Uma história da vida íntima

Mostra em Paris investiga por meio de objetos e mobiliários como a percepção da esfera privada evoluiu do século 18 aos dias atuais, refletindo também sobre o papel da mulher na sociedade.


Mulher se olha no espelho "Bona, Charlottesville" (2015), imagem da artista Zanele Muholi, presente na mostra que investiga a história da vida íntima
"Bona, Charlottesville" (2015), da artista Zanele Muholi Foto: Galerie Kvasnevski



Até o século 20, na região da Bretanha, França, as habitações rurais tinham como uma das principais peças de mobiliário as camas fechadas (“lit-clos”, em francês). Cobertas com placas de madeira nas laterais, elas tinham a dupla função de proteger contra o frio e assegurar a privacidade em lares onde ainda não havia uma divisão por cômodos, como conhecemos hoje, ao menos no Ocidente.

No início dos anos 2000, os irmãos e designers bretões Ronan e Erwan Bouroullec fizeram uma releitura contemporânea dos lit-clos em uma edição limitada. Passados quase 25 anos, as camas-fechadas dos Bouroullec são um dos pontos de partida de L’intime: de la chambre aux réseaux sociaux (O íntimo: do dormitório às redes sociais), no Museu de Artes Decorativas (MAD), de Paris. A exposição, em cartaz a partir desta terça-feira (15.10), discute as mudanças na percepção do que é público e privado entre o século 18 e os dias de hoje, por meio da arquitetura, do design e da decoração, com a curadoria de Christine Macel, ex-diretora do museu e atual assessora científica e artística do Conselho de Diretores.

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Sofá Bazaar (1968), do Superstudio, em sintonia com o movimento hippie Foto: C. Toraldo di Francia/ Superstudio/Arquivo Filottrano

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Para Christine, as tais camas são um exemplo emblemático de como a noção de intimidade foi evoluindo com o tempo. O conceito de um dormitório para casal, por exemplo, só seria incorporado entre os anos de 1800 e 1900. “Na Paris do fim do século 19, quase 80% das casas da cidade tinham um único dormitório para o casal e seus filhos. Todos dormiam juntos.”

A exposição reúne 470 itens, entre pinturas e fotografias – a seleção de arte tem obras de Henri Cartier Bresson e Nan Goldin, entre outros –, além de móveis e objetos. Camas, poltronas, sofás, cadeiras sanitárias, banheiras, brinquedos sexuais etc. aparecem divididos por temas ligados à intimidade, como sono, erotismo, sexualidade, beleza, higiene, o jeito de estar junto, promiscuidade e desejo de isolamento.

“Na Paris do fim do século 19, quase 80% das casas da cidade tinham um único dormitório para o casal e seus filhos. Todos dormiam juntos” Christine Macel

A curadora afirma que a exposição não tem como objetivo tratar da história de uma indústria específica, mas da relação das pessoas com seus itens. “A seção dedicada ao mobiliário doméstico reflete, por exemplo, desde a tensão que existe entre o impulso primordial de se proteger, se isolar, o papel cumprido pelos móveis nos anos 1950 e 60, até fatores como o movimento hippie e a revolução sexual.” Como exemplo, ela cita o sofá modular gigante Bazaar (1968), do coletivo italiano Superstudio, que acomodava uma dezena de pessoas – uma proposta completamente antagônica à ideia de isolamento das décadas anteriores.

A vida íntima das mulheres

L’intime também provoca reflexões sobre o papel da mulher na sociedade. Christine lembra que, com a evolução do capitalismo, passamos a ver a mulher mais confinada à vida privada, cuidando da casa e da família, como visto nas representações da exposição. “Por muito tempo, a ideia de intimidade foi associada ao corpo feminino: mulheres nuas, em seus rituais de cuidados pessoais. No século 19, foi ainda pior porque a burguesia separou o público e o privado, o profissional e o familiar. As mulheres são representadas como parte da decoração, passivas, lendo um livro, por exemplo. Já os homens aparecem vestidos e com a postura de quem vai conquistar o mundo.”

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Sex toy criado pelo designer Eric Berthès e pela estilista Sonia Rykiel Foto: Divulgação

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A curadora também quis explorar a questão de gênero no contexto da beleza – para ela uma construção que ocorre na esfera íntima. “Ao transitar do privado para o público, como você aparece, que imagem compartilha?”, indaga. “No século 18, havia homens e mulheres usando os mesmos produtos, com os mesmos resultados”, diz Christine. “Mas isso não era tido como algo que definisse a sua individualidade. O que havia era uma máscara a ser usada perante a sociedade, de maneira uniforme.” Penteados, escovas e batons não mudavam, salienta. Essa ideia de uniformidade permaneceu forte na sociedade até os anos 1960, quando ocorreu uma explosão da individualidade, com reflexos nos produtos consumidos, a exemplo das tinturas para cabelo com várias tonalidades. “Houve uma mudança sociológica, da uniformidade para a diversidade. E hoje você tem essa ideia de ser o que ou quem quiser.”

A higiene é outro tópico importante da exposição. Christine destaca que muitas pessoas hoje se acham mais liberais do que aquelas que viveram em outras épocas, porém não é bem assim. “No século 18, as mulheres tinham serviçais para lavar seu sexo. Passavam duas horas conversando com alguém, enquanto se limpavam e vestiam. Hoje existe mais comedimento, e você não urinaria em público, porque ficaria envergonhado. Mas isso era algo comum no século 18, até mesmo entre os aristocratas em Versalhes.”

“No século 18, as mulheres tinham serviçais para lavar seu sexo. Passavam duas horas conversando com alguém, enquanto se limpavam e vestiam” Christine Macel

Presente no acervo do museu, uma coleção de urinóis do século 18 ajuda a ilustrar a questão. Eles eram usados por mulheres em público, não importa onde, mesmo diante de um padre, em sua pregação em uma igreja. “Os ‘bourdaloues’ eram objetos muito apreciados na época, inclusive por presidentes, monarcas e aristocratas, por serem sofisticados visualmente. Levavam o nome de um padre, Louis Bourdaloue, justamente porque suas missas duravam muito.”

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Mulher sentada à beira de uma banheira e lavando sua nuca (1880-1895), de Edgard Degas Foto: © RMN-Grand Palais (Musée d’Orsay)/Hervé Lewandowski

O caráter político de L’intime ecoa outras preocupações de sua curadora. Ela evitou olhar somente para os costumes dos ricos. Por isso, uma parte da exposição é dedicada à ideia de precariedade. “Foi algo a respeito de que me questionei muitas vezes: o que uma pessoa em Gaza, Tel Aviv e Ucrânia pode considerar como um lugar seguro, privado, íntimo? Daí a minha pesquisa sobre a intimidade em tempos de precariedade, como em invasões, guerras, numa prisão ou em um hospital. Como você pode cuidar de si mesmo nesses contextos?”, indaga, citando como exemplo uma vestimenta criada pelo estilista japonês Kosuke Tsumura que faz as vezes de um kit de sobrevivência, exibida na mostra.

Outro tópico é o estado de hipervigilância. Das câmeras de segurança e lentes de drones à conexão ininterrupta às redes sociais, a exposição questiona maneiras de se expor, ou não. Christine convidou dez influenciadores famosos para discutir o que eles consideram como esfera privada. “Muitos falaram que a preservam. Mas a verdade é que vemos uma falsa intimidade, uma mise-en-scène, que se torna um produto”, diz a curadora. A privacidade também pode ser uma commodity.

L’intime – de la chambre aux réseaux sociaux: de 15 de outubro a 30 de março de 2025, no Museu de Artes Decorativas (107 Rue de Rivoli, 75001, Paris, França). 

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