Charlotte Rampling fala à ELLE sobre 60 anos de carreira, etarismo e moda

Atriz, que voltou ao cinema recentemente com "A matriarca" e "Duna: Parte 2", segue emendando trabalhos.


Charlotte Rampling



Charlotte Rampling nunca teve medo de provocar. Aos 78 anos, avessa a procedimentos estéticos, também não teve medo de envelhecer. Nem de filmes polêmicos, como Max mon amour (1986), de Nagisa Oshima, em que se apaixona por um chimpanzé, e O porteiro da Noite (1974), de Liliana Cavani, em que interpreta uma sobrevivente do Holocausto que vive uma relação sadomasoquista com um oficial nazista.

São 60 anos de uma profícua carreira como atriz, que inclui trabalhos com Luchino Visconti e Woody Allen, prêmios no festival de Berlim e Cannes, além de uma Ordem do Império Britânico. Em fevereiro, a inglesa voltou aos cinemas com o blockbuster Duna Parte 2 (2023), do canadense Denis Villeneuve, em que surge por trás de um véu como a Reverenda Madre Mohiam (o longa está disponível na Max). Em março, estreou nos cinemas brasileiros A matriarca (2021), de Matthew J. Saville, na pele de uma ex-fotógrafa de guerra (disponível na Claro TV+). E ela ainda tem quatro produções em que atuou para estrear.

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Além das telas, Charlotte mantém uma forte ligação com a moda. Nos anos 1960, foi um dos rostos da Swinging London, a efervescente cena britânica, trabalhando como modelo, antes de sua estreia no cinema com Georgy girl (1966), de Silvio Narizzano. Nas décadas seguintes, foi musa de fotógrafos como Helmut Newton, Peter Lindbergh e Juergen Teller para quem posou nua, aos 70 anos.
Transgressão parece ser uma palavra-chave para definir Charlotte, que, nos anos 1970, morou com dois homens simultaneamente (seu primeiro marido, Bryan Southcombe, e o modelo Randall Lawrence), o que rendeu muitas manchetes na época.

A seguir, os principais trechos da entrevista com a atriz, que falou de seu apartamento em Paris, onde vive há cinco décadas.

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Charlotte Rampling em Duna Foto: Reprodução

Nos últimos 25 anos, depois de uma pausa, você incluiu mais de 70 produções em seu currículo, entre longas, curtas-metragens e séries de TV. Você imaginava que trabalharia tanto nessa segunda fase da sua carreira?
Parece muita coisa, mas fiz participações pequenas em muitas dessas produções. Só aceito papeis que me interessam, sem me preocupar com o tamanho deles. Nunca poderia ter feito 70 filmes como protagonista. Alguns deles são bem estranhos. Gosto de coisas ousadas, interessantes. Sempre quis fazer longas em que pudesse contribuir por meio da minha atuação. Tem que ser algo especial. Nunca fiz um filme apenas por fazer. Preciso manter a chama acesa.

Em A matriarca, você interpreta Ruth, uma ex-fotógrafa de guerra. Enxerga algum paralelo entre o passado da personagem e o seu, como atriz?
De certa forma… (risos) Assim como eu, Ruth gosta de viver a vida ao máximo. E se você tem uma família, eles não vão gostar muito disso. Gosto de sentir que meus personagens têm uma vida paralela à minha. Sempre busco algo que traga um sentimento forte sobre o mundo em que vivemos. O cinema tem esse poder. Às vezes, você pode acabar se machucando, mas gosto de correr riscos e sair da minha zona de conforto.

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Charlotte Rampling, em 1974 Foto: Pino Grossetti/Mondadori via Getty Images

Em uma cena de A matriarca, os amigos de Sam, neto de Ruth, olham um álbum antigo com fotos de quando ela era jovem. Impressionados com a beleza dela, dizem: “Sua avó era hot”. Como você lida com esse seu passado?
A juventude é bonita e traz um grande poder, mas não precisamos buscar recriar isso. Tenho essa juventude dentro de mim o tempo todo. Se você está aberto a aprender coisas, não precisa se enfiar em um buraco. É o pensamento que faz você seguir em frente. É uma atitude. Não é fácil, mas escolhi esse caminho, e aqui estou eu.

Você já declarou diversas vezes que prefere trabalhar em filmes independentes, de preferência, europeus. Porém um dos seus longas recentes é o blockbuster Duna Parte 2. Como foi essa experiência?
Sempre preferi fazer filmes na Europa porque é onde me sinto mais próxima à cultura. Trabalhei nos Estados Unidos no início dos anos 1980, mas achei difícil. Apesar de falarmos a mesma língua, é um outro continente. Acho a cultura europeia fascinante. Adoro os diferentes países, com seus idiomas distintos. Tudo tão perto e tão misturado. Me sinto em casa. Preciso estar na minha zona de conforto quando estou interpretando, porque atuar já me leva para outros lugares. Duna é uma superprodução estadunidense, porém Denis Villeneuve é canadense, o que é bem diferente. É sempre uma questão de encontrar uma referência de alma. Acho que é aí que reside minha humanidade. Nasci na Inglaterra, mas me casei com um francês (o compositor Jean-Michel Jarre, com quem teve seu segundo filho). Vim para a França porque meu pai era militar e minha família foi transferida para cá. Para mim, não importa onde eu viva, desde que seja na Europa.

“Não tenho nada contra quem escolheu fazer procedimentos, mas minha opção foi não fazer. Algumas vezes, penso: ‘Ah, como eu era bonita quando jovem’. É preciso aceitar que isso faz parte do ciclo da vida.”

Você é avessa aos procedimentos estéticos. Como enxerga o etarismo na indústria cinematográfica?
Acho que isso faz parte do mundo em que vivemos. Fui envelhecendo junto com meus personagens, preciso sempre ter a mesma idade que elas. Nunca quis mudar minha aparência. Em A matriarca, o diretor havia imaginado que minha personagem deveria ter por volta de 80 anos. Disse a ele que não queria fazer uma personagem dez anos mais velha do que eu. Não gosto de fazer personagens com os quais não posso me identificar, e ele aceitou.  É dessa forma que consigo aprender algo sobre a vida.

Mas o que você pensa sobre o etarismo na indústria? É algo que você sentiu alguma vez na sua carreira?
Acredito que, quando você começa a mudar coisas no seu corpo, acaba perdendo uma parte de você. As coisas nunca mais serão as mesmas, e você sempre vai querer voltar em busca de mais. Sempre tive medo de seguir esse caminho. Você acaba se tornando uma versão diferente de você mesma. Então, optei por me deixar levar. Não tenho nada contra quem escolheu fazer procedimentos, mas minha opção foi não fazer. Algumas vezes, penso: “Ah, como eu era bonita quando jovem”. É preciso aceitar que isso faz parte do ciclo da vida.

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Desde o início de sua carreira, algumas das palavras mais usadas para definir suas escolhas foram ousadia, coragem e liberdade. Você se identifica com isso?
Ser uma pessoa destemida e livre são coisas que você tem que lutar para conquistar. Se começar a sentir medo, ele vai dominar você. Em relação aos meus filmes, se sinto algo por algum projeto e decido fazer, vou em frente. Não gosto de ficar pensando demais. Simplesmente me jogo. Não ter medo é isso: se jogar. Todos nós temos diferentes níveis de ansiedade e medo e, às vezes, não conseguimos lidar com isso. É necessário acreditar que alguma coisa mais forte irá nos proteger. Se você não se arriscar, ficará com medo de tudo. É preciso ter muita autoconfiança para ser uma pessoa destemida. Assim como Ruth. Para ser uma fotógrafa de guerra, é necessário ter bastante coragem.

Além de sua carreira como atriz, você sempre teve uma forte ligação com o universo da moda e da fotografia. Sei que entre seus fotógrafos favoritos estão três alemães: Juergen Teller, Helmut Newton e Peter Lindbergh. Como é sua relação com a fotografia?
Você citou meus três fotógrafos favoritos. Fiz um documentário bem interessante com uma cineasta alemã sobre a minha relação com a fotografia (Charlotte Rampling: The Look, de 2011, dirigido por Angelina Maccarone). Gosto de fazer fotos porque você é pega em movimento. Freeze frame! É uma arte que permite uma grande invenção. Adoro minhas fotografias com Peter. Com Helmut, entendi as possibilidades da fotografia. Para mim, ele foi o primeiro que mostrou como as mulheres podiam ser poderosas na moda. Antes dele, elas tinham que se comportar. Isso foi algo que ficou comigo. Foi uma bela parceria.

“Com Helmut (Newton), entendi as possibilidades da fotografia. Para mim, ele foi o primeiro que mostrou como as mulheres podiam ser poderosas na moda. Antes dele, elas tinham que se comportar.”

Como foi sua experiência filmando no Rio de Janeiro o longa Rio sex comedy (2010)?
Não sei se o filme fez sucesso no Brasil, mas a experiência foi ótima. Amei o Rio. Foi bom porque pude trabalhar lá, com brasileiros, o que foi incrível. Não era apenas uma turista visitando a cidade, me integrei. As pessoas me diziam que eu devia ficar trancada em casa por causa da violência, mas não foi o que eu fiz. Saí para sambar, me diverti. Sem dúvida havia um grande contraste. Mas eu gosto de contrastes, é o que torna as coisas interessantes.

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