Filme explicita a consciência feminina de Maria Bethânia

Maria - Ninguém sabe quem sou eu foge do formato tradicional de documentário e traz depoimentos da cantora ao longo das décadas sobre sucesso, envelhecimento e a repressão pelo regime militar.


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Pensado como uma homenagem a Maria Bethânia, MariaNinguém sabe quem sou eu, em cartaz nos cinemas, é um tipo particular de filme, que não chega a contar uma história com começo, meio e fim nem é um documentário tradicional. Dirigido pelo jornalista e roteirista Carlos Jardim, chefe de redação do canal GloboNews, compõe-se basicamente de duas partes que se alternam: uma entrevista exclusiva da cantora baiana, de quem Jardim é próximo como jornalista e fã, e um manancial de imagens de acervo em foto e vídeo, recolhido de shows, entrevistas e ensaios ao longo de 57 anos de carreira da artista, hoje com 76 anos.

Filmada em 2021, em meio à quarentena, a entrevista flagra uma Bethânia plácida, de olhar talvez mais triste que o habitual e despida dos artifícios que, no palco, fazem-na parecer maior do que o mundo. “Nem pra cima nem pra baixo, eu sei exatamente o meu tamanho. Não é o sucesso que vai me dizer, nem ninguém”, afirma a cantora, num jogo de edição em que aparece primeiro em 1984 com os cabelos negros, lembrando os primórdios artísticos como substituta de Nara Leão no musical Opinião, em 1965. “Estreei com 17 anos, fiz sucesso da noite pro dia, era menina e acho que de cara encarei esse senhor sucesso e disse: respeito muito o senhor, o senhor me respeite também, o que é bom e eu gosto.”


Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu — Teaser Oficial

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Num piscar de olhos, os cabelos pretos se tornam grisalhos e ela dá continuidade ao assunto, falando do mesmo “senhor sucesso”, em 2021: “Respeito ele pra que ele me respeite. Tem limites. Não é quem me manda, quem me governa, nada disso. Eu quero me expressar, expressar o que sinto e o sentimento do povo do meu país”. E conclui, com uma gargalhada ao final: “Para isso, eu preciso fazer sucesso. Mas antes preciso fazer o que quero, e ele que me ajude lá do jeito dele, que aí o reverencio, agradeço, sou gentil e cumpro algumas exigências que ele faz”.

Esse jogo se repete ao longo do filme, com depoimentos, shows e cantos de momentos diversos percorrendo o vaivém das décadas, como a mostrar que a artista não muda com o passar do tempo, por coerência ou por rigidez. Num segmento, por exemplo, ela fala sobre o próprio rigor, em 2021: “Sou exigentíssima, chata mesmo, comigo mesma, muitas vezes com meus companheiros de trabalho”. A sequência flagra a artista em 1994, cantando “Detalhes”, de Roberto e Erasmo Carlos, interrompendo o ensaio, se queixando da qualidade técnica e se retirando do palco com a cara fechada. Carlos Jardim edita em seguida um depoimento da cantora sobre o medo que sua figura costuma causar em músicos, jornalistas e fãs: “Não tem que ter medo nenhum de chegar perto de mim. Sou uma pessoa educada, civilizada. Sou eu, assim”.

Poucas cenas antes, Bethânia havia comentado sua preferência pelos microfones com fio, encerrando com mais uma gargalhada: “Microfone sem fio parece coisa de plástico pra mim, não é de verdade. Criei um jeito de cantar que gosto do fio porque tenho um certo chicote na mão”. A voz, seja na ode à “senhora dos raios” “Iansã” em 1973 ou em registros de 2021, permanece sempre a mesma: um chicote. Adiante, a cantora revela que gosta de aprender, mas não de receber ordens: “Não adianta que não vai, vou fazer exatamente o contrário”.

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Bethânia, entre a bateria da Mangueira, em cena do filme.

Noutro bloco temático, Bethânia começa cantando “Olhos nos olhos” (1976) num show de 1980, vem para 2021 contando o dia em que recebeu a composição de Chico Buarque, canta alguns trechos em estúdio em 2004 e no palco em 1980. De novo em 2021, recorda o álbum Álibi (1978), que refere como o primeiro de uma mulher a vender 1 milhão de cópias no Brasil (na verdade, a sambista Clara Nunes conseguiu o mesmo três anos antes). “Aí virou uma coisa popular”, diz.

A afirmação feminina, seja em anos de menor ou maior evidência do tema, permeia toda a narrativa como fio condutor. Esse detalhe é ressaltado nos depoimentos emocionados sobre a ialorixá Mãe Menininha do Gantois, a poeta Clarice Lispector e a cantora Nara Leão (que compara a Maria Quitéria, combatente da Guerra de Independência na Bahia). Ganha destaque também na versão recente que faz de “Volta por cima”, cantando que “mulher de moral não fica no chão” em que o autor Paulo Vanzolini escrevera “um homem de moral”; e nos fortes trechos em que se refere à mãe, Dona Canô, morta em 2012, aos 105 anos. A militância feminina discreta fica mais evidente em sua fala sobre a devoção católica a Nossa Senhora: “Eu não sei me dirigir a Deus, é muito poder, o criador de tudo, muito alto. E Nossa Senhora viveu na Terra, foi mulher de São José, uma moça linda que dançou, comeu, cantou. Então, me sinto, com minha humanidade, mais próxima da santidade dela. Ela tem mais paciência, mais compreensão, e é mulher, e é mãe”. E arremata: “Eu sou louca por Nossa Senhora”.

Menos afirmativas, as presenças masculinas se representam no poeta português Fernando Pessoa, no escritor moçambicano Mia Couto, em Chico Buarque, no pai Zeca e em Caetano Veloso. Desse, lembra os ensinamentos de irmão quatro anos mais velho, entre eles o de que “Deus não existe, eu sou Deus”.

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A cantora em capa da ELLE Volume 03. Compre aquiFoto: Bob Wolfenson/ELLE Brasil

Naquele que é talvez o momento mais surpreendente do filme, Bethânia fala de um assunto pouco presente em seus pronunciamentos públicos, a relação com a repressão do regime militar. “Fui presa às 2 horas da manhã na minha casa e levada para um quartel. Lá fui entrevistada por um coronel ou (alguém em) um desses cargos”, conta. “Imediatamente me libertaram e me mandaram voltar para casa, eram 3 ou 4 horas da manhã. Mas eu tinha que me apresentar todas as quartas-feiras no Dops, às 10 horas da manhã, durante um ano.”

O tempo vai e vem e Maria Bethânia canta “Oração ao tempo”, de Caetano, e fala sobre o envelhecimento: “O corpo da gente recebe muita notícia do tempo”. E compara tempos históricos da ditadura até o presente: “Os artistas eram subversivos e pessoas nocivas ao país. Como é agora. O artista é tratado como se fossem nocivos ao Brasil”.

Menos comedido que Ninguém sabe quem sou eu é o livro que Carlos Jardim lança simultaneamente pela editora Máquina de Livros, Ninguém sabe quem sou eu (A Bethânia agora sabe!) – As loucuras de um fã para conquistar sua diva. Esse expõe algumas vísceras do filme e engrenagens das indústrias da música e do entretenimento, revelando um narrador fanático por Bethânia desde os 15 anos de idade, que se torna sucessivamente frequentador obsessivo dos shows (e camarins) da artista, testemunha momentos de baixa em sua carreira, torna-se jornalista e estreita laços com a “diva” depois de conquistar postos de poder na televisão. O final feliz é exibido na capa do livro, em que fã e estrela posam abraçados e sorridentes.

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