Itamar Vieira Junior lança livro de contos, depois do fenômeno “Torto Arado”

Doramar ou a Odisseia reúne histórias inéditas e já publicadas sobre as surpresas da vida; escritor baiano fala sobre como equilibra a escrita e seu trabalho no Incra e o caminho para um novo romance.


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Torto arado inspirou até meme, algo improvável para um romance ambientado no sertão nordestino, o que dá boas pistas sobre o alcance do livro. Desde seu lançamento em 2019, o título conquistou tanto o público (com um espaço cativo na lista dos mais vendidos) quanto a crítica (venceu o prêmio Leya, Jabuti e Oceanos) e teve seus direitos de adaptação comprados por Hetor Dhalia, catapultando a carreira do escritor e também geógrafo Itamar Vieira Junior.

No rastro desse sucesso, o autor baiano lança o sucessor de Torto arado, Doramar ou a odisseia (Todavia). O novo livro reúne 12 contos: uma seleção de sete histórias já publicadas em Oração do carrasco (2017), segundo título de Itamar, e mais outras cinco inéditas. “Acho que a cada vez que sento para escrever os desafios são os mesmos”, diz o escritor por telefone à ELLE, de Salvador, onde mora. “São histórias com a mesma alma, vamos dizer assim, de Torto arado“. O livro não se restringe apenas ao universo do campo, conta, “há lugares que a gente não pode nomear”, no litoral, na cidade grande e até mesmo personagens conhecidos, como o artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1911-1989). “Diria que o tema central é perceber como é a vida. Ela é imprevisível, é uma grande odisseia, cercada de aberturas, de surpresas boas ou não. Acho que essa é a essência dessa coletânea.” Repleto de protagonistas femininas, a coletânea é dedicada às mulheres que fizeram parte do caminho do escritor.

Além de ser um nome central da literatura contemporânea hoje, ainda bastante requisitado pelo sucesso de Torto arado e às voltas com a divulgação da seu novo livro, Itamar segue no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), onde trabalha há 15 anos e que já o levou a muitas andanças pelo país. “Eu me sinto privilegiado por ter um trabalho que me coloque em contato com lugares e pessoas novas, com um mundo muito diverso e que me interessa desse Brasil tão desigual e tão plural. E isso, de alguma forma, alimenta a minha vontade de narrar, a minha vontade de criar, de recontar essas histórias, talvez para um público maior, que possa acessá-las através da literatura. Ela também surge como uma homenagem a essas pessoas”.

Na entrevista a seguir, Itamar fala sobre a “vida dupla”, entre o trabalho e a escrita, o interesse ainda criança pelos livros, a expectativa em torno de Doramar e o esboço de um novo romance.

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Foto: Divulgação

Como você se prepara para a expectativa em torno de Doramar ou a odisseia?
É muito difícil prever a repercussão do leitor. Torto arado conquistou um público amplo e acredito que muitas dessas pessoas que leram o romance podem se interessar por essa história, mas não consigo projetar como será, até para não criar uma expectativa para mim mesmo, para que isso não atrapalhe, para que eu continue com o meu propósito de escrita. Mas a gente sabe que há livros que seguem caminhos inesperados como foi com Torto arado. Juro para você que nunca imaginei que uma história que se passasse no sertão nordestino, protagonizada por famílias com personagens negras, de trabalhadores rurais, fosse fazer um sucesso no Brasil do século 21, esse país tão diverso e cada vez mais urbano. Doramar também está com um percurso de surpresas. Que encontre também leitores que se reconheçam nas histórias.

Quando você participou do Roda viva, mencionou que teve algumas dúvidas sobre Torto arado e a narrativa. Doramar ou a odisseia é uma coletânea, guarda diferenças, mas você tem uma segurança maior em relação a este livro, até pela experiência que adquiriu com Torto arado? A sensação de lançá-lo é diferente?
Cada livro é um livro novo e a gente nunca sabe como ele será recebido. Há histórias que foram escritas antes e depois de Torto arado nessa coletânea. Acho que a cada vez que sento para escrever, os desafios são os mesmos. Espero que seja sempre assim, que eu me sente em frente a uma folha em branco e as mesmas sensações, de ansiedade, insegurança, de “será que é assim?”, “será que deve ser de outro jeito?”, me acometam para que escrever seja sempre essa viagem que a gente não sabe aonde vai dar.

O novo livro traz contos inéditos e já publicados. Qual foi o teu critério de escolha para que eles fizessem parte da coletânea?
Eu diria que o tema central é de perceber como é a vida. Ela é imprevisível, é uma grande odisseia, cercada de aberturas, de surpresas boas ou não. Acho que essa é a essência dessa coletânea. Histórias atravessadas por esse sentimento de que estaremos diante de nós mesmos, em algum momento da vida, sozinhos. E de uma maneira que a gente vai compreender a imensidão que é a vida.

O que te interessa na literatura hoje?
Sou muito de fases. Há períodos em que eu me interesso pela literatura brasileira e outros que vou para a literatura estrangeira. Estou vivendo um período muito diferente, porque se antes eu escolhia as minhas leituras, agora me lançam desafios para escrever sobre determinado livro, um prefácio. Parece que até isso me foi tomado, essa capacidade de escolher os livros que estou lendo. Mas nos últimos tempos – por sorte, tenho lido muita coisa boa, mesmo –, tenho me interessado muito pela arte, pela experiência decolonial, que foi construída na América ou na Europa, a partir da experiência daqueles que foram colonizados e nos dão um retrato do seu mundo a partir daquilo que são, do lugar que estão e isso tem me ajudado a compreender o Brasil, porque temos uma história muito semelhante. A nossa história é feita de migrações, da diáspora africana, da literatura europeia, da própria transumância dos povos indígenas, que tiveram que se deslocar de muitos lugares para poder sobreviver. É assim que tenho percebido.

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Foto: Divulgação/Adernor Gondim

Como é na prática seu trabalho no Incra?
O Incra tem um leque de políticas públicas voltadas para o campo. Já trabalho lá há mais de 15 anos e é um universo. Há coisas que nem pude acessar, de tanta que se realiza. Já trabalhei desde educação do campo, projetos que envolvem recursos públicos, coordenação de convênios com universidades até documentação de trabalhador rural, assistência técnica. Tenho trabalhado com regularização de territórios quilombolas. Nos últimos anos, acho que a gente tem vivido um retrocesso porque diminuiu drasticamente o número de políticas, a assistência que se dava a essa camada mais vulnerável da sociedade, que são os trabalhadores e trabalhadoras rurais, o número de novos assentamentos.

Seu interesse pela geografia surgiu com a literatura?
O que surgiu primeiro foi a literatura. Quando aprendi a ler, imediatamente comecei a escrever. Claro, coisas curtas. Era apaixonado por leitura. Primeiro, eram os quadrinhos, depois os livros infantojuvenis. Quando acabaram os livros de literatura da pequena biblioteca da escola, restaram os de história e geografia, e aí surgiu esse interesse. O meu interesse pela geografia é de um explorador mesmo, no sentido mais primevo da palavra, aquele que desbrava lugares novos, conhece povos novos. Penso que isso é algo que amplia o meu repertório narrativo, que faz parte da minha literatura, dessa forma como eu observo e compreendo o mundo. Acho que meus pais não estimularam essa veia artística no sentido muito prático, acho que queriam que eu tivesse os pés no chão. A gente sabe que quem vive de arte no Brasil, com honrosas exceções, está sujeito a tudo, porque é um país que não valoriza seus artistas, estão sempre na corda bamba para se manter. Acho que por isso também comecei a levar uma vida dupla, que tinha a literatura, que era onde eu me realizava, e uma outra vida, voltada para as coisas práticas.

A vida do escritor e a do servidor público caminham juntas ou você precisa se retirar em algum momento para a literatura?
Tenho conciliado, não posso lhe falar sobre o futuro, mas é ainda assim. Aprendi a administrar o tempo de uma maneira muito dedicada. É claro que me sinto privilegiado por ter um trabalho que me coloque em contato com lugares e pessoas novas, com um mundo muito diverso e que me interessa desse Brasil tão desigual e tão plural também. E isso, de alguma forma, alimenta a minha vontade de narrar, a minha vontade de criar, de recontar essas histórias, talvez para um público maior, que possa acessá-las através da literatura. Ela também surge como uma homenagem a essas pessoas. Para que isso aconteça, eu preciso equilibrar. Já recusei convites para dar aula, queria me dedicar à literatura. Queria que o pouco do tempo que eu tinha fosse para realizar algo que, para mim, é prazeroso também. Não só prazeroso, é algo fundamental, é uma maneira que eu me conecto ao mundo, ao Brasil e reflito sobre ele. Então, sempre tive essa disciplina. Só para você ter uma ideia, para escrever Torto arado, chegava em casa por volta das 18h, tomava um banho, fazia uma refeição e passava horas escrevendo. Era dia de semana, sábado, domingo, quase todos os dias.

“A próxima história está entre o mundo rural e a cidade e ainda trata de questões que me são caras, como a decolonialidade, o acesso à terra.”

Essa rotina regrada, em que você se dedicava à literatura à noite e nos fins de semana, começou quando?
Na verdade, desde sempre. Para poder me sustentar na universidade, para pagar o transporte, as cópias que eu fazia, ajudar com as despesas da casa, trabalhei como empacotador de supermercado, balconista de farmácia, com inúmeras coisas; fazendo estágio e sempre estudando. Depois, fui fazer mestrado e, ao mesmo tempo, entrei no serviço público. Depois, escrevi literatura, quando tive um tempo livre. Voltei para a universidade para fazer o doutorado (Itamar é doutor em estudos étnicos e africanos), só me afastei no último ano para poder escrever a tese. Quando terminei, esse projeto antigo que era Torto arado voltou, porque eu senti um vazio sem a tese. Passei 18 meses escrevendo, revisando, reescrevendo Torto arado, todos os dias. Mas sempre foi uma vida de muito trabalho, então, para mim não é nada de outro mundo. Acho que dá um ritmo, é como se fosse uma locomotiva se movendo sem parar.

Você já planeja um novo romance?
É algo que já era para estar bastante avançado, mas Torto arado me tirou muito o tempo. Acho que o sucesso do romance se deve muito também a minha disponibilidade quando era provocado a aceitar o convite de grupos de leitores, deve muito aos leitores que foram divulgando pouco a pouco. Mas isso terminou tirando um pouco o meu tempo de escrita e agora eu estou tentando encontrar um equilíbrio. Estou neste momento dedicado à divulgação de Doramar, ainda falo sobre Torto arado, mas vai chegar um momento que eu vou precisar ficar mais recluso, me retirar desse espaço público porque o meu projeto literário é maior do que um livro ou do que outro, é um projeto de vida. É olhar a vida pelos olhos da literatura, seja como leitor, seja como escritor. Sobre o próximo romance, não esgotei esse olhar do homem sobre a terra. Então, a próxima história está entre o mundo rural e a cidade e ainda trata de questões que me são caras, como a decolonialidade, o acesso à terra. Acho que isso vai voltar no próximo script que comecei no início da pandemia. Cheguei a escrever umas 40 páginas, mas tive que interromper, porque o Torto arado cresceu de tal forma que me ocupou todo o tempo. Estou ansioso para voltar.

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