“Medusa” examina o machismo estrutural e a atuação das igrejas evangélicas

Em seu segundo longa, exibido em Cannes, Anita Rocha da Silveira inspira-se na realidade para falar de grupo de mulheres que pune outras.


Fotos: Divulgação



Faz quase dois anos que Anita Rocha da Silveira (Mate-me por favor, de 2015) levou seu Medusa à mostra paralela Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Só agora, nesta quinta-feira (16.3), o longa-metragem, bastante atual, estreia nos cinemas brasileiros.  

No longa, que mistura elementos de terror, fantasia e humor ao drama, Mariana (Mari Oliveira) é uma jovem que frequenta uma igreja evangélica liderada pelo pastor Guilherme (Thiago Fragoso), fazendo parte do grupo Preciosas do Altar. Junto com suas amigas, como a influencer Michele (Lara Tremouroux), ela se esforça para não cair em tentações e seguir um padrão de comportamento, inclusive na maneira de se vestir e se maquiar. Só assim vão conseguir um “bom partido” – invariavelmente, um jovem fiel, quem sabe pertencente à milícia Soldados de Sião.

À noite, mascaradas, essas garotas perseguem aquelas mulheres que consideram promíscuas ou devassas, espancando-as. Mas o ambiente opressivo vai se tornando insustentável, especialmente depois de Mari, durante um ataque, ganhar uma cicatriz no rosto. Bruna Linzmeyer faz uma pequena participação como uma das vítimas.

Na entrevista a seguir, a diretora fala das inspirações para o roteiro escrito por ela e machismo.

O filme tem inspirações reais?
Tem várias. Li no jornal essa notícia de um grupo de jovens mulheres que bateu em uma garota porque a consideravam promíscua. Para elas, era importante não só bater, mas deixar a menina feia, no conceito do que consideram feio: cortaram o cabelo, o rosto. Bateram tanto na menina que ela teve uma sequela neurológica. Comecei a pesquisar e encontrei vários casos similares em outras cidades do Brasil e em outros países. E isso passava muito pelas redes sociais, de ver uma foto postada no Instagram com decote, por exemplo.

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A protagonista Mariana (Mari Oliveira)

Como Medusa entrou nessa história atual?
Esses acontecimentos me fizeram lembrar do mito de Medusa, uma jovem que trabalhava no templo de Atena, virgem, bonita. Em uma versão do mito, ela foi estuprada, na outra, ela fez sexo. Por não ser mais pura, Atena a tornou uma criatura monstruosa que transformava os outros em pedra. Eu pensei: como um mito tão antigo ressoa ainda hoje na sociedade brasileira? Então partiu dessa vontade de falar do machismo estrutural, de como ele está introjetado na gente.

O avanço conservador no Brasil também teve a ver com essa escolha?
Sim. Eu via aquelas notícias do “bela, recatada e do lar”, jovens influencers que promoviam essa mulher submissa, devota ao seu homem, que tinha de estar produzida e com a maquiagem correta. Comecei a pesquisar essa onda conservadora na internet e em algumas igrejas. Porque uma coisa que a gente pôde observar nos últimos anos no Brasil foi esse projeto de poder de igrejas específicas. Tudo o que o personagem do Thiago Fragoso fala é inspirado em sermões reais, de pastores de uma certa igreja. Para mim, há grupos incríveis, mas há outros que estão usando a estrutura para propagar um discurso machista, homofóbico, de intolerância, alienação, exclusão, fake news. O exército masculino do filme também tem uma inspiração clara, que eu prefiro não explicitar, mas quem pesquisar vai descobrir. Muita coisa do filme veio de notícias e de coisas que fui pesquisando nessa última década no Brasil.

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Que cuidado você teve ao retratar igrejas evangélicas?
Nunca quis generalizar. Ao mesmo tempo, não coloquei os discursos mais pesados (ouvidos nas igrejas) porque o público podia achar que eu estava viajando. É muito comum esse discurso de “não acredite nas pessoas do mundo”, que já cria esse espaço para as pessoas não procurarem notícias em outros lugares, só confiarem na informação que está ali, do pastor, do grupo de WhatsApp. Por outro lado, a igreja evangélica conseguiu ocupar um espaço de acolhimento. Uma pessoa que sai do interior e chega ao Rio, a São Paulo, e não conhece ninguém vai para a igreja, que dá um senso de comunidade, em um mundo em que as pessoas são cada vez mais sozinhas e precisam de um abraço, de uma troca. Algumas igrejas evangélicas oferecem isso de forma linda. As pessoas encontram uma família e passam a confiar muito naquelas informações.

Muitas vezes quando a gente vê filmes com grupos de mulheres elas estão reagindo ao que precisam enfrentar no dia a dia. No começo de Medusa, no entanto, elas estão reproduzindo e amplificando o discurso machista. Acha que isso é comum?
Infelizmente, sim. As coisas estão melhorando. Mas agora mesmo no Big Brother a gente viu participantes reproduzindo falas muito machistas contra outras mulheres. Faz parte da nossa cultura. Na minha geração, na sua, ainda mais. Um dos temas de Medusa é a questão do controle. Porque nós, mulheres, temos de controlar tanto nossos corpos – como a gente se senta, fala, se porta, a nossa sexualidade, tom de voz – que a gente começa a querer controlar as mulheres à nossa volta, ainda mais em um ambiente conservador. Se eu não estou fazendo sexo, por que ela está fazendo? Se eu não posso fazer isso, por que ela faz? Já que elas têm de se controlar tanto, começam a controlar as outras. E as meninas do filme são tão rígidas com elas mesmas que passam a ser com as outras. Mas estão prestes a explodir.

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Essa questão do controle passa muito pelo cabelo, por essa obrigação dele estar sempre domado. Tem a ver com o título, mas também com os temas do filme, não?
A gente brincava que o cabelo da Mari era o personagem secundário principal. Fazíamos todo o plano de filmagem de acordo com o cabelo para evitar estressá-lo, para não ficar lavando e escovando tanto. E porque tomava tempo de filmagem. Conheço a Mari desde Mate-me por favor, quando ela estava fazendo a transição capilar. Por muitos anos, ela alisou o cabelo. A gente conversou muito sobre isso, sobre o momento em que ela se percebeu uma mulher preta. Óbvio que com a Medusa você pensa nas serpentes no cabelo, nesses fios mais livres. Mas não foi por isso que escolhi a Mari, eu tinha ela em mente desde o início. Fora isso, quando a gente pensa na Medusa, pensa na representação do Caravaggio e naquele berro que não é de medo, é de raiva, de quem quer enfrentar a sociedade. Tentei no final apontar para a sororidade feminina, para uma saída pela união. Sem dar muito spoiler, era importante que elas escolhessem umas às outras, que se unissem para lutar contra o patriarcado.

Sofreu com machismo vindo de mulheres?
Sim. Quando era mais jovem, em uma das minhas primeiras oportunidades de trabalho com cinema, sofri assédio moral de uma mulher em posição superior. Isso me marcou muito, porque era algo que eu não esperava. Óbvio que no colégio sempre tem um pouco de rivalidade feminina, que na minha geração era mais presente. Mas talvez por ter sido criada por uma mãe feminista ouvia muito o discurso de mulheres antes dos homens. E essa experiência em set me deixou muito abalada. Hoje entendo que essa mulher estava vivendo um relacionamento abusivo, estava passando por outras questões que fizeram com que ela descontasse em mim

Mesmo estando em uma posição de liderança no set, por ser mulher, sofre ainda com a dificuldade de falar o que pensa?
Mesmo tendo uma criação fora da curva, passei anos no colégio sem conseguir me expressar direito. Eu era invisível. Tinha vergonha de falar em voz alta. Por mais que a situação esteja avançando para as cineastas mulheres, ainda há machismo. Para fazer projeto autoral, até estamos em pé de igualdade. Mas projetos comerciais, de grande orçamento, são mais complicados. Quando dirigi Mate-me por favor, ouvia: “Legal, você tem um longa, mas precisa de outro para fazer produções comerciais”. Aí dirijo meu segundo longa e ouço: “Pô, mas você nunca fez série”. Hoje trabalho mais como roteirista, mas gostaria muito de trabalhar como diretora contratada. Estou nessa tentativa de me inserir no mercado comercial. Achei que depois de Medusa, vindo de Cannes, com estética legal, iam ver que eu posso fazer. Ainda assim é complicado. Mas vejo homens brancos vindo da publicidade conseguindo. Eu não entendo muito bem. Ao mesmo tempo, tem amigas minhas que não conseguiram fazer o primeiro longa. Quero mais, mas penso que não deveria estar desejando mais se tem outras que não conseguiram ainda. São sentimentos muito conflitantes de ser mulher nesse meio.

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