Livro explica a paixão de Caetano Veloso pelo cinema

"Cine Subaé - Escritos sobre cinema (1960-2023)" reúne textos sobre o tema do compositor, que foi crítico e dirigiu o longa "O cinema falado".


O compositor nas filmagens de "O cinema falado" (1986) Foto: Divulgação/Companhia das Letras



A paixão de Caetano Veloso pelo cinema é notória e pode ser verificada em inúmeros momentos das sete décadas de sua trajetória musical, entre discos (Cinema transcendental, 1979), canções (“Cinema Novo”, 1993) e declarações. O livro Cine Subaé – Escritos sobre cinema (1960-2023), recém-lançado pela Companhia das Letras (440 págs.), reúne escritos de Caetano sobre o tema e dá forma concreta a essa paixão e aos muitos cruzamentos entre música e cinema na obra do artista de 81 anos. 

Organizado por Claudio Leal e Rodrigo Sombra, o livro começa com as críticas cinematográficas que foram o primeiro trabalho profissional do baiano, aos 18 anos, em jornais e revistas de sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, e de Salvador. Na capital baiana, ele estreou no suplemento cultural do Diário de Notícias, cujo editor era o futuro cineasta Glauber Rocha. Batizado com o nome de uma das salas santamarenses de exibição que Caetano frequentou durante a infância e adolescência, Cine Subaé recupera 15 textos escritos pelo compositor entre dezembro de 1960 e junho de 1962, antes da interrupção da experiência como crítico pelo encontro com a música popular, que se revelaria definitivo.

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Os anos de ascensão no cenário musical de Caetano corresponderam a um longo hiato da escrita cinematográfica, que foi retomado com outro viés em ocasiões esporádicas, como um artigo de impacto sobre Carmen Miranda assinado por ele em 1991 para o The New York Times. Na mesma década, ele escreveu textos opinativos e/ou ensaísticos para O Globo e Folha de S.Paulo. Nos anos 2000, o compositor assinou textos esparsos publicados em catálogos, press releases ou no jornal espanhol El País, culminando, em 2010, com uma coluna fixa n’O Globo. Nessa, Caetano escreveu em ritmo de fluxo de consciência sobre temas variados, entre os quais os organizadores de Cine Subaé selecionam os que se referem ao cinema.

O livro ainda traz a transcrição de entrevistas sobre cinema concedidas pelo artista em pontos diversos de sua carreira e por uma compilação de declarações esparsas sobre diversos filmes e cineastas.

A seguir, conheça mais sobre a relação do compositor com o cinema:

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Caderno de Caetano com anotações sobre cinema, quando ele tinha 18 anos Foto: Divulgação/Companhia das Letras


O crítico de cinema

Caetano escreveu crítica de cinema no mesmo período em que nasciam os movimentos revolucionários da Nouvelle Vague francesa e do Cinema Novo brasileiro. Os textos ainda olhavam para tempos anteriores, do Neorrealismo italiano e da Era de Ouro de Hollywood. As simpatias do jovem crítico pendiam mais para o cinema europeu e japonês dito de arte que para Hollywood, cujos filmes pareciam a Caetano “dramas coloridos e falsos”, quando não “filmezinhos ridículos”. Ele prestava atenção nos italianos Federico Fellini e Roberto Rossellini, no francês René Clair, no japonês Akira Kurosawa e no inglês radicado nos EUA Alfred Hitchcock.

Com ingenuidade típica da idade, falava muito na “mensagem” que os filmes traziam ou deveriam trazer e teorizava sobre a necessidade de os cineastas resistirem às concessões da grande indústria. “Fazer crítica de cinema no Brasil é uma batalha”, exagerava.

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Os favoritos de Caetano 

A julgar pelas próprias palavras, o compositor coloca em seu olimpo particular de cineastas o francês Jean-Luc Godard, os italianos Fellini e Bernardo Bertolucci (desse, parece gostar mais do diretor que dos filmes) e, mais recentemente, o espanhol Pedro Almodóvar. O estadunidense Stanley Kubrick (“Sempre um dos meus diretores favoritos”) passa apenas de raspão por Cine Subaé.

Entre os brasileiros, os onipresentes são o cinemanovista Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, cineastas independentes da geração seguinte à do Cinema Novo. O músico revela numa entrevista que foi apresentado a Glauber “umas 50 vezes” lá no início, em Salvador. “Ele nunca se lembrava de mim, apertava minha mão com uma mão mole.”

Em tempos mais recentes, é caloroso com O som ao redor (2012), do pernambucano Kleber Mendonça Filho (“Um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo”) e Boi neon (2015), de Gabriel Mascaro. Celebra ainda a comédia Minha mãe é uma peça (2013), com Paulo Gustavo. Outro diretor local pelo qual Caetano transborda entusiasmo é Mauro Lima, de Meu nome não é Johnny (2008) e Reis e ratos (2012), mas ele próprio escancara suas motivações. “Devo ser o cara mais suspeito que existe para falar desse filme, já que gosto muito especialmente de Mauro Lima, o diretor, e a produtora é minha empresária”, disse, se referindo a Paula Lavigne.  

Na fase de colunista d’O Globo, já nos anos 2010, Godard reina soberano nas declarações de amor de Caetano, (“Não posso nem de longe tentar competir”, afirma a certa altura), secundado por Fellini, Glauber, Woody Allen, Ang Lee, Almodóvar, Quentin Tarantino, Vincent Gallo e concorrentes ao Oscar em geral.

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Kirsten Dunst em Melancolia (2011), de Lars von Trier Foto: Reprodução


O polemista

Caetano nunca evitou confrontos e embates, e muitas vezes o fez por intermédio da imprensa, em textos reproduzidos em Cine Subaé. Na Folha de S.Paulo, em 1986, protestou contra a “burrice” de Roberto Carlos ao apoiar a proibição no Brasil do filme Je vous salue, Marie (1985), de Godard, pelo então presidente José Sarney, que cedeu à pressão da Igreja Católica contra a transposição livre da história da mãe de Jesus Cristo para tempos contemporâneos. Roberto “envergonha nossa classe” e os apoiadores da censura a Godard são “hipócritas e pusilânimes”, afirma, num mesmo texto em que cita a “cantora de voz vazia” Madonna, que então lutava para se impor com hits pop como “Like a virgin” (1984).

Admitindo nutrir “implicâncias”, Caetano usa verve ferina na coluna d’O Globo para falar de alguns diretores, casos do estadunidense Woody Allen, do alemão Wim Wenders e do dinamarquês Lars von Trier. Sobre Allen, “fraquinho” e autor de “filmes estreitos”, algumas das motivações da antipatia são transparentes: “Manhattan (1979) não tem nem um preto; (…) Zelig (1983) espelha todo tipo de gente, nunca mulheres ou bichas”.   

Não perdoa tampouco a série O senhor dos anéis (2001-03): “Fiquei com raiva do tempo que perdi vendo figurinhas que me dão enjoo, como elfos e duendes. (…) Essa mitologiazinha celta me enche o saco”.

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Cartaz de O cinema falado (1986), longa dirigido por Caetano Foto: Reprodução

Caetano, o cineasta

O vínculo com o cinema se tornou mais sério em 1986, quando o compositor estreou como cineasta com O cinema falado, carregado de monólogos e diálogos, que despertou reações negativas entre críticos, cineastas e plateias. Ele reage comedidamente à diretora Suzana Amaral, de A hora da estrela (1985), que o classificou como “urubu da vanguarda” à época: “Fiquei com raiva e um pouco deprimido, até. É desagradável”, disse o compositor, numa das entrevistas.

No texto “Sou pretensioso”, publicado em 2005 em O mundo não é chato, outro livro-coletânea de textos caetânicos, o ensaísta volta aos episódios de rejeição a seu filme, tentando arrumá-los sob seu controle e demonstrando não tê-los assimilado totalmente.

Contra os críticos culturais, o ex-crítico de cinema afirma-se “um pouco chato, porque entro em competição com eles”. E investe com firmeza contra críticos de toda natureza: “Há muito provincianismo, muita ignorância, muita pobreza, muita preguiça mental. É esta a razão da polêmica. (…) é algo que tem me acompanhado um bocado nesses anos todos, a maioria das vezes contra a minha vontade”. O tom várias vezes agressivo do Caetano crítico, ensaísta e polemista explica, em parte, as reações frequentemente iradas de seus críticos – afinal, como ele mesmo decifra, tratava-se de uma competição fomentada em pessoa pelo vencedor e invencível Caetano Veloso.

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