Luedji Luna canta a solidão negra
Baiana lança novo álbum, se apresenta na posse de Lula e fala sobre a ausência de intérpretes negras em festivais.
A solidão das pessoas pretas, particularmente as mulheres pretas, é uma preocupação central na obra musical de Luedji Luna e foi colocada à prova uma vez mais em 23 de novembro, quando foi anunciada a escalação dos artistas brasileiros que abririam o show da estadunidense Erykah Badu no Nômade e Wehoo Apresentam, em São Paulo, em 22 de janeiro. Causou espécie entre a militância negra o fato de que artistas brancos – a cantora Céu e o grupo Bala Desejo – haviam sido escolhidos para secundar uma artista negra de soul, rhythm’n’blues e hip-hop. A cantora e compositora baiana de 35 anos expressa o choque: “Se a gente conseguiu ser invisível no óbvio, como vai ser nos outros festivais? Foi ofensivo, bem triste, de a gente se falar por WhatsApp chorando”.
O episódio precipitou uma mobilização coletiva entre artistas negras brasileiras, concretizado num manifesto público em tom firme. “Se o dinheiro que promove os grandes festivais são de imensas labels brancas, o mínimo que queremos é que suas curadorias sejam negras, femininas e indígenas, em que a representatividade não seja o DJ Alok usando um cocar ou a Claudia Leitte se intitulando ‘nega lôra’”, dizia o texto, assinado por Luedji com Anelis Assumpção, Bia Ferreira, Brisa Flow, Ellen Oléria, Gaby Amarantos, Kaê Guajajara, Karol Conká, Larissa Luz, Liniker, Lio, Luciane Dom, Mahmundi, Majur, Marissol Mwaba, Tássia Reis, Teresa Cristina e Xênia França.
Henrique Falci
Em seu recém-lançado terceiro álbum, BMDA Deluxe, a artista nascida em Salvador canta a solidão negra, apesar de estar construindo uma história diversa dessa, ao lado do marido, o rapper gaúcho Zudizilla, e do filho Dayo, nascido em 2020. A solidão de que ela fala não diz respeito apenas à estrutura social que bloqueia a expressão do amor romântico e/ou sexual entre pessoas pretas, e Luedji explica que seu filho de 2 anos já vive na pele modos velados de discriminação e preconceito. “A solidão começa aí, de criança”, expõe.
Após a repercussão negativa da escalação sem artistas de maior identificação artística com Erykah Badu, Céu e Bala Desejo se retiraram do festival, em nome de uma denúncia que afirmaram considerar justa. O Nômade Apresenta reformulou o elenco nacional, mantendo a escalação do trio Gilsons (formado por um filho e dois netos de Gilberto Gil), mas agora trazendo Larissa Luz (com participação de Anelis Assumpção), Majur e os DJs Nyack e Tamy.
Na entrevista abaixo, Luedji fala sobre identidade racial, diversidade sexual e de gênero, sua participação no show coletivo da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília, em 1º de janeiro, e a tomada de poder da mulher negra, não apenas como musa inspiradora de canções, mas também como produtora de intelectualidade.
Henrique Falci
O álbum novo causa alguma confusão, tem o mesmo nome do anterior (abreviado para BMDA), mas é um disco inédito completo. Por quê?
A ideia era prolongar a vida do Bom mesmo é estar debaixo d’água (2020), porque fiquei sem circular com ele, e não queria encerrar essa história. Eu tinha muitas canções que tranquilamente poderiam estar no Bom mesmo original e não entraram, então é um “deluxe”, mas com um caráter de lado B, de volume 2. Depois que a pandemia acabou, entre aspas, a gente rodou todos os festivais, fez todos os lugares que podia. Em janeiro, vou descansar e me preparar para o show novo. Imagino que o próximo ano vai ser mais intenso ainda, considerando que com o novo governo a cultura vai voltar a ter um respeito, uma atenção (com a gente). Vou descansar para voltar forte.
Você vai participar do show da posse de Lula em Brasília?
Recebi o convite via WhatsApp, e topei de cara. É um momento de muita esperança para o povo brasileiro, vai ser uma honra fazer parte desse momento histórico.
Como você viveu o episódio do Nômade Apresenta?
Eu e minhas irmãs de cor nascemos num momento muito frutífero e positivo por conta das brechas do mercado que possibilitaram que a gente existisse. Mas, com o passar dos anos, fui percebendo que parece que o mercado quer insistir no mesmo, nos velhos corpos, nas mesmas vozes, na mesma estética, na mesma beleza. Se for comparar a ascensão, a visibilidade e o investimento em uma cantora negra, em comparação com uma branca, a desigualdade e a disparidade são enormes. Chega a ser absurdo, distópico, porque é tão descarado… As pessoas e o mercado não têm nem vergonha. É um pacto estabelecido, já está posto que a branquitude se apoia, se escuta, se investe. É muito difícil perceber isso.
“Se for comparar a ascensão, a visibilidade e o investimento em uma cantora negra, em comparação com uma branca, a desigualdade e a disparidade são enormes.”
O argumento de que não existem muitas cantoras negras não é mais aceitável.
Tem muitas. Ellen Oléria acabou de lançar um disco chiquérrimo, Bia Ferreira também. Xênia França, de todas nós, é a que mais se conecta com Erykah Badu, é a mais afrofuturista. E a gente não foi considerada. Não somos consideradas para tocar num festival que tem Erykah Badu como headliner. Se a gente conseguiu ser invisível no óbvio, como vai ser ano que vem, quando começar o ciclo de festivais? Foi realmente ofensivo, bem triste, de a gente se falar por WhatsApp chorando. Não mandamos um recado para esse festival específico, mas para o mercado da música e os festivais como um todo. Enquanto não tiver diversidade na curadoria e a gente não estiver presente nos espaços de decisão, vão ser as mesmas caras de sempre. Achei positiva a manifestação dos próprios artistas escalados, de entender e reconhecer que não fazia sentido. É o momento também de os artistas brancos que se dizem antirracistas e progressistas se posicionarem e cederem lugares de privilégio.
As cantoras negras brasileiras têm um grupo de WhatsApp?
A gente começou a se ligar, “amiga, você viu isso aqui?”. Aí fizemos um grupo, cada uma foi adicionando a cantora que conhecia. Não sei se esse movimento das cantoras negras vai continuar, se a gente vai pensar em outras coisas. A gente precisa se ver, se juntar para celebrar nossas conquistas, não só se mobilizar a partir do racismo. É outra coisa que faz falta, fazer um churrasco, ver um jogo, o show de fulano. Espero que seja um grupo para construir afeto. A Liniker acabou de ganhar um Grammy (Latino), é uma história muito bonita que estamos construindo. Espero que as pessoas reconheçam que a gente está caminhando para um país mais bonito, que realmente represente o que ele é. Somos mais da metade da população, por que temos que ser o outro? Não temos que ser a alteridade, a diferença. O Brasil sempre foi isso.
A identidade feminina negra é um ponto central para você, não?
É uma geração, eu não surjo só. Tem Larissa, Xênia, Anelis, Liniker. O traço mais marcante dessa geração, para além de ser formada por muitas cantoras, é a composição. É a gente se apropriar da narrativa, ser donas do nosso próprio discurso, sair da subserviência, do empírico, para o lugar da mulher preta com técnica, produzindo intelectualidade, epistemologia, literatura. Isso é que é o bonito da minha geração. Acho que a maior disputa é na composição, e no lugar da mulher negra produtora de intelecto, criativa, não só a diva, a boa intérprete, a bonita. Nesse disco, a mulher negra é a grande musa, a grande inspiração, em boa parte das canções. No samba e no rap, a mulher preta aparece como diva, como musa, mas de uma mulher preta para outra mulher preta ainda não há muito o recorte do amor, do amor lésbico, de uma mulher negra para outra. É outro traço desta minha geração, de corpos dissidentes, não normativos.
Henrique Falci
Por que o tema da solidão negra aparece tanto nas suas letras?
Nesse disco, aparece em algumas faixas, porque são canções antigas. “Pele” é a primeira canção que fiz na vida, quando tinha 17 anos e dei meu primeiro beijo, fiquei toda emocionada e fiz a música. Nunca tive coragem de gravar, achava boba. Nesse disco tive coragem, peguei o caderno antigo, com as escrituras e histórias antigas, e essa voz do passado experienciou a solidão, o amor platônico, o término, o erro, o apego. Não reflete minha realidade hoje, estou casadíssima, bem casada, bem amada e bem feliz (risos). Mas ainda é uma realidade para várias mulheres pretas, e não só para elas, num país que é racista como o nosso. O tema é muito profundo, com várias camadas, e o debate ainda está raso. Por exemplo, Dayo é um menino preto num bairro da zona oeste de São Paulo, a Vila Romana, de italianos, onde a maioria é branca. É um dos poucos pretos da escolinha dele, embora eu tenha escolhido uma escola super engajada, com professores e alunos pretos. Mas ele ainda é minoria nesses espaços, no parquinho, no prédio. A solidão começa aí, de criança. Não é só no âmbito do romance, do amor romântico. Fico pensando, “meu Deus, preciso fazer um irmão ou irmã para esse menino ter amigo”. Numa certa medida, meu filho já vive a experiência da solidão. Mas a mãe dele vai resolver, que ela é arretada (risos).
O beijo aos 17 anos foi bom?
Beijei muito tarde, era um rapaz bonito do Curuzu (bairro de Salvador), no sofá da minha casa. Minha mãe estava dormindo. Foi muito bom. Eu era aquela amiga que só ficava escutando, dava conselho não sei como, porque não tinha vivido nada. Foi uma explosão de sentimento quando beijei. E só beijei, nem fiz sexo nem nada.
“Numa certa medida, meu filho já vive a experiência da solidão. Mas a mãe dele vai resolver, que ela é arretada (risos).”
Foi um rapaz, mas podia ter sido uma moça?
Poderia ter sido uma mulher, mas não existia essa possibilidade, porque ainda era tudo muito heteronormativo. Na minha escola não tinha a figura da gay, da lésbica, da bi. A primeira vez que fui saber o que era isso foi numa novela que tinha um casal lésbico, nem se beijavam, mas ficava subentendido. Em seguida, passava o clipe de uma dupla russa, t.A.T.u., que foi o primeiro beijo lésbico que vi, aí que comecei a considerar que isso era uma possiblidade. Era muito velado, sou de 1987, não é como hoje em dia, que é tudo escancarado, graças a Deus. Se já demorei para beijar na boca, imagine para descobrir que era bi e ficar com mulher. Foi só na faculdade.
Como uma cantora e compositora de Salvador e um rapper de Pelotas (RS) se encontraram e fizeram um bebê em São Paulo?
É a história de São Paulo, né? Moro aqui há sete anos, Zudizilla há quatro. Fiz um projeto com DJ Nyack, com remixes do meu primeiro disco, Um corpo no mundo (2017), e para cada produção a gente convidou um rapper: Tássia Reis, Djonga, Zudizilla. Foi nessa ocasião que a gente se conheceu, e de show em show, aquela paquera, o menino nasceu. A gente está há esse tempo morando junto e criando Dayo. Ele nasceu no auge da pandemia, em julho de 2020, junto com o disco Bom mesmo é estar debaixo d’água, que veio em outubro.
Você sempre quis ser mãe?
Sim. Em várias letras das minhas canções eu trazia a maternidade, mesmo sem ser mãe. Era algo que eu ansiava mesmo. Chegou um momento da minha vida que me senti madura, com a carreira estável e pronta para ser, não foi um acidente. Por conta da pandemia, até o Dayo ter 1 ano e pouco, eu, ele e o pai ficamos grudados. Agora, já está uma loucura, a gente está aprendendo a se organizar de um jeito diferente.
A contracapa do novo álbum Divulgação
Como foi seu começo como artista?
Sou filha de dois funcionários públicos, minha mãe é economista e meu pai é historiador. Eles se conheceram bem jovens, na faculdade, num contexto da militância do movimento negro que surgia em Salvador. Foi o início de uma geração de negros que conseguiram ingressar na universidade. Me tiveram com 27 anos, foram pais jovens. Fui uma criança desejada, planejada. Tive a sorte não só de nascer em Salvador, mas nessa família com uma consciência racial muito sólida. Desde criança tive bonecas pretas, eles tentavam me cercar de referenciais, me proteger. Fizeram o melhor que podiam, mas o mundo é o mundo, né? Não foi o suficiente para me blindar da violência, mas me deixou pronta para enfrentar as violências comuns para qualquer criança negra. Basicamente, minha educação musical veio da minha casa, porque, embora meus pais não fossem músicos, se escutava muita música em casa. Eles não queriam que eu fosse cantora, mas foram minha primeira influência.
Hoje se fala muito sobre afrofuturismo, afropunk. Como você situaria seu som?
Quando surgi, eu falava que era MPB, que a gente precisava ter mais referências de cantoras negras cantando e compondo para a esse gênero. Hoje em dia, não sei se faço tanta questão dessa disputa, sabe? Eu não sei o que estou fazendo (risos), sinceramente. É óbvio que o jazz é minha escola. É música negra essencialmente, mas já não sei mais em que lugar me encaixar.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes