Gal Costa foi expressão máxima do conceito de intérprete brasileira

A comoção pela morte da cantora é natural porque, entre muitos motivos, marca o início do fim de uma época luminosa de nossa música, cujos filhotes se esparramam por todo o Brasil.


Foto: Getty Images



A voz de Gal Costa tornou-se monumental para a história da música brasileira por um conjunto rico e complexo de fatores, que passam pelo impacto geracional, pelo quilate dos autores e do cancioneiro inédito revelado por ela, pelo gesto comportamental que a acompanhou, pela carga erótica, pela evidente qualidade técnica.

Somando isso tudo e mais um caleidoscópio de motivos, a artista hipertrofiou como ninguém mais, nem antes nem depois, o conceito de intérprete brasileira. Mais que intérprete, alçou-se à condição de porta-voz de todo um imaginário, de todo um Brasil. O significado da entidade portada por sua voz desabrochou com a Tropicália, em 1968, e se estilhaçou numa infinidade de fragmentos que ainda hoje seguem caindo feito chuva mansa sobre nossas cabeças.

O caldo cultural-comportamental em que o prodígio se deu talvez explique por que o nome de Gal soa maiúsculo mesmo numa geração de cantoras que também inclui Elis Regina, Maria Bethânia, Nara Leão e Clara Nunes, ou noutras gerações quaisquer, de Carmen Miranda a Tulipa. Em trio com Caetano Veloso e Gilberto Gil, a intérprete baiana apaixonada pela voz de João Gilberto foi à história do Brasil como trampolim não só de alegria e entretenimento, mas de liberdade, rebelião, modernidade e resistência, num tempo de forte estrangulamento político. Juntos, os três deram rosto e corpo a um tripé constituído de liberdade sexual, identidade feminina e igualdade racial, num país escravagista, diante de um patriarcado branco de generais que prendia e arrebentava a olhos nus. Não à toa, Caetano e Gil foram enviados ao exílio. Não à toa, Gal ficou para portar a voz dos dois, dos três. “Atenção, tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso/ atenção para o refrão:/ é preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte”, havia avisado “Divino, maravilhoso”, de Caetano e Gil, no festival de 1968.

Nos dez primeiros anos de carreira, Gal portou um discurso de grande potência, mesmo sob as ininterruptas tentativas de silenciamento por parte de um aparato estatal temeroso do progresso e sequioso por regressão. O “barato total” era transmitido a partir das dunas hippies formadas por uma obra na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, apelidadas muito simbolicamente de “dunas da Gal”. Saía pela voz da cantora a partir das cabeças não só de Caetano (autor de “Baby”, “London, London”,“Como dois e dois”) e Gil (“Língua do P”, “Mini-mistério”), mas de Roberto Carlos e Erasmo Carlos (o clássico “Meu nome é Gal”, “Sua estupidez”), Jorge Ben Jor (“Que pena”), Novos Baianos (“Dê um rolê”), Tom Zé, Jards Macalé, Luiz Melodia, Waly Salomão, João Donato, Jorge Mautner…

Além de ajudar a erguer as bandeiras de seus contemporâneos, Gal reinterpretou, desde sempre, os pais fundadores da música nordestina, Luiz Gonzaga (“Assum preto”) e Dorival Caymmi (“Modinha para Gabriela”), entre outros como Ismael Silva, Cartola, Lupicínio Rodrigues, Ary Barroso e Adoniran Barbosa. Carreira afora, emprestou sua voz para a fala de gente tão diversa quanto Chico Buarque, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Marina Lima, Tom Jobim, Djavan, Arrigo Barnabé, Cazuza e Frejat, Lulu Santos, Joyce Moreno, Olodum, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Tim Maia, Adriana Calcanhotto, Moreno Veloso, Marcelo Camelo, Marisa Monte, Nando Reis, Silva, Tim Bernardes, Emicida, Marília Mendonça…

O discurso ficou mais maciço em 1976, quando o trio Caetano-Gal-Gil se reuniu para uma celebração pós-tropicalista e formou um quarteto com Maria Bethânia, os Doces Bárbaros, um ponto culminante do movimento hippie à brasileira. Dali surgiu “O seu amor”, de Gil, primeira de uma série de pás de terra atiradas pela cultura brasileira sobre o entulho ditatorial que se arrastaria ainda pelos anos 1980. “O seu amor/ ame-o e deixe-o/ livre para amar”, cantava o quarteto, em resposta em pique de amor livre ao slogan autoritário “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Elaborando comunicação sem intermediários entre política e comportamento, esse foi o mais sólido discurso que Gal portou ao longo das décadas e que se reflete nos poliamores e relacionamentos abertos dos dias atuais. Nos últimos meses de vida, Gal exibiu inúmeras vezes o L de Lula como gesto anti-autoritário, o que faz todo sentido se pensarmos nesses ciclos que se repetem sempre, 1968-1976-2022…

Representante de uma categoria de intérpretes que perdeu espaço no presente, Gal pertenceu a uma das muitas gerações cujas mulheres foram sistematicamente caladas na música, a não ser que fosse para veicular discursos alheios, na maior parte das vezes masculinos. Foi um traço de sua época, e a existência de Gal é matriz para a existência, hoje, de centenas de cantoras-compositoras pelo Brasil afora. Portando outras vozes, ela brilhou mais quando os discursos cantados foram mais fortes, brilhou menos nas fases de contramão. Apenas duas vezes o nome Gal Costa apareceu assinado como autor, uma delas em trio com Caetano e Gil, em “Quando”, dos Doces Bárbaros. “Rita Lee/ com todo prazer/ quando a governanta der o bode pode crer que eu quero estar com você/ superstar com você”, dizia a letra ligeira, citando única colega de geração que conseguiria furar o cerco masculino e se consolidar como autora no chamado mainstream, inclusive com letras docemente feministas naqueles anos 1970. A comoção pela morte de Gal Costa é incontornável e natural, entre muitos motivos porque marca o início do fim de uma época luminosa de nossa música e cultura, cujos filhotes e filhotas se esparramam exuberantes por todo o Brasil.

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