Uma obra-prima: a reinvenção de Isabela Boscov

Do texto impresso para o mundo dos influenciadores digitais, a crítica de cinema inspira memes e conquista uma nova geração de espectadores com bom-humor, estilo e um acervo de referências inigualável.


Isabela Boscov
Ilustração: Mariana Baptista / Fotos: Reprodução



Pela cartilha do jornalismo, não é recomendável adotar um tom pessoal em perfis deste ou daquele personagem. Mas no caso de Isabela Boscov, este que vos digita pede humildemente para que se faça uma exceção. 

Primeiro porque eu a perfilada temos uma amizade de mais de três décadas, duas delas passadas na mesma redação. Segundo, não existe nada mais burocrático – e entediante – do que lançar a mão de textos que parecem saídos do ChatGPT. E olha que ele até escreve direitinho: “Isabela Boscov é crítica de cinema e jornalista. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como Veja, Época e Folha de S. Paulo. Foi também júri de festivais de cinema ao redor do mundo”, descreve o algoritmo baseado em inteligência artificial. Por fim, trata-se de um dos casos mais expressivos de ressignificação profissional nos últimos tempos.

Isabela migrou da imprensa escrita para as redes sociais, para onde carregou, com a mesma elegância e senso de humor, os textos que escrevia para a mídia impressa. Observações que pontuavam as resenhas – como a de que Kristen Stewart atua com a expressão de uma aluna enfastiada na aula de química ou a comparação do sibilar irritante da atriz Gong Li a uma panela de pressão no fogo – ganharam seu tom de voz e uma expressão indisfarçável de desapontamento ou alegria. 

O resultado? Um fenômeno no mundo virtual, com mais de 702 mil assinantes no seu canal no YouTube, 88 mil no Instagram e 89 mil no TikTok.

@acervoisabelaboscov

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♬ som original – Acervo Isabela Boscov

 

Observações como “eu achei uma obra-prima” são dubladas por terceiros ou reproduzidas em outras situações. “Usam minhas frases até para disco da Ariana Grande, sinal de trânsito e até metrô”, diverte-se.

Como diria Rafael Barba, o charmoso produtor interpretado pelo ator Raúl Esparza em Law and Order – Special Victims Unit (não por acaso, uma das séries prediletas da perfilada): “Se existe algo que o público gosta, é de uma história de renascimento.”

Apesar do estouro recente, os vídeos não são uma novidade na carreira da jornalista. Pelo menos desde que as empresas de comunicação descobriram o filão das redes sociais e das plataformas de streaming.

Em 2008, ela começou a produzir resenhas e entrevistas para o site da VEJA. Sete anos depois, partiu para a carreira solo. Embora não tenha se desligado da revista, criou seu próprio canal no YouTube. “Mas às vezes ele era abandonado quase que por completo”, relembra ela, que criou ainda um blog com suas observações sobre o mundo do cinema.

O resultado era razoável, porém Isabela conta que optou por um “gerenciamento de energia” e passou a produzir mais no conteúdo para o YouTube – que, afinal, tem melhores resultados financeiros. “Tem meses que dá até para sorrir”, brinca.

O trabalho como influencer trouxe ainda a possibilidade de se associar a outras marcas. Isabela fez propaganda de cerveja, chocolate, camisetas e até de produtos cosméticos. A propaganda para a Avon, que estreou em abril de 2022 (quase no mesmo período em que ela saiu da Veja), chegou a 25 milhões de visualizações em 24 horas. A hashtag “Avonscov”, criada para a campanha, passou a marca do bilhão.

Isabela conquistou esse feito sem apelar para o universo histérico que muitas vezes caracteriza os influencers do mundo digital. “Jamais mudaria minha maneira de ser, senão soaria como o Tio da Sukita (nota do redator para quem conheceu Isabela agora: era o tipo de um comercial de soda onde um sujeito na faixa dos 40 anos queria impressionar uma menina mais nova).” 

E por melhor que seja seu apelo entre os jovens, ela jamais baixa suas referências. No vídeo que fez para analisar Succession, série da HBO, a jornalista se utilizou de personagens do dramaturgo inglês William Shakespeare – em especial o Rei Lear – para analisar o patriarca Logan Roy, interpretado pelo ator Brian Cox. 

Às vezes apela para a ironia. Quando questionou a presença do ótimo ator Jared Harris no horroroso filme de terror Moebius, sugeriu que ele talvez estivesse atolado em dívidas de jogo e que capangas quebrariam as pernas caso não honrasse seus compromissos. 

De volta ao tom pessoal, o passeio por esses vídeos me fez lembrar muito a “hora do café” da editoria de Cultura da Veja. Era o momento em que, fechada a edição da semana, Isabela Boscov reunia os meninos da editoria na pequena “piazza” localizada na Editora da Abril, sediada então na Marginal Pinheiros. 

Passávamos pelo menos uma hora a falar sobre cinema, pensar na pauta da semana seguinte, e receber dicas de culinária e jardinagem (você que está lendo essa matéria e é fã de Isabela, aí vai uma dica: IMPLORE pelas receitas, que foram testadas e aprovadas por todos que as fizeram). 

Aliás, as resenhas do YouTube são versões resumidas das conversas dela com seus comandados. Mesmo porque até agora os seus vídeos não trouxeram suas análises de novelas ou causos sobre os shows que assistiu na década de 1980, na Inglaterra. Que, por sinal, são tão fascinantes como suas histórias sobre a indústria do cinema.

É curioso perceber que boa parte dos admiradores de Isabela Boscov nunca tomou conhecimento de seus textos em veículo impresso. “Creio que as pessoas que estão na faixa dos 30 anos jamais leram revista em papel”, desconfia. 

Outra questão importante é que a faixa etária de seus admiradores diminui cada vez mais. “Hoje a repercussão é de gente de 18 anos. Eu vou a uma palestra e as pessoas enlouquecem”, reconhece.

É justamente a combinação de bom humor com o conteúdo rico que a faz ser tão celebrada não apenas pelo público, como também pelo mercado publicitário. “Isabela fala entretenimento de uma forma acessível e com tópicos/temas/programas que falam com diversas faixas etárias. Combina um assunto quente – House of Dragons, por exemplo – com profundidade de quem conhece, mas de forma acessível e até divertida”, celebra Renata D’Ávila, Chief Strategy Officer da empresa de publicidade FCB Brasil. 

O encantamento, diga-se, não se resume às redes sociais. Muitas celebridades já se renderam ao conhecimento da jornalista. Em 2012, por exemplo, ela entrevistou o cineasta Steven Spielberg, que estava lançando então o filme Warhorse – Cavalo de Guerra. Passadas algumas horas da conversa, a assessora que mediou a prosa solicitou uma cópia da gravação para a jornalista. Censura? Nada disso. O próprio Spielberg ficou tão encantado com o conhecimento de Isabela Boscov sobre a Primeira Guerra Mundial – período onde se passa a trama de Warhorse – que queria ter o papo para si.

A Isabela Boscov que hoje debulha nas redes sociais é uma versão milhões de vezes melhor do que a jornalista que fazia resenhas de vídeo no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e na SET, publicação especializada em cinema. Mesmo porque esses veículos exigiam uma linguagem mais didática. 

Sua entrada em Veja, no início dos anos 2000, foi o ponto de partida para textos que se aproximam da qualidade literária. A análise do seriado John Adams (2008), da HBO, virou um estudo sobre a importância da democracia. A matéria de capa de Veja a respeito de Elizabeth Taylor na ocasião da morte da atriz, em 2012, trazia um ensaio dividido em três importantes partes da diva americana – como símbolo do cinema, sua vida pessoal, e por que figurava o panteão das divas como Marilyn Monroe, Rita Hayworth e Grace Kelly. “É sempre difícil escrever um obituário porque você tem a missão de criar um texto definitivo para o artista”, diz ela.

Isabela é de um tempo em que se fazia vista grossa para episódios de machismo ou abuso moral – este último, aliás, era até incentivado, visto que os achincalhes em público faziam parte do dia-a-dia das redações décadas atrás. “Se houve tentativas de me desqualificar, não prosperaram. Sempre fui uma pessoa muito confiante”, comenta. 

Isabela Boscov na redação

Uma dessas tentativas foi contada durante as sessões de cafeína pós-fechamento. Isabela, na Ilustrada, fazia a função de fechadora: ajeitava o texto mandado pelo repórter, conferia o título e a legenda da matéria e enviava para a seção onde o jornal seria montado e posteriormente iria para a gráfica. Um sujeito da editoria (nota do redator: omitiremos os nomes dos personagens a seguir para não causar polêmica) tinha o péssimo hábito de enviar os textos em cima da hora e “saudar” Isabela com a frase “dá uma boa conferida aí antes de mandar”. Numa dessas manifestações de grosseria, ele recebeu de volta uma resposta tão feroz da fechadora que passou a disparar impropérios em sua direção – sendo contido por outros repórteres da redação. 

Isabela foi personagem de grosserias que duvido que seriam as mesmas caso fosse do sexo masculino. Um colunista achou que o entusiasmo por Gladiador (2000), belíssimo filme de Ridley Scott, tinha indícios de matéria paga pela produtora, o que diz muito da falta de conhecimento deste pelo universo do cinema; outro jornalista a acusou de “não entender nada do assunto” porque ela teve a ousadia de não gostar de Moulin Rouge (2001), bomba dirigida pelo cineasta australiano Baz Luhrmann.

Por fim, um cineasta usou o termo “canalha” para contestar o título que ela havia dado à crítica de sua mais recente produção. Isabela preferiu não levar as polêmicas adiante, embora no caso do diretor enfurecido chegou a pensar em lhe enviar um “canalha não faz parte do meu vocabulário”. Mas novamente optou pelo silêncio.

“Somos em quatro irmãs e meus pais nunca nos viram como se fôssemos diferentes. Bati o pé na porta e fui em frente”, diz ela, que disse ter sofrido mais preconceito quando foi trabalhar na editoria de Ciências do que no mundo da sétima arte. Mas ela acredita que o machismo tem se manifestado muito mais nos dias de hoje do que nos tempos em que começou a fazer críticas. “Elas eram feitas no aconchego do lar ou no bar.” O crescimento das redes sociais fez com que essas pessoas externassem os seus sentimentos de modo mais veemente. 

Uma das desqualificações mais comuns é lançar mão do etarismo. “Quando tentam me ofender, eu simplesmente digo: ‘Vamos ver se você chega aonde eu cheguei com a minha idade e enfrenta as minhas quedas’.” Este que vos digita presenciou pelo menos duas delas. O desmantelamento da redação da revista SET pela Editora Abril, em 1998, fez com que ela vagasse pela redação das revistas Superinteressante e Playboy. Na primeira, se sentiu descolada e pouco afinada com o restante da redação. Em Playboy, a não ser por uma bela entrevista com o cineasta Cacá Diegues, no início dos anos 2000, seus dotes intelectuais nunca foram devidamente explorados. 

Isabela aterrissou em Veja naquele mesmo ano e assumiu a posição de editora executiva em 2009. Sua saída da empresa, em 2015, foi outro baque. Ela passou de chefe para a posição de colaboradora – ainda que uma colaboradora privilegiada. E rendeu ainda uma situação desconfortável. Por uma questão jurídica, Isabela Boscov passou meses publicando resenhas na revista sem poder assiná-las – como se fossem escritas por um crítico anônimo.

E anônima, diga-se de passagem, é tudo o que Isabela não é nesse métier, como fica evidente nas cabines, aquelas exibições de filmes para os jornalistas. Boa parte das produtoras nunca começa uma dessas sessões antes de Isabela adentrar no recinto. E, quando chega, chega “chegando” – às vezes, poucos minutos depois do horário que o filme teria de começar. 

Em determinados momentos, essa estratégia deu ruim. Durante a cabine de As Duas Torres (2001), segunda parte da trilogia de O Senhor dos Anéis, as salas foram invadidas por uma horda de fãs de J.R.R. Tolkien e Isabela simplesmente ficou de fora das várias salas disponíveis naquele dia. Uma outra sala foi liberada, claro, para que ela pudesse assistir às aventuras de Frodo & cia. (até eu me beneficiei dessa gentileza porque também estava atrasado). 

Como chefe, Isabela tem a sapiência de montar grandes equipes e explorar a melhor qualidade de seus comandados. Mas sabe ser dura quando tem de fazer valer a sua opinião, seja para os repórteres e assistentes, seja para a chefia das redações nas quais trabalha. Em 15 anos, fui vítima de duas ou três carraspanas que doeram a alma. Mas, sinceramente, doeram menos do que ela ter amado Constantine (2003), produção de terror estrelada por Keanu Reeves, ou sua notória aversão a musicais – que eu simplesmente adoro.

Isabela Boscov formou-se em jornalismo na USP e, desde seus tempos de Ilustrada tornou-se um ícone fashion. O jornalista e amigo Mario Mendes a apelidou de Totalmente Selvagem (1987) porque, na época em que trabalharam juntos, ela tinha o penteado chanel similar à peruca da atriz Melanie Griffith no filme dirigido por Jonathan Demme. 

Isabela é casada há mais de três décadas com Guilherme Brás Gouveia, designer gráfico que também cuida da produção e da edição de seus vídeos. O romance nasceu nas pistas da Nation, casa underground de São Paulo na década de 90, ao som de “Always on my Mind”, dos Pet Shop Boys. 

Descendente de imigrantes russos da região de Kubei, que em 1927 saíram do país para uma vida melhor em terras brasileiras, Isabela traz muito do comportamento rígido e estoico que caracteriza seus ancestrais. 

O crítico de música que habita em mim diria que ela tem a rigidez de uma Sétima Sinfonia, de Shostakovich, símbolo da resistência russa aos exércitos de Hitler. Mas em seus momentos mais brilhantes – que não são poucos – ela é um equilíbrio da doçura e da rigidez, tal e qual a Sexta Sinfonia, de Tchaikovsky. Isabela, ou The Boss (a chefe), como eu gosto de chamá-la, é uma personagem e tanto.

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