Criolo: “Pra quem vem do rap, tecnologia está na gênese”
O rapper fala sobre sua imersão no ambiente digital nos últimos meses e sobre a importância da companhia do próprio público e da família nos meses de pandemia.
Na noite do último dia 23, enquanto a tag #CrioloXR subia nos trendings topics do Twitter, Criolo fazia uma live cantando sucessos da sua história na música brasileira. Mas era mais do que isso: impressionantes imagens 3D que pareciam colocá-lo em cenários diferentes de um jogo de videogame marcavam também a transmissão do primeiro show em realidade estendida no Brasil.
Para o cantor, aquela foi ainda a materialização de um projeto que começou a ser desenhado em junho de 2020, com uma complicada logística que incluiu trazer de fora do Brasil equipamentos que levaram meses para chegar. “A técnica que usamos é chamada de virtual production. Basicamente é o encontro do universo da pós-produção com o set de filmagem. É de se contar nos dedos quem fez uma live assim no mundo todo e fizemos isso com uma equipe 100% nacional. Foi um show tecnológico histórico no país”, conta Denis Cisma, diretor da apresentação ao lado de Tito Sabatini, além de parceiro antigo do rapper.
O projeto audacioso, conta Criolo, foi viabilizado e transmitido pela plataforma de streaming Twitch, onde há seis meses ele mantém a Criolo TV. “A transmissão do show em realidade estendida foi algo inédito no país”, diz Wladimir Winter, diretor de conteúdo e parcerias da empresa.
Enquanto celebra o marco, o cantor lembra da importância de a tecnologia funcionar em prol da poesia. À ELLE, fala ainda sobre como a presença da família o tem ajudado a atravessar o momento de pandemia e sobre a nova cena do rap no Brasil:
Criolo no clipe de “Sistema obtuso”Foto: Divulgação
Como se deu essa ideia de fazer uma apresentação em realidade estendida?
Tudo começou quando Tito Sabatini apresentou a tecnologia. A Twitch comprou a ideia e essa live era para ter acontecido em setembro ou outubro. Mas no meio do caminho colocamos mais um som na rua, que foi “Sistema obtuso”. Uma parte desses equipamentos demorou pra chegar. E quando estava chegando, (a live) não deu certo, a gente ficou muito preocupado com a questão da Covid. Aí a gente viveu a experiência de fazer (isso) no clipe (de “Sistema obtuso”). E foi onde a ficha caiu. No show, os artistas construíram dez cenários digitais completamente diferentes um do outro. Então, o trabalho que tem para fazer um clipe, imagina fazer 10. Foi uma loucura.
Depois do clipe e da live você tem projetos de fazer outros trabalhos usando essa tecnologia?
Nós gostaríamos muito, a gente não sabe se isso é possível porque é muito difícil você conseguir montar uma equipe dessa e ter estrutura para oferecer. Foi uma força muito coletiva, né? Todo mundo de alguma forma ali entendeu que era muito importante a gente fazer, ter esse marco. Mas eu gostaria muito, sim, porque é entender que essa tecnologia tá em prol do ser humano, ela está em prol da poesia, não o contrário. E aí é infinito porque a criatividade do nosso povo brasileiro é uma coisa magnífica. Eu tenho certeza de que vai chegar uma hora em que isso vai ser utilizado por grandes festivais, para grandes encontros.
Esse tema já te interessava antes? Maneiras de conectar sua arte com novas tecnologias?
Como a gente vem do rap, isso já acontece na gênese porque a gente não tinha uma banda, alguém que tocasse instrumento, as pessoas davam risada quando você falava que cantava rap. Então, a gente já foi para a parte da tecnologia. Às vezes, as pessoas acham que tecnologia é uma coisa distante. Mas o cara está lá juntando um bumbo e uma caixa em um computador, é tecnologia, né? E eu acredito que isso acontece de modo natural, até por falta de recurso, mas dando um salto agora, uma tecnologia não anula a outra. Isso que a gente viveu foi uma experiência única, sim, brutal, mas são forças complementares. Porque quem construiu isso foram seres humanos brasileiros. Então, tinha, por exemplo, o DJ Dan Dan (parceiro de Criolo no palco) com toda a sua energia. Tinha o Daniel Ganjaman (diretor musical) fazendo quase que um dub session e sound design, effect designs, em tempo real.
Foto: Divulgação/Tino Monetti
No começo da pandemia, a gente viu muitos artistas fazendo lives e depois parece que esse movimento arrefeceu um pouco. Considerando que não tem previsão para que os shows voltem a acontecer, você acha que pensar as lives de uma maneira que tragam um diferencial, uma inovação, pode ser um caminho para a música em curto prazo?
Um dos (caminhos). Porque existe um boom de lives, mas nem 10% dos artistas do Brasil conseguiu fazer live, e isso tem um peso muito grande porque esses artistas maravilhosos que fizeram suas lives são gigantes e representam um recorte gigante do nosso país. Mas nem todo mundo conseguiu fazer sua live. Por mais simples que seja, não é assim tão simples. Você tem que ter uma série de coisas que às vezes não dá para ter. E se você tivesse o mínimo, faria uma live tão linda quanto um artista gigantesco, porque arte é arte. Eu acho que as pessoas vão continuar achando as suas “supermicro” soluções, que não são micro, dando um jeito de se comunicar. E quem tiver a oportunidade de experimentar outras tecnologias vai experimentar. Mas como eu falei, uma tecnologia não anula a outra e uma sofisticação de live leva para um lugar de entretenimento e imersão de experiência incrível. Muito incrível, mas não quer dizer também que vai tocar todo mundo. Às vezes, a pessoa quer ver o artista em casa, tocando violão, contando suas histórias e isso vai ser a companhia mais gostosa da vida. São ferramentas diferentes. Porque nenhuma tecnologia vai superar o que a arte provoca.
Com a Criolo TV você intensificou sua presença no ambiente digital. Queria falar um pouco sobre como tem sido essa experiência da interação com os fãs, explorar conteúdos ali…
Foi um convite da Twitch que veio a calhar. Está se construindo. Tivemos um aprendizado riquíssimo com o Festival Marsha! (primeiro festival LGBT online produzido por pessoas trans). Tive a felicidade de ter o Flip Couto, do coletivo Amem, mediando uma conversa. Aprendi com ele enquanto mediador, eu tive aulas. Ele não imagina. Flip ajudando a costurar uma conversa com a Luna Vitrolira e com Maciel Salú, dois artistas magníficos de Recife. Tive uma felicidade de poder receber mulheres negras, linhas de frente de trabalhos com produções (artísticas), da Zeferina Produções. Eu cresci muito ouvindo. Tive a oportunidade de conhecer o Galo (líder do Movimento dos Entregadores Antifascistas), que é uma das lideranças dos motoboys de aplicativos que estão lutando por melhores condições de trabalho. Tivemos um encontro maravilhoso, magnífico, em parceria com a Anistia Internacional no Brasil falando sobre gamificação (Gamificando a luta por direitos – Juventudes inventando novas formas de ganhar o jogo). A gente é plataforma para falar dessas pessoas. Tô aqui, mas só tem graça se a gente exaltar o outro. Tem Criolo TV? Tem, mas foram todas essas pessoas que construíram esse ambiente. E aí estamos nesse processo, ainda entendendo. Agora, tem dias que… Eu nunca imaginei isso na minha vida. Tem dias que eu vou jogar videogame. Só que na minha cabeça é eu jogar videogame e minha mãe estar lendo algum livro de filosofia junto. Esses dias eu estava jogando videogame, escutando Nat King Cole. E tinha gente que estava escutando pela primeira vez. Então, a gente faz uma mistureba, essa bagunça boa…
Na sua live, você falou algumas vezes sobre levar afeto para as pessoas neste momento difícil. A descrição da Criolo TV é a de um “oásis digital nessa loucura cibernética”. Imagino que essa experiência te ajude nesse aspecto, de se distrair. Mas, fora desse ambiente, como é que você tem atravessado esse momento?
O trabalho acabou sendo esse lugar de comunicação ou de troca. Esse lugar tem sido muito bom. E a minha família, minha mãe e meu pai. Então, poder viver essa experiência, ter um suporte de poder fazer algo com a minha mãe… A gente fez um programa todo em que li poesias dela e ela leu algumas também, isso tem ajudado bastante. Por conta da pandemia, tem que estudar muito direitinho como é essa aproximação, mas eu quero ela ali, com os meus sobrinhos perto de mim, eles vão ensinar muita coisa. “Não, tio, aperta esse botão que já resolveu”, “tio, esse jogo aqui é legal.” Acho que é isso: dividir a experiência de aprendizado porque eu estou ali aprendendo, não estou ali para ensinar, não existe isso. Dividir a experiência da troca.
E como você está vendo esse momento que estamos vivendo agora?
Muito triste tudo. Está todo mundo muito abatido. Acho que estamos todos cansados. Nós já chegamos até aqui cansados, né? A verdade é essa. Viver onde vivemos e experimentar as coisas que nos são oferecidas já dá um abatimento. E com essa pandemia, esse sentimento de que tem algo ruim lá fora que pode te visitar, isso é horrível. É muito duro ouvir todos os dias no noticiário que mais de mil pessoas morreram de novo. E essa notícia está por um ano acontecendo todos os dias. Isso abala qualquer pessoa.
Você tem flertado com o trap nas suas músicas mais recentes, “Sistema obtuso” e “Fellini”, e na live também fez um agradecimento ao rap de maneira geral e à nova geração, do trap. Na época do lançamento do Nó na orelha (2011), do projeto Criolo & Emicida (2013), as pessoas chamavam vocês de nova geração do rap, embora você já tivesse uma longa caminhada, o histórico na Rinha dos MCs. Você reflete sobre o caminho que você atravessou, como era ser a “nova geração” naquela época, o espaço que o rap ocupava e ocupa hoje?
Essas duas canções são frutos dessa nova geração. Falo com agradecimento. Quando nos descobriram, eu já tinha 22 anos de caminhada. E é muito louco a gente falar sobre uma, duas, três, quatro, cinco gerações de uma arte tão jovem. Ainda tão jovem porque se for remeter ao teatro, você está falando sobre o início das civilizações. (O rap) é uma arte ainda muito jovem, mas de uma potência mundial, absurda, que toca corações, que transforma, e eu sinto que tá tudo cada vez muito mais rápido. Vejo que tem muitas ramificações do rap aparecendo em curto espaço de tempo. E tem coisas que eu nem sei que existem e já estão acontecendo.
Você fica de olho, pesquisando?
Não é que eu fico caçando, mas existem artistas geniais que apresentam esse mundo para a gente. Eu acho o Djonga genial, o BK. Falar nome é cruel porque é tanta gente, mas quero falar aqui do Jovem Dex. Para quem curte trap é impossível falar que não conhece o Matuê e o Raffa Moreira. É um mundo gigante que eu estou entendendo e fiz essas músicas com muito carinho. Tanto que na live, no final da “Sistema obtuso”, eu falei que eu fui tentar aprender com eles. É um jeito de pedir licença com carinho a eles que estão puxando o bonde. O Dan Dan até me repreendeu, disse: “Mano, você falou o bagulho errado, tem que ajeitar isso. Você falou rap e trap como coisas separadas e não, mano, a gente tá junto, é uma subdivisão do rap”. Eu falei: “Me perdoa, mano, você tá certo”.
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