Duda Beat dosa sofrência pop e deboche em seu segundo álbum

Três anos após o sucesso de "Bixinho", cantora lança o disco Te amo lá fora.





Era uma vez uma garota que tentou a faculdade de medicina por sete anos, acabou se formando em ciência política e despontou nos palcos musicais em 2018 como uma das revelações do novo pop brasileiro. A pernambucana Duda Beat, depois de três anos de sucesso da canção “Bixinho” (e do álbum Sinto muito), enfrenta no auge de uma pandemia o teste de apresentar ao público o segundo trabalho. Te amo lá fora, disponível nas plataformas digitais desde esta terça-feira, 27, dá prosseguimento à construção de um estilo que ficou conhecido à revelia como “sofrência pop” e é em boa medida inspirado na moderna música brega nordestina.

A começar pelo contraste entre a cientista política e a diva pop, a artista vive entre diversas dualidades e alguns jogos de esconde-esconde. Em primeiro lugar, Duda Beat, 33 anos (codinome pop de Eduarda Bittencourt Simões), tem razões para deixar para trás o histórico de rejeições amorosas que sofreu desde a adolescência e em dois namoros de maior duração, o que orientou desde o início seu modo de compor.

A capa do novo disco de Duda BeatFoto: Divulgação/Fernando Tomaz

O namoro com o amigo de longa data Tomás Tróia, que engatou no final de 2016, começou durante a feitura do primeiro disco e se mantém até hoje, na vida e na arte. Tomás, além de tocar bateria eletrônica, guitarra, teclados e programações com Duda, é também o produtor de seus dois álbuns, ao lado do baixista e tecladista Lux Ferreira. O sofrimento romântico diminuiu na vida real ao mesmo tempo em que as canções de sofrimento caíam no gosto pop nacional. “O novo disco tem letras de sofrência, mas também tem letras de não-sofrência”, ela se diverte, ao definir Te amo lá fora como um disco de transição entre as duas pontas.

Adolescente, Duda pensava em cursar medicina por influência da mãe, que antes dela sonhara ser médica. A ciência política a seduziu e em 2018 apresentou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) um trabalho de conclusão de curso denominado “Vote em mim em nome de Deus – Uma análise comportamental dos políticos evangélicos dentro do Congresso”. Aí já era tarde, tanto para a medicina como para a ciência política. Ainda em 2015, internada num retiro espiritual para se recuperar dos namoros fracassados (sempre com músicos), Eduarda teve o insight, algo feminista, de que deveria ser cantora. “Pensei: se os caras por quem me apaixono estão no palco, eu tenho que tomar esse lugar para mim”. Havia um antecedente: na adolescência, Duda frequentou uma igreja evangélica episcopal anglicana, influenciada por uma amiga (“Minha mãe e meu pai não frequentavam igreja”). Nessa fase, cantou no coral e foi destacada pelo pastor para cantar solo.

Na transição da religiosidade para o pop profano, a igreja permanece oculta no trabalho musical de Duda, mas apareceu como protagonista explícita do TCC acadêmico. “Ele fala de outro lado da igreja evangélica, um lado obscuro e estranho da igreja, de transformar os fiéis em eleitores, do momento em que a igreja corrompe esses votos”, conta. “Tive que fazer uma observação participante nos cultos, e vi um lado da igreja muito de repreensão. Coisas aconteciam ali no meio, ‘como assim você não está com a Bíblia?’, umas repreensões com que hoje não concordo.”

As letras simples e diretas hoje se alternam entre a sofrência, como em “Pisêro” (“Eu já sofri demais/ Já chorei/ Mas não me entreguei, não/ Me segurei/ Contra esse amor/ Que acabou comigo de vez”) e um autodeboche romântico, em “50 Meninas” (“Eu já sabia/ Que na sua vida tinha/ Mais de 50 meninas, todas elas apaixonadas por você/ Não é difícil de entender, não/ Que eu era só mais uma opção/ E hoje eu não quero mais você, não”). As letras não deixam ver nada da (ex-) cientista política, o que não significa que Duda não goste de se posicionar politicamente. Sobre o Brasil de 2021, diz: “Está tudo errado. Eu, que mergulhei em todos os governos na minha formação, sei qual foi o melhor. Sei disso em números. Sei como a nossa relação com o exterior era melhor, como a gente em certo momento da história ocupou lugares muito importantes. É uma tristeza profunda, às vezes eu acho até que é de mentira, que isso não pode estar acontecendo”.

A opinião sobre o governo Bolsonaro é indignada: “É muito revoltante esse descaso com a vida do ser humano. Para mim, é um grande projeto, um projeto genocida, em que as classes média e baixa não têm vez. O Brasil entrou no mapa da fome de novo, gente, como assim? A gente era top em vacinação, como assim? A nossa vacinação está a passos de formiga. A gente precisa de um presidente que olhe para o povo, que dê acesso à educação. Esse cara precisa sair”. A canção “Meu primeiro amor”, lançada com Lucas Santtana em 2019, dava bandeira da opção política: “Nasci menino longe da cidade/ No semiárido lá do sertão/ Não tinha água e tampouco comida/ Até que Lula veio e deu a mão”. Ela confirma: “Estava numa imersão com os meninos para escrever os próximos singles e teve aquele discurso do Lula. Foi muito doido como bateu em cada um de nós: poxa, a gente pode ter esperança, um cara que olha para o povo”.

Outra dualidade que a artista mal começou a explorar é entre o pop de multidão que ela almeja e o experimentalismo anticomercial bastante comum na música pernambucana. Duda retirou o “sobrenome” Beat do movimento musical que floresceu em Recife em sua infância, o manguebeat. A mistura sonora de rock, maracatu, rap, ciranda e coco de Chico Science & Nação Zumbi não estava explícita em Sinto muito, mas começa a despontar em Te amo lá fora. Bem à moda do manguebeat, as programações eletrônicas da faixa “Nem um pouquinho” (dividida com o rapper baiano Trevo) lembram, à distância, o som de flauta das bandas de pífanos de Pernambuco. A primeira voz que se ouve no disco, em “Eu e tu”, é da coquista pernambucana Cila do Coco, em frases de sotaque muito local.

“Meu pai ouvia muito Soundgarden, Stone Temple Pilots. Essa galera toda de Seattle é muito importante na minha vida musical”

No geral, seu som passeia por outros caminhos, privilegiando tons atuais de pisadinha, reggae, pop internacional e trap. Como referências musicais ela cita, do Brasil, “o pessoal da minha terra” (Lenine, Nação Zumbi, Alceu Valença, Dona Selma do Coco), os baianos (Ivete Sangalo, Caetano Veloso, Gilberto Gil) e, acima de todos, o alagoano Djavan. “Confesso que sou fã número um, acho que Djavan tem uma química perfeita, de letras às vezes rebuscadas, com palavras que a gente até busca no dicionário para saber o que significam, mas com melodias tão comerciais que mesmo quando você não sabe a letra está cantando a melodia por aí”, elogia.

No campo internacional, destaca Rosalía, Kali Uchis, Lizzo, Beyoncé, Rihanna, Kendrick Lamar e, acima de todos, Lady Gaga. Dessa última, traz para o Brasil a tradição de divas pop de cabelos platinados, perseguida antes por Madonna, Debbie Harry e Marilyn Monroe. “Pintei dessa cor um ano antes de lançar Sinto muito. Naquele momento não via muitas cantoras brasileiras platinadas e falei: bom, vou chegar platinada”, explica. “Agora para me desgarrar desse cabelo está difícil, porque acabou virando uma marca, e eu adoro, cuido direitinho. Ele está sobrevivendo na minha cabeça.”

Outro campo de referências citado por Duda é bem reconhecível em seu imaginário: o pop internacional dos anos 1980. “Sou fã demais de todo mundo, George Michael, Sade, Tears for Fears, Duran Duran. Mexe demais comigo, tem tudo a ver com Duda Beat, porque é um drama sensual. Uma coisa dramática que dá para chorar no banheiro e ao mesmo tempo é supersensual.” Ela revela uma outra influência bem menos perceptível, mas também trazida da primeira infância pelo pai: “Ele era um pouco grunge. Um disco que marcou muito a minha infância foi Ten (1991), do Pearl Jam. Meu pai ouvia muito Soundgarden, Stone Temple Pilots. Essa galera toda de Seattle é muito importante na minha vida musical”. Mas por que a dualidade entre pop de veludo e rock sujo não se manifesta em sua obra? “Vou te falar que eu quase, quase fiz uma música mais rockzinho nesse disco. Talvez no próximo venha, porque é uma coisa que eu gosto muito de ouvir e pouca gente sabe”.

Apanhada pela quarentena num momento de ascensão e forte rotina de shows, Duda sofre pela distância forçada dos palcos e do público. Mesmo diante de tantas limitações, optou pelo lançamento virtual, algo solitário, do segundo álbum. Elegeu o 27 de abril para exibir Te Amo Lá Fora, talvez na intenção de repetir a boa sorte do disco de estreia, que foi lançado exatamente nesse mesmo dia de três anos atrás. A sorte está lançada.

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