Marcelo D2: “O rap brasileiro está em seu melhor momento”
Rapper fala sobre o novo disco do Planet Hemp, do momento político, paternidade e envelhecimento.
Quando a vitória de Lula no segundo turno já era fato consumado, o rapper Marcelo D2 se sentiu mais esperançoso em relação ao futuro. Do seu apartamento no Leblon, no Rio de Janeiro, D2 desceu para a calçada. “Como qualquer cidadão, fui pro meio da rua comemorar”.
D2 foi um crítico contundente do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais e nos palcos. No fim de março, no festival Lollapalooza, à frente do Planet Hemp, xingou Bolsonaro e burlou o veto judicial a manifestações políticas no evento. Improvisou uma paródia do famoso jingle de Lula com o nome do festival que dizia “Olê, olê, olê, olá, Lollá Lollá”.
Em outubro, saiu Jardineiros, primeiro álbum do Planet Hemp de músicas inéditas em 22 anos. O trabalho é marcado por crítica social, defesa da cultura canábica e ataques à hipocrisia conservadora e à má política, atualizando temas que o grupo abordava em seus álbuns décadas atrás.
Ronaldo Land
Sobrevivente da pandemia (D2 pegou Covid quatro vezes) e com uma filha de quase um ano e meio (Maria Isabel, do casamento com a produtora Luiza Machado), o rapper de 55 anos tem motivos para otimismo. Pelo telefone, ele falou à ELLE sobre o novo trabalho com o Planet Hemp, o que espera do governo Lula e como é ser um veterano em um gênero tão movimentado como o rap.
Como foi a decisão de retornar com o Planet Hemp e o processo criativo que culminou no álbum Jardineiros?
Na verdade, a gente já vem tocando há alguns anos, mas só o repertório antigo. Em 2019, a gente resolveu fazer um disco novo. Daí veio a pandemia e a gente resolveu dar um parada. Eu não escrevia nesse lugar de Marcelo D2 do Planet Hemp há 22 anos… Esse momento político chamou, sabe? Quando eu falo político, não é só o Bolsonaro. Ele foi votado por mais de 50 milhões de pessoas. Então, é todo o pensamento de um país. Era tudo isso que estava me assustando, eu queria participar dessa conversa. Sou um cara bem ativo no Twitter, mas não era ali que eu queria conversar sobre isso.
Então, é uma vontade de se expressar também sobre a sociedade, não apenas sobre a política.
Exatamente. O pensamento que levou Trump ao poder nos EUA, e essa extrema-direita ao poder em vários lugares da Europa, na América do Sul. Esse lugar de construção de mundo é que eu não compartilho, não dá pra mim. Tem muita gente que votou no Bolsonaro que não compartilha disso também, sabe qual é? Foi basicamente uma lavagem cerebral na tia do Zap toda essa fake news, essa desinformação. Pra mim, o Planet Hemp é o lugar de falar disso. Eu e o Bernardo (BNegão) vinhamos conversando disso há muito tempo, de que estava na hora de um novo disco do Planet Hemp.
“Distopia”, faixa do disco novo, investe bastante contra as autoridades e o sistema político. Como vai ser cantar essa música a partir de 1 de janeiro de 2023, quando começar o governo Lula?
Cara, a gente tem o PL (Partido Liberal) com a maior bancada do Congresso. Essa política não vai acabar assim, não. O Bolsonaro sai, e se tudo der certo ele vai pagar pelos crimes que cometeu, mas o pensamento ainda está aí. Os filhos dele ainda estão aí. E mesmo nos 13 anos que o PT governou esse pensamento estava aí. O Brasil nunca foi uma Suíça, uma Dinamarca, né, irmão? Como diz um amigo meu, eu não acho que o Lula tem a chave do paraíso, mas ele tem a saída do inferno. O que me indigna em tudo isso é uma sociedade que apoia um cara racista, homofóbico, entende? As pessoas apoiaram esse projeto. Uma canção como “Distopia” é uma tentativa de empurrar isso tudo de volta pro esgoto de onde nunca deveria ter saído.
Como diz um amigo meu, eu não acho que o Lula tem a chave do paraíso, mas ele tem a saída do inferno.
Que tipo de política cultural você gostaria de ver em um governo Lula?
A princípio, só de você ter um governo que valoriza os povos originários, que respeita (a comunidade) LGBTQIA+, que traga para a cultura uma pessoa que gosta de cultura… Porque tínhamos um governo onde quem tomava conta da Amazônia odiava a Amazônia, quem tomava conta da saúde odiava a saúde. Como um país pobre, temos um déficit de cultura muito grande, mas eu, enquanto músico, não preciso de dinheiro do governo. Esse papo de Lei Rouanet é o maior caô, sabe? Eu não preciso de governo pra sobreviver. O que a gente precisa é de um governo que realmente valorize a cultura, que a leve para o povo. Só com essa valorização, já vamos ganhar muito.
No novo disco, o Planet Hemp segue na defesa da legalização da maconha e da condenação do preconceito. Você acha que mudou a maneira como a sociedade brasileira vê a maconha?
Acho que mudou muito. O mundo mudou muito e, naturalmente, o país também. Você vê os Estados Unidos com quase tudo legalizado…
Mas aqui ainda estamos longe disso…
Se você pensar que fomos o último país da América a abolir a escravidão, a adotar o ensino público… A gente é meio a vanguarda do atraso, né? Mas se olharmos aqui do lado, vários países legalizaram ou descriminalizaram (a maconha). A cannabis é uma planta muito forte. O futuro é canábico, essa é a frase que tenho usado. Nos Estados Unidos, você vê como caiu o preconceito, a cannabis está em tudo… Tá no lugar do aloe vera no xampu, do plástico, do tecido. Nos últimos quatro anos, com o projeto fascista de ataque à cultura, à ciência, andamos para trás. Mas, mais importante do que uma lei que legaliza, é o que o povo pensa, é como as pessoas olham pra isso. Acho que isso mudou bastante, estamos caminhando pra frente, o Brasil vai andar pra isso. Claro que ainda teremos muita religião, muito “medo do comunismo”, muita maconha sendo usada para manipular as pessoas, a política do medo. Esse papo de que maconha tem de ser caso de polícia é dos anos 1930. Droga é papo de saúde, não de polícia. O uso medicinal da maconha é algo que ajuda a mudar esse pensamento.
Eu espero ficar velhinho que nem o (Gilberto) Gil. Aliás, eu tenho tocado com ele nesses festivais, e é uma inspiração.
Quando o Planet Hemp surgiu, o rap brasileiro ainda era bem underground. Como você vê a cena hoje? Você acha que o rap tem o reconhecimento que merece atualmente?
O rap brasileiro está hoje em seu melhor momento. Tem muita coisa boa. Claro que quando a coisa fica grande assim, vem muita gente na onda, que não é do rap, que não sente a cultura. Mas é o preço que se paga. O rap é no mundo a música que mais vende, que mais toca, que toca as pessoas. Já faço rap há 30 anos. Antes, eu tinha uma ideia de que ele tinha que ser assim ou assado, tem que falar disso, tem que fazer desse jeito. Hoje, não acho mais isso. Acho que o rap tem que falar de tudo. É uma ferramenta tão simples e de fácil acesso que todo mundo que tem algo pra falar, tem que usar. Tá bonito ver o jeito que tá hoje, espalhado pelo mundo todo.
E como é ser um artista veterano do rap? É um gênero de muita rotatividade, nem todos conseguem ficar tanto tempo em evidência.
O Gustavo Black Alien tem uma frase que é “O primeiro rapper da cidade/ poucos rappers dessa idade” (da música “Take Ten”, de Black Alien). Eu sou da segunda geração. Ah, não tem muito o que pensar, né? Eu escolhi isso pra fazer da minha vida, é isso que eu vou fazer. O rap me trouxe até aqui e é muito mais do que só cantar música, só fazer rima, é a maneira de se vestir, de se posicionar, de falar, o grave, o tênis. Pra mim, tudo faz parte dessa cultura. Eu espero ficar velhinho que nem o (Gilberto) Gil. Aliás, eu tenho tocado com ele nesses festivais, e é uma inspiração. Não faço trap, não faço rap da moda, a música que eu faço tem minha identidade, tem samba, música brasileira. Essa verdade fica. Como diz um parceiro: “Quando a verdade chega, a mentira se envergonha e sai da sala”. Essa verdade tá aí, é a música que vou fazer pro resto da minha vida.
Ser pai é muito legal, é uma oportunidade de reviver coisas que quando era mais jovem talvez não tivesse cabeça pra fazer.
Como tem sido ser pai de novo depois de tanto tempo? E como você se cuida física e mentalmente para encarar paternidade, carreira musical, e tudo mais aos 55 anos?
Bom, para começar, ser pai é muito legal, é uma oportunidade de reviver coisas que quando era mais jovem talvez não tivesse cabeça pra fazer. Esse momento com a minha filha está sendo muito interessante porque estou escrevendo coisas pra ela, fazendo coisas pra ela que acabam sendo para os outros filhos também. É uma grande oportunidade voltar pra esse lugar de ser pai de novo. Sobre cuidados, pra mim a alimentação é a coisa mais importante, cuidar do que eu como, de como eu faço. Sobre exercício, parei totalmente durante a pandemia, mas tô voltando agora aos poucos, fazendo três ou quatro vezes por semana, vou na academia, dou uma malhadinha, mas gosto de correr. Sou um cara muito inquieto, preciso sempre fazer coisas novas, tipo natação, dar umas pedaladas. Pra mim, isso de cuidar do corpo nunca foi muito normal, então eu preciso variar.
Ronaldo Land
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