Documentário de Milton Nascimento abre o peito do cantor

Diretora fala à ELLE sobre "Milton Bituca Nascimento", filme que registrou a turnê de despedida do artista de 82 anos dos palcos e contou com depoimentos de Mano Brown a Chico Buarque.


Cena do documentário de Milton Nascimento
Foto: Divulgação



Aos 82 anos, o rei está nu em Milton Bituca Nascimento, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (20.03). Dirigido por Flavia Moraes, o filme registra a turnê A última sessão de música, que marcou a despedida do cantor dos palcos, em 2022. O documentário de Milton Nascimento pode ser visto como uma celebração de toda a trajetória do cantor e compositor nascido no Rio de Janeiro e criado em Minas Gerais, mas não se limita a traçar um retrato de glórias e triunfos de um artista de expressividade não apenas brasileira, mas mundial. 

“Ele sabe aparar um golpe como ninguém. Não foi um nem dois, foi a vida inteira. O lugar dele é o da reflexão. Ele fica muito triste, mas não reage”, afirma a certa altura a empresária de Milton, Marilene Gondim, exemplificando com um período, nos anos 1990, em que ele esteve doente (“esquálido, a palavra era essa”). “De um lado, é uma fortaleza praticamente inabalável, e do outro é de uma fragilidade absoluta. Caía toda hora e se levantava”, ela lembra.

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Emoldurado pela narração de Fernanda Montenegro, atualmente com 95 anos, o filme abre o peito de Milton Nascimento e exibe vários de seus momentos de fragilidade: locomovendo-se numa cadeira de rodas, amparado por uma bengala ou sendo auxiliado em passos vacilantes a caminho do palco. “Fiquei muito preocupada no início, porque quando ele começou a turnê estava extremamente fragilizado”, revela a diretora do filme. “Nós tínhamos uma preocupação muito grande não só com seu bem-estar físico, mas também em como retratar Milton nesta fase da vida, com suas fragilidades, às vezes com suas dores, porque muitas vezes ele estava cantando, caminhando ou se movimentando e não se sentia muito bem”, completa. No início deste mês, o filho adotivo do músico, Augusto Nascimento, revelou em entrevista ao Jornal Nacional que Milton foi diagnosticado há dois anos com Parkinson.

A conduta adotada por Flavia foi estabelecer uma reflexão por vezes dolorosa sobre o momento de despedida vivido pelo cantor de “Encontros e despedidas” (1985, “são só dois lados da mesma viagem/ o trem que chega é o mesmo trem da partida/ a hora do encontro é também despedida”). “Esse filme questiona o fim, fala da importância de meditar para o fim, pelo fim ou sobre o fim, como diz Gilberto Gil em seu depoimento”, resume a diretora. “Com isso, a gente fala com toda uma geração que está com 70, 80 anos de idade. Esses nomes são os pares do Milton.”

Bituca EUA 2022 MAKING OF FILME @MarcosHermes 4

As filmagens do documentário Foto: Divulgação

De Mano Brown a Herbie Hancock

A constelação de nomes que registram suas meditações sobre a grandeza de Milton inclui parceiros do Clube da Esquina como os irmãos Márcio e Lô Borges, Wagner Tiso, Toninho Horta e Beto Guedes, mas também Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, João Bosco, Simone e Ivan Lins, entre outros. No lado mais luminoso de Milton Bituca Nascimento, Caetano aparece definindo o homenageado como “uma pessoa profunda e intensa”, enquanto Chico brinca: “Milton manda em mim, e eu sempre obedeço”.

Os depoimentos vão bem além dos contemporâneos brasileiros. O universo de entrevistados se amplia nos bastidores da fase internacional da turnê, com astros do pop e do jazz como Paul Simon e Herbie Hancock. A finitude pisca para o espectador nas falas emotivas de pares que morreram de 2022 para cá: Quincy Jones, Wayne Shorter e Sergio Mendes. A diretora graceja que o diretor de elenco de seu filme foi o próprio Milton – no Brasil e no mundo, ele ligava convidando os amigos para o show, dando a pista sobre quem deveria ser entrevistado a cada sessão. “Eu me vi em algumas situações minimamente engraçadas, de estar entrevistando um gigante como Paul Simon, me avisarem no rádio que Spike Lee estava pronto para dar entrevista e ter que pedir para ele esperar mais dez minutos, por favor”, espanta-se Flavia.

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Spike Lee e Milton Nascimento em cena do documentário Foto: Divulgação

Bituca (o título se refere ao apelido de Milton entre os mais íntimos) amplia o arco ao entrevistar artistas de idades diversas, igualmente apaixonados pelo muso: Zé Renato, Fito Paez, Mano Brown, Criolo, Esperanza Spalding, Lianne la Havas, a portuguesa Carminho, OsGêmeos (que atravessam o filme criando um grafite carinhoso de Milton à sanfona), Zé Ibarra, Maria Gadú, Tim Bernardes, Maro…

Preconceito

Outro tema difícil encarado de frente no filme é o preconceito racial. O tópico foi uma constante na vida do artista desde os primórdios, quando não podia entrar pela porta da frente nos clubes em que seu conjunto de baile ia tocar. Além de Mano Brown e Criolo, refletem sobre os desafios da negritude em Milton a filósofa Djamila Ribeiro, o rapper Djonga e Djavan (que define o racismo como uma “lâmina cortante”). No Grammy de 2025, não reservaram um lugar para o cantor brasileiro no setor VIP da plateia de estadunidenses, sob o protesto de Esperanza Spalding (sua parceira no álbum Milton + Esperanza, de 2024).

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Cena de Milton Bituca Nascimento Foto: Divulgação

Como não poderia deixar de ser, Bituca reflete a natureza quase estritamente masculina do Clube da Esquina, que Flavia tenta equacionar no documentário com as presenças em um vídeo de Elis Regina, a intérprete que revelou a música de Milton para o Brasil, ou em fotografia da mãe biológica, de semelhança impressionante com o filho. “Na turnê, o clube do Bolinha foi mais presente do que o clube da Luluzinha. O mundo era um clube do Bolinha na década de 1970″, reconhece a diretora. “É um reflexo natural da era da música e da vida de Milton, um artista do século passado que tem um alcance até este século. Mas o filme é dirigido, montado e escrito por mulheres. São muitas delas fazendo parte.”

Como num comentário espirituoso sobre esse tópico, no final do filme Milton escuta, apaixonado, o standard afro-cubano “Babalú” (composto por uma mulher, Margarita Lecuona), de 1939. A música aparece na versão kitsch-pop de 1958 por Angela Maria, uma das referências primordiais para o cantor classificado pelo cineasta Spike Lee como “uma das melhores vozes de todos os tempos”. “Babalú” à parte, Milton Bituca Nascimento é, além de todo o resto, um desfile ininterrupto de clássicos do Clube da Esquina, da MPB e da música do planeta Terra.

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