do título. Ou seja: a formação do Brasil moderno vai muito além do tal “grito do Ipiranga” imortalizado pela tela colossal de Pedro Américo.

BÔNUS: Se a pedida é uma leitura mais desopilante, o novo livro de Ruy Castro agradará a quem tem uma queda por relatos históricos com pitadas de subversão e galhofa. Misturando pesquisa factual com imaginação delirante, Os perigos do Imperador – Um romance do Segundo Reinado (Companhia das Letras) avança no tempo em relação aos outros lançamentos deste bicentenário da Independência e apanha um Dom Pedro 2º já adulto, na segunda metade do século 19, em viagem pelos Estados Unidos. Ali se comemoram àquela altura os 100 anos da independência estadunidense. O imperador erra pela América enquanto, nas sombras, opositores entusiastas da República preparam um atentado. Sobra até para Sousândrade, o poeta romântico que, dois séculos depois, viraria um dos terrores dos vestibulandos da ainda jovem República.

image 168

Foto: Divulgação

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes