Chadwick Boseman e o legado para uma nova masculinidade

Como o herói da Marvel ou na vida discreta fora das telas, o astro de Pantera Negra mostrou que a força de um homem está muito além dos estereótipos de virilidade.


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É comum que pessoas digam coisas boas daqueles que partiram desse mundo. Então, atenho-me à leitura dos relatos em vida sobre a personalidade de um artista cuja partida comoveu a gregos e wakandianos de maneira uniforme, como há muito não se via. As referências a qualidades específicas do ator eram unanimidade entre seus colegas de trabalho, outro feito raro em se tratando de estrelas hollywoodianas. Gentileza, força, doçura, senso de humanidade, humildade, alegria, leveza, amorosidade são alguns dos adjetivos que pareciam ser facilmente captados nas descrições sobre ele.

Embora Chadwick Boseman tenha outros trabalhos bem-sucedidos, sempre interpretando grandes homens, do ponto de vista da popularidade ou da crítica especializada em cinema, foi a interpretação do impávido Rei T’Challa que o projetou direto das telas para o coração dos espectadores do mundo todo, que parecem ter assimilado, intuitivamente, todos os adjetivos enumerados pelos relatos de colegas do ator.


O que mais me chamou atenção no trabalho de Boseman foi uma característica que só grandes atores ou atrizes conseguem expressar sem comprometer a qualidade da atuação: a fusão de sua personalidade com a do personagem interpretado.

Isso não apenas garantiu a verossimilhança que sustentou a obra da Marvel, mas deu a “deixa” para todos os outros personagens brilharem com a mesma intensidade. A representatividade negra, tão almejada quanto necessária, foi garantida pela atuação do elenco todo, mas o legado do ator pode ser esmiuçado em assuntos pontuais e de extrema importância que vêm sendo debatidos fora das telas. Como a questão das masculinidades negras, por exemplo.

Seja pelas ações do Rei de Wakanda, sempre comprometidas com o bem-estar e dignidade do povo pelo qual era responsável, seja pelo relacionamento afetuoso com as mulheres de sua família, cuja escuta fortaleceu o personagem e deu segurança a suas decisões, ou ainda pela lealdade e respeito às escolhas da mulher amada, mediando a construção da relação que desejava com as necessidades profissionais dela, T’Challa apresentou uma nova vivência de masculinidade, mais próxima do que tanto almejamos.

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Chadwick Boseman, como T’Challa, em Pantera Negra: relação de afeto e cumplicidade com as mulheres.Foto Divulgação

É sabido, por aqueles que se debruçam no estudo sério dos efeitos das opressões raciais na vida de pessoas negras, que o racismo moldou as relações intra e intergrupos raciais de maneira profunda, além de descaracterizar o entendimento subjetivo e o reconhecimento da real personalidade das pessoas, negras e brancas. Como bem diz Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido, o hospedeiro do opressor (as ideias da branquitude) existe em cada pessoa negra, se fazendo presente, conscientemente ou não, em todas as ações e relações, desde as mais corriqueiras às mais complexas. Homens e mulheres negras formaram sua humanidade, sua cidadania, sua existência, sua psique a partir de uma lógica que suprimiu identidades verdadeiramente possíveis e as substituiu ao longo da história por uma ideia de humanidade que não serve nem às próprias pessoas brancas, pois é desumanizadora. Do mesmo modo, quando falamos nas questões de gênero, podemos observar que homens em geral, independentemente da raça a qual pertençam, foram moldados por um ideal de masculinidade trágico, sufocante e aniquilador de suas essências individuais e de tudo que constroem ou propõem. O feminismo jogou no colo da sociedade a necessidade de se discutir masculinidades, o que se faz a partir da pergunta crucial: o que é ser homem?

Embora as discussões estejam ainda incipientes, o herói negro da Marvel transitou com muita propriedade nessa seara transformadora, apresentando um homem negro poderoso, sereno, firme, gentil e sensível. Sensibilidade essa sempre descrita pelo machismo, que estruturou nossa sociedade, como uma característica indigna quando percebida no comportamento dos homens.

T’Challa não deixa dúvidas de que seu poder não é fálico, não é perverso e tampouco impositivo, mas fruto do respeito ao legado ancestral de seu povo e da assimilação da presença feminina em seu universo, não como figuras antagônicas, mas como colaboradoras indispensáveis na construção de uma potência única por e para a coletividade. E é esse fim de linha que mulheres esperam no mundo todo, como conclusão da árdua tarefa de questionar as toxicidades da masculinidade atual.

Chadwick mantinha uma postura que lembra em muito seu personagem. Reservado com sua vida pessoal, mas não anti-social. Em tempos de narcisismo social generalizado, onde muitos usam o que Bell Hooks descreve como “identidade vitimada” para chamar atenção, espetacularizando o sofrimento para angariar atenção e simpatia de um público condicionado a alimentar corpo e alma com conflitos e tragédias expostas sem critério pelas mídias em geral, manter-se longe dos holofotes é atitude de quem sabe que a vida não é só palco.

A verdade é que Chadwick Boseman fugiu completamente do estereótipo racista do “Negão” de força descomunal (e animalesca), que ostenta orgulhosamente as toxicidades da masculinidade eurocêntrica, avessa à sensibilidade, impregnado por uma virilidade caricata, por uma rudeza auto-sabotadora e por um desinteresse pelo humano que antecede a definição de ser mulher. O grande charme do ator era a aparência e modos que deixavam fluir uma delicadeza rara, uma força natural, uma serenidade que só as almas nobres conseguem cultivar. Com isso, plantou no imaginário de uma geração de crianças, que se apaixonaram pelo herói negro, a certeza de que ser homem é, antes de tudo, não negar a própria humanidade e dispor de sua força para reconstruir histórias marcadas por desvios e descaracterizações que colocaram muitos homens em um labirinto perigoso, onde todas as saídas apontam para o lado interior a ser compreendido e resgatado. Mais do que gritar palavras de ordem, Chadwick Boseman as incorporou e vivenciou, dentro e fora das telas.

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