“Em algum aspecto, todo mundo é ignorante”
Na série O enigma da energia escura, que estreia nesta quarta (18.8), no GNT, Emicida debate, a partir da ótica negra, temas que afetam o cotidiano do brasileiro.
Em 2019, na época em que estava produzindo seu mais recente disco, AmarElo, Emicida resolveu se aprofundar na teoria das cores. Recentemente, voltou ao tema. “Peguei para ler e está escrito algo assim: ‘a melhor cor para destacar a informação preta é o amarelo’. Aí eu fiquei tipo ‘nossa, predestinado'”, brinca.
Passados dois anos, o clima solar do álbum que arrebatou o público, a crítica e prêmios que incluem um Grammy Latino, dá lugar a indagações em outros tons. Nesta quarta (18.8), às 23h30, o rapper estreia no GNT a série documental O enigma da energia escura, que também será disponibilizada no Globoplay.
Embora seja um grande fã do astrofísico Neil deGrasse Tyson e da série Cosmos, esta ainda não é uma investida do rapper neste campo. “Não tenho aquele orçamento dele para fazer uma nave e ficar passeando pelo universo, mas consegui montar uma navezinha”, adianta ele, que apresenta esta primeira temporada, de cinco episódios, em um cenário que lembra uma cabine espacial com ambientação que faz alusão à origem da cultura hip hop, com caixas de som antigas. A ideia da série é, partindo da perspectiva da população preta, trazer à tona temas que afetam o cotidiano de todos os brasileiros. A produção é da Laboratório Fantasma, sua hub de entretenimento, e a direção geral de Day Rodrigues (do documentário Mulheres negras – Projetos de mundo), Emílio Domingos (que assina o documentário Favela é moda) e Mariana Luiza (do curta Cascas de baobá).
De Portugal, onde chegou há alguns dias com a família e ficará pelos próximos três meses em uma residência artística na Universidade de Coimbra, dando aulas, participando de seminários e grupos de pesquisa, o rapper falou à ELLE sobre a série, a sensação de viver em um país onde a pandemia está sob controle e seus próximos projetos, que incluem até um livro de fotos:
Foto: Divulgação/Jef Delgado
Como se deu essa união da energia escura com o hip-hop e a discussão de temas relevantes para a população brasileira?
O enigma da energia escura é tipo uma dúvida da ciência, ninguém sabe de fato o que é. E o que a gente fez foi transformar esse enigma verdadeiro numa metáfora para todo tipo de informação que a gente poderia olhar e absorver de um jeito diferente. Então, nessa primeira temporada, que está elencada com uma série de assuntos que são transversais à vida brasileira, mas que são muito caros em especial para a população preta, a gente vai falar sobre desigualdade racial, sobre como o material artístico produzido por essa população foi superficializado. Vai ter um episódio que é uma verdadeira homenagem a Lélia Gonzalez, em que a gente faz uma imersão na busca linguística dela, como ela conseguiu apresentar a africanidade como elemento que deu originalidade para a língua que é falada no Brasil hoje. Tem uma informação que é muito louca. O que faz nascer essa pergunta (sobre o que é a matéria escura) no mundo da ciência é o seguinte: as estrelas, os planetas, os cometas, os asteroides, tudo isso nosso olho consegue identificar. E todas essas coisas equivalem a 4% do que existe no universo. O resto é tudo energia e matéria escura: 96% do que existe a gente não faz a menor ideia do que seja. Ou seja, nós não sabemos porra nenhuma, entendeu? E essa me parece ser uma provocação bacana para colocar na mesa agora e falar “mano, nós não entendemos nada de nada, nós precisamos conversar muito”. E acho que o programa faz isso, é uma maneira bacana de sugerir que esses assuntos têm que correr.
O quão desafiador é lançar uma série que traz essa premissa da importância de a gente adquirir conhecimento ou ao menos reconhecer que nos falta conhecimento em um momento em que a tônica do mundo é a gente ser bombardeado por fake news o tempo todo?
Pois é, vai saber o que desses 4% é verdade (risos). É uma porta de entrada. Acho que a coisa mais legal dessa conta é o seguinte: no tempo que a gente está vivendo, as discussões importantes estão sendo conduzidas de uma maneira muito arrogante. Se você não leu essa quantidade de livros, não viu esse filme, não andou com tal pessoa, parece que você não tem o direito de pertencer a uma determinada discussão, que não tem direito nem mesmo de se indignar com alguma coisa. Esse binarismo é muito perigoso. Quando a gente traz essa metáfora dos 4% e parte desse ponto de total ignorância, de alguma forma a gente funda um solo comum entre todo mundo porque ninguém conhece tudo. Tem gente que conhece coisa pra caramba, e ainda é muito pouco perto do que existe. Em algum aspecto todo mundo é ignorante. A provocação é justamente essa: a gente sabe pouco sobre nós e menos ainda sobre os outros. E aí a gente vai agora tentar interagir de uma maneira diferente com esses pontos.
Emicida em cena do documentário “AmarElo” (Netflix)Foto: Divulgação/Netflix
Você acha que de alguma maneira essa série é uma sequência do que você já vinha buscando em AmarElo? Especialmente em o AmarElo Prisma, projeto em que você reunia entrevistados em torno de uma ideia de transformação social e que já passava um pouco por essa ideia de refletir e buscar soluções.
Acho que as coisas se conectam quando a gente parte dessa minha necessidade de dialogar, mas não necessariamente um é uma continuidade do outro. O AmarElo Prisma tem um universo amplo, uma forma de existir meio didática. Ele parte do óbvio e isso é muito importante. No Enigma a gente partiu de um tema muito específico, com as temáticas muito bem elaboradas. Os entrevistados, putz, tem uns crânios, uns absurdos: Helio Santos, Sueli Carneiro, a própria Lélia… entre filósofos, escritores, acadêmicos, gente comum, onde eu me encaixo. Gente falando a partir de um tema que eu briguei muito para que a gente expandisse porque a gente não está falando de um assunto negro, por mais que a gente tenha colocado uma maioria de pessoas pretas. Quando a gente tem uma maioria de pessoas brancas tratando o assunto que for, aquilo nunca vira um assunto branco. Acho uma crueldade, quando a gente trata de um assunto que é transversal à vida da sociedade brasileira como um todo, reduzir isso a parecer que é um assunto de interesse só da população preta, porque em alguma instância o racismo ricocheteia na nossa vida de mil maneiras, e a gente acaba sendo impactado, seja na violência direta, seja nas consequências dela ou na desigualdade constrangedora que ele produz e que tem essa origem racial.
Você falou sobre ter colocado uma maioria de pessoas pretas. Pode falar um pouco mais sobre a importância dessa escolha?
Eu acho que a gente tem uma alegria e uma honra que é ser uma figura de visibilidade e poder colocar um assunto relevante em pauta, fazer esse assunto receber atenção e conseguir colocar comida na nossa mesa com esse trabalho. A gente tem uma equipe quase que majoritariamente preta, o que é muito raro. A gente já atuou em todas as instâncias do audiovisual brasileiro. Infelizmente, esse é o tipo de coisa que se a gente não provocar, não acontece naturalmente. Já que a gente tem essa posição de prestígio, que dá a liberdade de fazer isso, a gente se sentiu na obrigação, depois de entender um pouco mais sobre audiovisual também, porque a gente não podia ter feito isso alguns anos atrás. Também estamos dando nossos primeiros passos nesse universo e queremos que sejam assertivos. A gente começou de uma maneira muito bacana com os documentários, deu um passo bonito com AmarElo, e a gente quer fazer essa primeira experiência com a televisão com a mesma assertividade e capacidade de diálogo que o AmarElo já traz, a tônica da ponte, do encontro. A gente trata de alguns assuntos, mas não é dono deles. Estamos abertos inclusive a perspectivas que não concordam com a gente. Porque é assim que a gente faz com que essa discussão amadureça e frutos positivos surjam dela. Isso é muito louco; infelizmente, a própria ficha técnica já é uma revolução porque a gente está muito atrasado, passou da hora de a gente superar essa questão e todo tipo de profissional frequentar todo tipo de set.
Acha que sua experiência no Papo de segunda (GNT) influenciou ou talvez tenha despertado uma vontade de se aprofundar nesses formatos no audiovisual?
Eu tenho gostado. E quando você tem um time fazendo pesquisa, fazendo roteiro, eu acabo trabalhando menos (risos). Mas tem uma coisa legal: eu sempre gostei muito de documentário, de biblioteca, de ler. Não só de ler, mas de trocar ideias sobre as coisas que ando lendo. Então acho que, claro, a experiência do Papo de segunda me fez evoluir muito, até como pessoa. Eu era outra pessoa, uma palavra boa para definir: eu tinha uma preguiça mais instantânea de alguns assuntos. Essa é a melhor definição. Tinha assunto que vinha até mim que eu pensava, “mano, o que eu tenho a ver com isso?”. E o Papo de segunda me deu um bagulho muito louco, tipo assim, “fala aí, vamos ver qual que é a visão dessa fita”, entendeu? Talvez, se eu não estivesse lá, estaria mais centrado em fazer minha própria música, conduzir minha carreira da maneira tradicional.
“A experiência do Papo de segunda me fez evoluir muito, até como pessoa.”
O show do AmarElo chegou recentemente à Netflix. O disco ainda se desdobra em mais algum lançamento?
Tem músicas que não entraram. Eu vejo AmarElo meio Tim Maia Racional, tem mais de um disco ali. Ele foi super desdobrado. Só não sei se vou lançar na sequência agora porque a gente quer fazer outras coisas do ponto de vista de criação, de ousadia. Acho que a tônica do AmarElo é uma coisa meio inerente porque é um traço da minha personalidade, mas a gente também vai se provocar agora para trocar ideia de outras coisas. Deixar outras cores aparecerem também (risos).
E como tem sido essa experiência em Portugal?
Eu já tinha me esquecido de como é ter um presidente minimamente preocupado com o povo. Não quero nem entrar na questão política porque o presidente de Portugal não é uma unanimidade, mas ele parte de um solo comum de humanidade do qual todos partilham. Então ver campanhas, ver o poder público dizendo para as pessoas “use máscara”, “use álcool gel”, “mantenha o distanciamento”, ver que os estabelecimentos têm respeitado isso… Outro dia, fui tomar um sorvete com as crianças e o cara pediu o meu comprovante de vacinação. Eu não estava com ele. Ele falou “infelizmente, não posso deixar você entrar”. Sutil, pequeno, básico, óbvio, mas fundamental. Estou muito feliz. E estou me organizando ainda nessa rotina nova porque não começaram meus trabalhos em Coimbra. Mas sabe o que me está me deixando mais feliz aqui, de verdade? As meninas (suas filhas)… Ver a felicidade delas. A gente estava há um ano e meio em casa, há um ano e meio seguindo à risca todos os protocolos, mesmo. Então, quando a gente chegou aqui, a gente viu o impacto de ir no parque, parar na rua e tomar um sorvete, a gente se sentiu mais seguro para fazer isso. E ver o impacto nelas, a empolgação, o humor de todo mundo. E não quer dizer também que a gente atravessou isso e para nós é passado. É um solzinho tímido no horizonte, mas ainda tem uma situação de pandemia, só que essa camada de humanidade sensível faz toda a diferença. E eu não vejo termômetro melhor do que as crianças. Elas estão felizes de novo.
Para além da experiência na universidade, você sempre foi entusiasta da ideia de aproximar musicalmente Brasil e Portugal. Pensou em algo neste sentido durante essa temporada?
Pensar eu pensei, mas fico tendo essas ideias que enchem a gente de coisa (risos). A brisa mais maluca que estou agora é essa: peguei minha marmita antiga, que eu usava pra trampar. Tem uma técnica de fotografia que chama pinhole, antiga, uma foto de câmera escura antiga, tipo a mãe das câmeras fotográficas. Eu mesmo fiz uma. Aí eu tiro fotos. E o que eu tô fazendo: falei “cara, quer saber, eu vou fazer um livro de fotografia do Porto (cidade onde está morando) só usando essa técnica de pinhole”. E está dando certo.
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