Lily Gladstone: “Este filme é uma carta de amor para as mulheres indígenas”

Atriz indicada ao Oscar estreia no Apple TV+ "O rito da dança", premiado em Sundance, e conta sobre seu aprendizado com o dramaturgo brasileiro Augusto Boal.


Lily Gladstone
A atriz, no Festival de Cannes, neste ano Foto: Lionel Hahn/Getty Images



Depois de Assassinos da lua das flores (2023), Lily Gladstone está de volta no filme O rito da dança, vencedor do Grande Prêmio do Júri da competição de ficção no Sundance Festival do ano passado e que estreia no Apple TV+ nesta sexta-feira (28.06). 

No longa dirigido pela cineasta indígena Erica Tremblay, a atriz indicada ao Oscar, originária da nação Blackfeet, interpreta Jax, que, depois do desaparecimento de sua irmã, passa a tomar conta da sobrinha Roki (Isabel Deroy-Olson), na reserva onde vive.

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Mas a vida de Jax não está muito estruturada. Ela perde a custódia da adolescente para Frank (Shea Wigham), que é seu pai branco e avô de Roki, e para a mulher dele, Nancy (Audrey Wasilewski). Rebelde, Jax decide viajar com a sobrinha para que ela participe do powwow, uma tradicional reunião de povos indígenas da América do Norte, e dance, como fazia com sua mãe.  

A ELLE participou de uma mesa-redonda com Lily Gladstone em maio, no Festival de Cannes, onde ela estava como participante do júri, exatamente um ano depois de ser exaltada por sua atuação em Assassinos da lua das flores, de Martin Scorsese, exibido fora de competição no festival de 2023.  

“Eu me sinto muito grata”, disse Lily. “Na minha comunidade, há uma afirmação constante: o mundo se move em círculos. Estar de volta a Cannes é uma comprovação disso. Acabei de completar um círculo.” A seguir, o papo com a atriz:

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Lily Gladstone (Jax) e Isabel Deroy-Olson (Roki) no filme Foto: Divulgação


Você ficou conhecida por seus filmes com a cineasta Kelly Reichardt e, depois de fazer um curta com a Erica Tremblay, foi dirigida por ela novamente em O rito da dança. Trabalhar com mulheres é algo que você procura ou simplesmente acontece assim?
Minha primeira resposta vem da história. Acho que há muitas narrativas dirigidas e escritas por mulheres que são mais locais e comunitárias. E para mim isso faz parte desse círculo de que falei. Trabalhar com Kelly me colocou simultaneamente no radar de Erica e Martin Scorsese. Kelly faz longas baseados no lugar e nos personagens. A maneira como ela dirige filmes é diferente, mas sei que ela é uma grande inspiração para Erica. Quando li Little chief, o curta-metragem de Erica, falei: “Ah meu Deus, é uma Kelly Reichardt indígena”. Fiquei emocionada quando Erica disse que queria escrever um longa para mim. Ela entrou em um programa de imersão linguística e aprendeu a língua Cayuga. Assim ficou sabendo que a palavra tia significa mãezinha, mãe pequena, outra mãe. Ali, ela descobriu a essência do relacionamento no filme.

A poeta catalã Maria Mercè Marçal disse: “Agradeço o destino de ter nascido mulher, de classe baixa e de uma nação oprimida”. Identifica-se com isso?
Sim, é essa combinação de coisas que mantém as comunidades unidas. Este filme é uma carta de amor para as mulheres indígenas e para o nosso amor umas pelas outras, porque é ele que nos faz continuar. É quase a antítese do que precisamos para sobreviver na sociedade de ética cultural individualista e patriarcal, movida pela riqueza, que simplesmente abre caminho sem parar. Mas não conheço nenhum indígena que não reconheça que são as nossas mulheres que nos mantiveram sempre unidos.

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Lily em O rito da dança Foto: Divulgação


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Você falou há pouco da importância da comunidade na sua vida e no seu trabalho e queria saber da influência do diretor, dramaturgo e estudioso brasileiro Augusto Boal (1931-2009) no seu trabalho.
Conheci Augusto Boal e trabalhei com ele antes de sua morte, o que foi incrível. O teatro do oprimido definiu meu espírito como atriz e por muito tempo foi o que usei com jovens da reserva (Lily trabalhou com teatro comunitário quando era jovem e depois da universidade deu aulas em sua reserva). Ele me ensinou nosso poder no palco e como isso se traduz em poder no mundo como ser humano, como a narrativa baseada em histórias para o trabalho de justiça social é crucial. Assassinos da lua das flores foi uma forma realmente interessante disso se manifestar. Foi realmente maravilhoso que na minha incursão em Hollywood eu tenha conseguido manter algo desses aprendizados.

Como você se preparou para ser Jax?
Honestamente, Jax me aterrorizou. Até filmarmos, eu achava que ia decepcionar a Erica. Não sabia se a personagem ia aparecer para mim. Relacionei a Jax aos meus primos meninos. E eu não sabia se podia ser o Will, ou o Chad.

Seus primos inspiraram a Jax, então?
Meu primo Chad inspirou a estética de Jax. O primeiro visual pensado da Jax era bem lésbico – eu tive permissão da Erica para dizer isso. Na minha primeira prova, fiquei parecendo o ator Jeff Bridges. Não era Jax. Eu e a figurinista Amy Higdon trabalhamos no look. Aprendi com amigos queer depois que o filme foi lançado que a Jax usa um visual muito clássico, calção de basquete, camisas largas cortadas, sutiã esportivo. O penteado é simples, algo que Chad usava quando era criança. Nós dois fomos os únicos da família criados na reserva, e ele era o menino da nossa família que tinha cabelo comprido.

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Isabel e Lily, sobrinha e tia no longa Foto: Divulgação


E o Will?
Ele cresceu na cidade, mas mora na reserva agora. Participa de várias iniciativas culturais importantes. É um protetor da comunidade. Ele tem sobrinhas e sobrinhos pelos quais é responsável. Ou seja, é parecido com Jax. Ela é meio obrigada a cuidar da sobrinha. E assim sente que é adulta e está moldando o mundo. Cabe a ela passar certas coisas para a próxima geração. Então, esses dois meninos me ajudaram muito. De repente, Jax surgiu.

Há diversos tipos de violência contra as personagens, mas um dos piores é a violência contra a cultura.
Sim. Aquela violência de quem acha que está fazendo a coisa certa. É muito mais insidioso e sutil. A Nancy (a madrasta) é aquela vilã bem-intencionada e amorosa, tem aquelas atitudes silenciosas e educadas, de superioridade. Para ela, por exemplo, a dança que Roki fazia com sua mãe é a mesma coisa que balé. Ela chama as roupas usadas na dança de fantasia. Isso é uma redução, pois aqueles trajes de gala são uma extensão de você mesma. O processo de colonização impulsiona essa desconexão de si mesmo, da comunidade, e Nancy é uma continuação desse legado. De muitas maneiras, sinto que a sociedade ocidental realmente valoriza essa desconexão. Acabei de produzir um documentário sobre a relação de nós, indígenas Blackfeet, com os búfalos. E quem dirigiu são cineastas Blackfeet, porque a visão de mundo é outra. Temos uma conexão profunda com os búfalos. Aprendemos como sobreviver por causa deles. E a sobrevivência deles está intrinsecamente ligada à nossa.

Você estava prestes a abandonar a carreira antes do sucesso de Assassinos da lua das flores. Reencontrou o desejo de ser atriz?
Meu desejo nunca foi embora, e essa era a tragédia. Foi só questão de cair na real de que não poderia contar com uma cineasta incrível vindo a cada três anos com um projeto. Você não consegue se sustentar. Por isso eu estava pesquisando análise de dados (para trabalhar na área) e estava com um pé fora (da atuação). Ao mesmo tempo, eu sabia que a Erica estava escrevendo O rito da dança para mim. Esse projeto sempre esteve nos planos. Claro que é uma história mais bacana dizer que Scorsese salvou minha carreira.

“A Molly (de Assassinos da lua das flores) foi uma oportunidade para o público se apaixonar por uma mulher indígena, e agora as pessoas percebem o quanto essas histórias faziam falta” Lily Gladstone

As coisas mudaram muito com Assassinos da lua das flores e a indicação ao Oscar?
O rito da dança foi exaltado pela crítica em Sundance, as pessoas adoraram. Mas, quando Assassinos foi lançado, aumentou o apetite do público. Sou muito grata. Há um desejo por esses personagens que apareciam tão raramente para mim. E isso tem influenciado o tipo de trabalho que chega à minha mesa, porque as pessoas estão interessadas em mim como artista e querem me ver de maneiras diferentes, o que é ótimo porque precisamos de representação em diferentes gêneros. Estou recebendo roteiros de filmes de ação, de comédias. Há interesse pelos projetos que desenvolvo como produtora. Estou tendo muito mais oportunidades de lançar o tipo de coisa que quero fazer. A Molly (protagonista de Assassinos da lua das flores) foi uma oportunidade para o público se apaixonar por uma mulher indígena, e agora as pessoas percebem o quanto essas histórias faziam falta.

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