Com 13 indicações, “Emilia Pérez” esconde superficialidade sob falsa ousadia
O musical dirigido pelo francês Jacques Audiard estreia no Brasil com fortes críticas da comunidade trans e dos mexicanos e entre polêmicos tuítes de sua protagonista

Indicado a 13 Oscars e cercado de polêmica, Emilia Pérez chega aos cinemas brasileiros oficialmente nesta quinta-feira (06.01). O longa dirigido pelo francês Jacques Audiard também concorre a 11 Baftas (o Oscar britânico), 12 Césars (o Oscar francês) e 10 Critics Choice, que acontece na sexta-feira (07.01).
O filme começou sua carreira de sucesso com uma premiação dupla no Festival de Cannes, em maio do ano passado: prêmio do júri (uma espécie de terceiro lugar) e melhor atriz para o conjunto formado por Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz.
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Audiard é conhecido do festival, tendo ganhado o Grande Prêmio do Júri por O profeta em 2009 e a Palma de Ouro por Dheepan em 2015. Mas Emilia Pérez, de certa forma, surpreendeu em Cannes.
Porque a sinopse era curiosa: “Superqualificada e subvalorizada, Rita é a advogada de um grande escritório que está mais interessada em livrar criminosos do que levá-los à justiça. Um dia, ela encontra uma porta de saída, quando o líder de cartel Manitas a contrata para ajudá-lo a deixar seu negócio e realizar um plano que ele vem preparando secretamente há anos: se tornar a mulher que sempre sonhou ser”.
O resumo da trama, envolvendo um processo de transição de gênero de um narcotraficante mexicano, somado às informações de que se tratava de um musical, rodado na França, por diretor e equipe francesas, uma atriz espanhola (Karla Sofía), duas estadunidenses (Zoe e Selena) e apenas uma mexicana (Adriana), parecia um sinal de desastre.
Selena Gomez em cena do musical
Quando Emilia Pérez finalmente fez sua estreia mundial, houve um certo alívio. O longa sem dúvida era diferente e contava com atuações contagiantes de Zoe e Karla Sofía.
Algumas canções cruzavam o limite do bom gosto, assim como partes da trama. O filme bebia na fonte da telenovela para apresentar a história de redenção de um líder de cartel que, depois da redesignação, decide ajudar a encontrar os desaparecidos do México – estima-se que há mais de 115 mil desde 1962 com um aumento significativo desde o início da chamada guerra ao tráfico em 2006. As causas são desde a atuação do Estado, de organizações privadas e de narcotraficantes até tráfico de pessoas e deslocamentos forçados. Só em 2023, foram mais de 12 mil desaparecimentos oficiais. No total, mais de 30 mil são meninas e mulheres.
Já na época de Cannes, incomodava um estrangeiro usar essa história traumática, com feridas abertas, para fazer um musical. Obviamente Emilia Pérez nunca pretendeu ser realista, e o artista precisa ter liberdade. Mas a chance de ofender era grande. A preocupação foi tanta que ouvir colegas mexicanos parecia o caminho correto. Eles disseram que não acharam o filme desrespeitoso.
Karla Sofía Gascón e Zoe Saldaña (ao centro) no filme
Mudança de percepção
Com o tempo, o filme foi se perdendo na memória – mau sinal. Emilia Pérez não resistiu a uma revisão, meses mais tarde. Todos os seus momentos ridículos, como a canção sobre a cirurgia de afirmação, dizendo “De homem para mulher ou de mulher para homem? / De homem para mulher / Do pênis para a vagina”, ficaram impossíveis de ignorar.
A obra reúne um monte de elementos – identidade, transgeneridade, a guerra ao tráfico que só provoca mais violência – para não dizer nada. Até a ideia da transformação completa de personalidade da protagonista após a afirmação de gênero não se sustenta. Filme não tem obrigação de passar mensagem, mas é bom desenvolver os temas que levanta e os personagens que apresenta. Ainda mais porque a equipe e o elenco defendem que Emilia Pérez “é importante”. É inclusive, baseado, nessa percepção que muita gente tem votado nele nas premiações.
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Saldaña (sentada, ao centro) e o diretor Jacques Audiard (em pé), nas filmagens do longa
Descaso
Com o tempo, as desconfianças sobre a maneira de abordar a transgeneridade e a tragédia social mexicana só ganharam força. Um homem francês branco cis e hétero fazer um filme com esses temas ou pano de fundo não é, em si, um problema, desde que o diretor seja cuidadoso e respeitoso. É o mínimo que se espera de um filme lançado em 2025.
Declarações de Audiard de que não tinha feito pesquisa porque já sabia do que ia falar, ou de uma diretora de elenco dizendo que não tinha achado atrizes mexicanas boas o suficiente para os papeis principais foram desrespeitosas. O cineasta chegou a afirmar que graças a Emilia Pérez estavam falando finalmente sobre os desaparecidos do México, sendo que o filme não suscitou nenhuma discussão a esse respeito e que uma boa parte do cinema mexicano recente lida com a questão.
Críticas da comunidade trans e dos mexicanos
Dois dias depois da estreia na Netflix nos Estados Unidos, no Canadá e no Reino Unido em 13 de novembro, a Glaad (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation), maior organização de defesa por uma presença LGBTQIA+ justa na mídia, publicou um texto no site com o título: “Emilia Pérez não é uma boa representação trans”, linkando uma série de críticas apontando clichês.
Os mexicanos engrossaram o coro, muitos sem ter assistido, já que o filme só estreou comercialmente no país em 23 de janeiro. Mas sua crítica trata da concepção do projeto: a transformação de um narcotraficante cruel em uma heroína que, depois do processo de transição de gênero, fica disposta a resolver os desaparecimentos que causou, escondendo-se atrás de sua nova identidade.
Saldaña no musical
Eles perguntavam: e se um cineasta mexicano usasse atores de outros países para transformar em musical o ataque ao Bataclan, em Paris, tornando um dos terroristas um herói? Será que os franceses aceitariam numa boa?
Também apontaram erros banais de vocabulário, facilmente evitáveis, caso a produção tivesse contratado consultores. Pode parecer bobagem, mas isso denota um descaso com a língua, a cultura e a história do país – por mais que a intenção não fosse representar a realidade.
Quase ninguém deu ouvidos às críticas. Emilia Pérez entrou na maioria das listas de melhores do ano e colecionou prêmios na Europa e nos Estados Unidos.
Para além das críticas à narrativa e ao filme como cinema, é impossível engolir essa arrogância de tratar a miséria de um país que já lida com tanto preconceito como mero pano de fundo para um musical ou uma ópera, como prefere Audiard. Mas é fácil entender seu sucesso: ele tem um verniz de originalidade e ousadia e parece tratar de assuntos importantes, enquanto apenas nada na superfície.
Selena Gomez
Recorde de indicações
Chegada a temporada de premiações, com a máquina da Netflix – que comprou os direitos para EUA, Reino Unido e Canadá em Cannes – trabalhando duro, Emilia Pérez foi um estouro. Conquistou 13 indicações ao Oscar, um recorde para uma produção não falada em inglês e apenas uma a menos do que o recorde geral de A malvada (1950), Titanic (1997) e La la land – Cantando estações (2016).
Faltando menos de duas semanas para o início da votação final, a jornalista canadense Sarah Hagi encontrou tuítes preconceituosos de Karla Sofía de quase todas as maneiras possíveis. O escândalo acabou com as chances da atriz de ganhar o Oscar e ameaça contaminar o filme.
Para tentar salvar Emilia Pérez, toda a culpa vai ser jogada na mulher trans que foi o rosto da campanha. Mas a verdade é que a narrativa de que o filme poderia ser um recado ao atual presidente dos Estados Unidos, que ataca pessoas trans e imigrantes vindos da fronteira sul, sempre foi falha, como já tinham avisado os mexicanos e a comunidade LGBTQIA+.
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