Paulete Lindacelva: do fim aos novos começos

A multiartista e criadora da plataforma Outros Fins que Não a Morte fala sobre a criação de novas narrativas e explica porque o fim do mundo já era realidade para muitos, bem antes de 2020.


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Uma imagem multicolorida estampa a plataforma multimídia de arte Outros Fins que Não a Morte. A obra, assinada por Laura Fraiz, mostra uma dupla levantando os vestidos ao mergulhar os pés na água de um rio que corre roxo. No meio de uma mata exuberante, com ares densos de mangue, as figuras olham para o lado como que dizendo: o que será que vem por aí? O que está à espreita? A sensação que perdura é de surpresa e de que ainda não se viveu tudo o que parecia estar por vir – e traduz um pouco do sentimento que motivou a criação do projeto, logo no início da epidemia de Covid-19. “Não sabíamos o que iria conduzir nossas vidas quando a pandemia começou”, conta a multiartista Paulete Lindacelva, curadora da plataforma, à ELLE. Não podendo elaborar essa dúvida através de seus programas de rádio – até então, feitos pessoalmente –, e frente a um mundo que parecia viver um apocalipse, a curadora independente, DJ, artista visual e apresentadora uniu amigues artistes e pessoas conhecidas para externar caminhos, pensamentos e sonhos por meio de textos, fotos, ilustrações, vídeos e outras manifestações artísticas.

“Quem é sexo-dissidente, quem é preto, vive esse fim de mundo há algum tempo. Como nossos povos originários, que quando lidam com a chegada dos colonizadores, também viveram esse momento de caos, de apocalipse, e vivem até hoje” descreve ela sobre o mote da obra.

A plataforma também foi uma forma de Paulete registrar sua história no curso do tempo – algo que ela vem fazendo desde que começou a apresentar programas de rádio. “Sou uma mulher trans e eu não tenho medo da palavra. A ideia a priori não era a rádio em si, mas a documentação das conversas. Afinal, nós somos as ancestrais do futuro. Estamos construindo narrativas possíveis para as pessoas que virão”, descreve.

Em entrevista à ELLE, Paulete fala sobre os programas de rádio, suas obras e a continuidade de suas narrativas:

Desde que li Outros Fins, vejo que o fio condutor do seu trabalho passa por uma sensibilidade, sai um pouco do foco imagético tão presente na arte hoje, com o Instagram e com as redes sociais. Como você vem traçando as perguntas que permeiam seu trabalho e como elas culminam na sua trajetória como artista hoje?

Tudo vem muito do sentir. Todos os textos que eu já escrevi, e também na Outros Fins, eu uso muito essa frase: “sinto que…”. O sentir é uma certeza, ele existe, é inegável, para o nosso corpo e para a nossa consciência. Junto com isso, está a vivência das coisas – e daí vem o processo curatorial dos programas de rádio, da plataforma Outros Fins. Tem o processo de construir a coisa, o imaginário do que é a coisa, que vem junto com o sentir. “Sinto que preciso construir esse babado, construir essa narrativa nesse momento”, por exemplo. E também tem o viés da ação, que é entregar ou produzir esse trabalho.
Mas a Outros Fins, na minha cabeça, também é uma confusão. Mas é, inegavelmente, sobre o sentir. A minha relação com os trabalhos que estão presentes na Outros Fins vem do lugar do sentimento. Eu sinto que todos os trabalhos me atravessam, e me atravessam no sentido da prática diária, da vivência diária. Seja por questões de violência, por questões de compreender que o mundo precisa de mudanças, ou por entender que o mundo como está dado tem que acabar – e já está em processo de findar há muito tempo.

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A multiartista Paulete Lindacelva.sFoto: Arquivo pessoal

A pandemia criou espaço para que muitas pessoas pudessem pensar em questões essenciais – como nossa perspectiva sobre a morte e o fim. Mas essas mesmas questões já se fazem presentes há tempos para alguns grupos que foram colocados à margem. Pode me contar sobre a presença dessas questões, e de outras que você considera centrais?

Essa ideia de “apocalipse”, ou “fim do mundo”, a gente reproduz como se fosse uma coisa meio hollywoodiana, mas que na verdade não é, né? Quem é sexo-dissidente, quem é preto, vive esse fim de mundo há algum tempo. Quem vive nas periferias tem uma relação com a violência policial, por exemplo. Desde o fim da escravatura, desde que os pretos atravessaram kalunga grande (que é o mar), a gente vive esse processo de caos. Como nossos povos originários, que quando lidam com a chegada dos colonizadores, também viveram esse momento de caos, de apocalipse, e vivem até hoje.

Em outros textos você já citou como viver para a produção de uma imagem é cansativo – principalmente quando se é artista. Vejo que as demandas de performance para artistas hoje em dia (para se tornarem produtoras de conteúdo ou experts em estética) são bem fortes. Como você lida com isso no seu fazer?

Eu questiono o que é essa produção de conteúdo, né? Qual é a relevância desses conteúdos? E falo porque é importante a gente se responsabilizar por esses conteúdos.
A minha relação com Outros Fins, com os trabalhos que estiveram lá, além da sensibilidade, é de que são pessoas que pensam sobre o que é essa produção: quem vai receber? Quem vai ser tocado por elas? São pessoas que, de certa forma, a relação delas com a dor é presente. Tem que trabalhar essa dor como uma ação de resistência. Assim como organizar a raiva é importante também. Essa coisa de não anular. Organização dos babados, dos bafos, que movimentam as produções que movimentam a gente.
O trabalho da Micaela (Cyrino), por exemplo, o que eu acho interessante é que ela não foge de coisas que são dela. Ela não está falando de coisas distantes. Uma coisa é você usar algo externo como objeto de estudo e criar uma narrativa em cima dessa coisa e aproximar ela pra você. Outra coisa é de fato viver o processo, viver tudo. Assim como a Castiel (Vitorino), que fala sobre os processos de cura. Os dois trabalhos conversam sobre cura, processos de cura, através de um lugar de acesso à dor, de entender que ressignificar esses processos de dor são importantes. Pra população preta, em específico, é quase inevitável que a gente ressignifique, porque a dor nunca vai estar distante. A raiva também nunca está distante, porque vivemos situação de racismo o tempo inteiro.

As obras na plataforma passam uma ideia de que para chegarmos a outros fins possíveis é preciso imaginar novas formas de viver, novas narrativas. Você acha que hoje estão sendo criadas novas narrativas? Quem as está criando?

Tenho certeza que estão sendo criadas novas narrativas. Não é de agora. E acho que são esses sujeites que estão criando: pessoas trans, pessoas racializadas, povos originários, que dão força e que movimentam essas outras possibilidades de fim, de início. Pra gente pensar um outro fim ou pensar um outro começo, a gente tem que estar vivo. Senão, não conseguiremos pensar nada.

“Essa ideia de ‘apocalipse’, ou ‘fim do mundo’, a gente reproduz como se fosse uma coisa meio hollywoodiana, mas que na verdade não é, né? Quem é sexo-dissidente, quem é preto, vive esse fim de mundo há algum tempo.”

Sobre Mote (produção de rádio conduzida por Paulete), que ganhou nova temporada agora, qual é a história do programa?

Mote é uma continuação da minha relação com o rádio, que começou no final de 2016, lá em Recife. Numa rádio que se chama Rádio Aconchego, comunitária, que ficava no Roda de Fogo, um bairro da periferia. E aí eu me apaixonei, porque é algo que eu amo fazer: falar. Sou uma mulher trans e eu não tenho medo da palavra. Eu amo falar. Talvez eu seja um pouco tímida, mas eu amo a palavra, eu amo inclusive a possibilidade do erro enquanto eu falo, e de não ter palavras para externar alguma coisa. Mote é uma continuidade desse processo, de pessoas radicalizadas, sexo-dissidentes, desobedientes de gênero.
A ideia a priori não era a rádio em si, mas a documentação das conversas — porque eu amo conversar com minhas amigas, ou talvez com artistas que não sejam tão próximas, mas que quando eu tinha a oportunidade de encontrá-las, as conversas eram muito intensas, era muito prazeroso. E aí eu disse: ah, quero ter uma comunicação. Afinal, nós somos as ancestrais do futuro. Estamos construindo narrativas possíveis para as pessoas que vão vir. Queria ter isso documentado para as figuras que vão vir.

E quais são as diferenças entre a temporada passada e essa nova?

Mote teve uma temporada e, depois, três programas que foram gravados no Nordeste: um deles em Fortaleza, dois em Recife. Todos, pessoalmente: eram lugares abertos, as pessoas podiam ir e ouvir. Era como uma roda de conversa. Eu fazia um pouco a chata, dizia: “gente, preciso de silêncio pra gravação”. (risos)
Nessa temporada, não estamos gravando pessoalmente, então, gravamos tudo antes. Fiquei triste por isso, mas me trouxe a felicidade, porque consegui gravar com pessoas que estavam longe. Como Elton Panamby, que está no Maranhão, com Rômulo Barros, que mora em Brasília. Não houve lado positivo na pandemia, mas houve uma movimentação pra conseguirmos nos reestruturar e pensar no programa, e houve a possibilidade da troca à distância.

E em questão de suas obras, produções, para onde você se encaminha agora? O que acha que vem por aí?

Tem uma frase que é meio cristã, mas que eu gosto muito de falar: que o amanhã a Deus pertence. E tem outra que diz: Exu matou um pássaro ontem com a pedra que lançou hoje. Eu acho que é sobre furar a linha, a barreira do tempo, essa ideia de linearidade temporal. Eu não sei o que o tempo me reserva, o que tem pra mim, essa história de presente-passado-futuro pra mim é bem quebrada. Sei que quero documentar as coisas que eu tenho feito, e que todas as pessoas que passam pelo programa, ou que fazem parte dos processos de curadoria, voltam pra isso do sentir. São trabalhos que me tocam, me atravessam, que me fazem sentir viva ou sentir coisas que me movimentam. Não sei pra onde minha obra vai caminhar, mas acredito que tem muita estrada ainda. E que haja ainda muitas trocas, e que eu consiga acessar lugares que nem eu mesma imagino pra mim.

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