O bom momento do cinema brasileiro

Impulsionado por "Ainda estou aqui", a produção nacional vive ótima fase, que vai além do longa de Walter Salles e do primeiro Oscar conquistado pelo Brasil.


Filmes que refletem o bom momento do cinema brasileiro



No último domingo (02.03), algo raro aconteceu no país: os brasileiros fizeram uma breve pausa no Carnaval para assistir à cerimônia do Oscar no domingo de folia. E valeu a pena: Ainda estou aqui entrou para a história do cinema brasileiro ao conquistar a primeira estatueta de filme internacional para o país, depois da indicação inédita de melhor filme e de melhor atriz para Fernanda Torres, que levou o Globo de Ouro na mesma categoria em janeiro.

Desde o fim do ano passado, as nomeações a premiações e a torcida pelo filme evocavam um clima de Copa do Mundo, apesar de Torres ter pedido em vão o contrário. Como aqui tudo acaba em samba, ela foi, inclusive, uma das grandes homenageadas no Carnaval.

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Walter Salles, diretor de Ainda estou aqui

Walter Salles com seu Oscar de filme internacional Foto: Oscar

A obra dirigida por Walter Salles e baseada no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe, Eunice Paiva, tornou-se a terceira maior bilheteria para uma produção brasileira desde 2018, atrás apenas de Minha mãe é uma peça 3 (2018) e Nada a perder (2019), segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Foi ainda uma das grandes responsáveis no país por levar as pessoas de volta ao cinema, um dos setores que mais sofreram com a pandemia. Depois da bilheteria mundial alcançar o recorde de US$ 42,5 bilhões em 2019, no ano seguinte despencou para US$ 11,8 bilhões. Em 2023, com a indústria ainda combalida, a greve dos roteiristas e dos atores piorou a situação, impactando também o ano passado.

No Brasil, a crise mundial somou-se às dificuldades locais. O governo de Jair Bolsonaro tinha pouco interesse na cultura e no cinema brasileiros, paralisando diversos mecanismos de financiamento – os filmes nacionais são majoritariamente produzidos graças à Lei do Audiovisual, de renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas, a editais e aos recursos gerados pela própria indústria. Em 2019, o audiovisual teve um valor adicionado de 29,1 bilhões de reais, gerando mais de 650 mil empregos diretos e indiretos. A indústria farmacêutica, nesse mesmo ano, chegou a 28,1 bilhões. Segundo estudo do Instituto Itaú Cultural, a cultura e as indústrias criativas geram 3,11% do PIB, ficando à frente da indústria automotiva (2,5%).

EUNICE MAR 1

Fernanda Torres em cena de Ainda estou aqui Foto: Divulgação

Em 2023, filmes brasileiros como as comédias Os farofeiros 2 e Minha irmã e eu voltaram a ocupar boas posições nas bilheterias. E na virada de 2024 para 2025, Ainda estou aqui (5,5 milhões de ingressos vendidos), O auto da compadecida 2 (4,3 milhões) e Chico Bento e a goiabeira maraviósa (1 milhão) fizeram explodir os números do cinema nacional.

Além do retorno financeiro, no quesito prêmios internacionais, o longa protagonizado por Torres não está sozinho. O Brasil esteve presente em todos os grandes festivais de cinema de 2024 e foi reconhecido em vários: Juliana Rojas foi escolhida a melhor diretora da seção Encontros em Berlim por Cidade; campo; Ricardo Teodoro levou o prêmio de ator em ascensão da Semana da Crítica, seção paralela de Cannes, por Baby, dirigido por Marcelo Caetano; Manas, primeiro longa de ficção de Marianna Brennand, ganhou o prêmio principal da Jornada dos Autores, seção paralela de Veneza. Em fevereiro deste ano, O último azul, de Gabriel Mascaro, levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim, uma espécie de segundo lugar, abaixo apenas do Urso de Ouro.

O Brasil esteve presente em todos os grandes festivais de cinema de 2024 e foi reconhecido em vários

Altos e baixos do cinema brasileiro

Participação e até premiações em festivais internacionais não são apenas recentes – o Brasil já ganhou o Urso de Ouro duas vezes, com Central do Brasil (1998) e Tropa de elite (2007). Mas o cinema nacional sempre teve altos e baixos, de acordo com os mecanismos de produção disponíveis. Em diversos países do mundo, o cinema conta com investimento estatal contínuo, incluindo os Estados Unidos, onde até os longas da Marvel usam dispositivos de isenção fiscal – não é à toa que quase todos são filmados no Estado da Georgia, por exemplo, que oferece até 40% de créditos em impostos. Na França, em 2023, o valor investido chegou a US$ 102 milhões (cerca de R$ 587 milhões).

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The Blue Trail Guilhermo Garza Desvia

Rodrigo Santoro e Denise Weinberg em O último azul, premiado em Berlim Foto: Guilhermo Garza

Entre 1984 e 1989, cinco longas brasileiros disputaram a Palma de Ouro em Cannes – com Eu sei que vou te amar (1986), de Arnaldo Jabor, Torres foi premiada como melhor atriz. Devido à extinção da Embrafilme pelo então presidente Fernando Collor de Mello, em 1990, o cinema brasileiro entrou em sono profundo. O país ficaria nove anos sem ir à competição em Cannes, voltando depois da chamada retomada do cinema nacional, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com Coração iluminado, de Hector Babenco, em 1998.

Foi nessa década também que o Brasil emendou três das suas cinco indicações ao Oscar de filme internacional, com O quatrilho (1995), de Fábio Barreto, O que é isso, companheiro? (1997), do irmão dele, Bruno Barreto, e Central do Brasil (1998), de Salles, também indicado ao Oscar de atriz para Fernanda Montenegro.

Entre 1984 e 1989, cinco longas brasileiros disputaram a Palma de Ouro em Cannes

Lula e Dilma Rousseff ampliaram leis e investimentos. Entre 2000 e 2019, o Brasil esteve em Cannes com quatro longas em competição, sem contar os filmes em inglês dirigidos por brasileiros. Mas, depois de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, ficou cinco anos fora, até Motel Destino, de Karim Aïnouz, ano passado – justamente o período afetado pela diminuição e paralisação da produção do governo Bolsonaro.

Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura em O agente secreto

Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura nas filmagens do inédito O agente secreto Foto: Laura Castor

Tirando os ciclos de produção, os filmes brasileiros precisam também enfrentar uma certa resistência dos maiores festivais do mundo, especialmente Cannes e Veneza, em relação ao cinema latino-americano em geral. Berlim tem um olhar mais atento, contando há muitos anos com um curador especificamente para o Brasil. Isso explica a participação mais robusta ao longo dos anos, chegando a 13 curtas e longas e quatro séries em 2025. Mas em 2023 e 2024 foram seis e quatro produções, respectivamente, um reflexo do governo Bolsonaro.

Além da volta dos mecanismos de financiamento, que envolvem acordos de coprodução com outros países, produtores e cineastas brasileiros frequentam festivais e fazem parcerias, com a ajuda de programas como o Cinema do Brasil, do Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo e ApexBrasil, o CreativeSP, do governo do Estado de SãoPaulo, e da Spcine, agência do município de São Paulo, que incentivam o intercâmbio de conhecimento e o networking para geração de negócios.

Porque entrar no clube é fundamental. Principalmente em Cannes, diretores que participam de alguma mostra, mesmo que paralela, provavelmente vão participar outras vezes. No caso da competição, há um estilo preferido de filme – autoral, mas de peso. Aïnouz e Kleber Mendonça já estão nesse clube. Não à toa, ambos estão cotados para voltar ao festival neste ano, o primeiro com a produção internacional Rosebushpruning, com Elle Fanning, Riley Keough e Callum Turner no elenco, e o segundo com O agente secreto, estrelado por Wagner Moura.

Bruna Linzmeyer em Cidade; Campo

Bruna Linzmeyer em Cidade; campo Foto: Divulgação

Os grandes festivais internacionais são fundamentais para a visibilidade de filmes mais autorais inclusive no mercado estadunidense. Por exemplo, todos os cinco indicados ao Oscar de produção internacional deste ano passaram por Cannes ou Veneza. Até candidatos ao Oscar de melhor filme participaram desses dois festivais: Anora venceu a Palma de Ouro antes de levar cinco estatuetas, e A substância levou o prêmio de roteiro em Cannes, enquanto O brutalista faturou melhor direção e Ainda estou aqui, melhor roteiro em Veneza.

O sucesso comercial e a projeção do cinema brasileiro em 2024 e 2025 animam por uma combinação de fatores. Primeiro, porque há uma variedade de temas e gêneros, de infantis a thrillers, passando por documentários, comédias, dramas familiares, romances, denúncias e histórias que resgatam a memória do país. Segundo, porque além do retorno de cineastas consagrados, como Salles, que não fazia longa de ficção no Brasil desde 2008, há nomes surgindo ou se firmando, como Mascaro, Brennand, Caetano, Rojas.

Ainda estou aqui faz sucesso nos Estados Unidos e no globo todo, inclusive, porque coloca o espectador dentro de um regime autoritário, como aqueles que ameaçam tantos países. O Brasil tem demonstrado ser capaz de falar ao mundo, e o cinema brasileiro, de ser universal mesmo falando de questões locais.

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