Relembre a entrevista de Preta Gil à ELLE impressa
Cantora encarnou uma noiva em fuga para o volume 15 da ELLE, em março de 2024, e falou sobre relacionamentos, família e sua relação com o corpo.
Em março de 2024, prestes a completar 50 anos, Preta Gil deu uma longa entrevista à ELLE impressa. A conversa, com a jornalista Patrícia Zaidan, foi publicada no volume 15 da ELLE, acompanhando o ensaio de capa da edição, fotografado por Juliana Rocha.
Nas ruas de São Paulo, Preta posou vestida de noiva, na garupa de um motoqueiro empinando a moto. Em outra imagem, aparecia em frente a um cenário em chamas. Celebrava o renascimento após se livrar de um casamento infeliz e um momento de vitória contra a doença, depois de um período de internações. Falou sobre a traição sofrida, o tratamento da doença e a relação com o pai. Sempre aberta e autêntica. Sempre Preta Gil. Confira a seguir a entrevista completa com a cantora, que morreu neste domingo, dia 20, após dois anos de luta contra o câncer.
Sim para a liberdade
Uma fênix. Essa é a imagem que Preta Gil se atribui à beira dos 50, idade que atingirá em agosto. Em 2023, viu-se morta e ressurgiu das próprias cinzas, emblematicamente, para golpear um câncer colorretal e um casamento infeliz. Os eventos traumáticos ocorreram de janeiro a dezembro, em sequência devastadora: diagnóstico, quimioterapia, infecção generalizada (sepse), separação do marido – o personal trainer Rodrigo Godoy –, descoberta da traição dele com a ex-stylist dela, radioterapia, amputação de reto, ovários, útero, trompas e apêndice e, por último, a religação do intestino.
Enquanto o corpo cicatrizava, a cantora, atriz e sócia da agência de marketing de influência Mynd dependeu de uma bolsa de ileostomia para eliminar resíduos do sistema digestivo. Preta deu à pochete repaginada o nome de Angel. Apareceu no Instagram com o acessório colado ao corpo, contando que primeiro odiou e depois achou milagroso: “Amores, não tenham vergonha se um dia precisarem. Essa bolsa salva vidas!” Preta adoeceu e se tratou aos olhos da multidão que habita as redes, sem pudores de revelar a intimidade.

Foto: Juliana Rocha
Ela topou o ensaio fotográfico de ELLE, ruidosamente alegre e irreverente, porque celebra a reentrada na vida sob outra modalidade de ser Preta. Acabou aquela coisa de preferir roupas que disfarçam coxas e braços gordos – mesmo sendo um ícone do body positivity, a artista se cansava da patrulha dos haters –, não fará mais lipo. Mostrará a silhueta e as curvas, favorecida pela cintura e barriga reta. Com o joelho operado anos atrás e uma hérnia de disco recém-detectada, opta por não usar salto alto. Mas quer perpetuar sua presença com peças que levam brilho, afinal é leonina. A entrevista de Preta:
Nas fotos, você encarna uma noiva em fuga, outra incendiando a casa, com um buquê de espinhos… Que metáfora é essa?
A desconstrução da educação da mulher para casar. Na minha história, a metáfora é derrubar a codependência de um homem. Nunca é tarde. Mesmo aos 50 eu posso romper com os arquétipos de felicidade. O que é felicidade? Amor romântico? Não estou traumatizada, mas é melhor a mulher casar com a liberdade. Acabou, não tem mais amarra! Para mim, essa noiva loucona simboliza o amor-próprio. Ele é a chave da felicidade.
Por que o feminismo ainda não convenceu a mulher de que a idealização do casamento é uma cilada?
Esse projeto interessa ao patriarcado. O par romântico é controle e limite. Entram na conta a noção de propriedade na mão do homem, a religião, a culpa católica. Feminismo é evolução. Vivemos teorias e práticas ainda sem completar a ruptura. Não fui criada no conservadorismo, mesmo assim caí na cilada. Descasquei a cebola para ir ao miolo. Quero chegar ao casamento não monogâmico.
O fato de ter sido traída pelo marido com uma mulher das suas relações doeu mais? Ou você choraria por qualquer traição?
Me separei e só 20 dias depois, chocada, descobri a traição. As fichas foram caindo, chorei e me culpei, perguntando: “Como dei espaço para isso acontecer? Por que não vi sinais?” A gente pode ter inteligência, dinheiro e viver a relação tóxica sem notar. Minha autoestima desabou. Ser traída me desvalorizava. E não é nada disso. Não é sobre a minha atitude, mas a do outro. Não fui eu quem rompeu com o amor, a promessa, o pacto, a empatia. Foi ele. Traição carnal acontece. O problema é seguir traindo, mentindo, manipulando. Eu precisava de cuidados e meu marido não estava em casa.Na vida, nada vem por acaso. Tinha que curar tudo. Não adiantava resolver o câncer e continuar dormindo com o inimigo. Não romantizo a dor. Foi horrível, porém reveladora. Ela leva a sentimentos profundos, que transformam. Já a euforia, a paixão e o desejo de ver a relação dar certo cegam. O espiritual conspirou: “Vai ter que ser tudo junto, agora”. Foi um livramento.
Você se casou no cartório? Já concluiu o divórcio?
Eu era totalmente casada! Tinha o sobrenome dele. O divórcio saiu logo, mas até acabar levava o peso atrelado a mim. Nas internações, era identificada como senhora Preta Godoy. Uma burrice que fiz, achando que ter o nome do homem era bonito, prova de amor. Gente, é tão antigo e ultrapassado. Me arrependo. Para que perder a identidade?
A medicina nos vê como um corpo cindido, em peças, embora sejamos um todo, psique e soma. Ao receber a notícia do câncer, você associou a sedentarismo, comida ultraprocessada, estresse etc. Houve depois a noção de que adoecimentos são desorganizações, vêm de longe e se agravam em situações emocionais difíceis de lidar?
Acho que meu intestino falou sobre traumas do passado. Pesou, sim, o estilo de vida que escolhi. E também as situações não aceitas, as vivências que não digeri e crenças limitantes. O tratamento contou com três pilares: médico, emocional e espiritual. Além de químio, rádio e cirurgias, fiz psicanálise, terapias alternativas e aumentei a relação com o candomblé.

Foto: Juliana Rocha
Você enfrentou longas horas, durante as anestesias e a sepse, com total inconsciência – o que muitos descrevem como experiência de quase morte. É possível apreender algo na imaterialidade?
Minha clareza aumentou e a intuição se refinou, virou um terceiro olho. É como se, fora do meu corpo, tivesse visto coisas. Retomei à consciência com recados. Amigos vinham visitar, eu dizia: “Olha, deixa tal atitude para resolver o problema”. Ou: “Faça isso, faça aquilo”. Eles brincavam: “Você anda numa vibe mãe-de-santo. Virou Preta-curandeira”. A sepse foi grave. Os médicos deram duro para me ressuscitar. Acordei decidida a me separar. Também senti a energia ruim em certas pessoas e me afastei. Eu me reaproximei de outras com quem briguei. Perdoei e me dei perdão. Você não entra numa quase morte para sair igual, fazendo as mesmas bobagens.
Hoje você tem um corpo cortado e juntado em cicatrizes. Como está lidando com a nova identidade? Uma seguidora mandou você vestir um maiô para tampar as marcas.
Eu respondi: “Não vou me esconder como você quer”. Uso biquíni e posto. Não cuidei do meu corpo a vida inteira. Foi ele que cuidou de mim. Tenho gratidão por ele ter suportado, em um ano, mais de 12 procedimentos e cirurgias. Amo as minhas nove cicatrizes. São sinais da vitória. Assim como amo a minha menopausa, as estrias, as rugas e as manchas.
O custo de contar tudo nas redes não é alto demais? Você decide o quanto dar de si diante do apelo do público, ávido por intimidade?
Tomar cuidado é necessário sempre. Nem entre quatro paredes há privacidade, se você não conhece bem quem deita na sua cama. Doso a relação na internet. Da minha vida privada, decido o que preservar. Comecei a carreira em 2002 e abri uma conta no Orkut para entender a comunidade “Eu odeio a Preta Gil”. Fui tateando, me protegendo. Sei a diferença entre o real e o digital e onde eles se cruzam. Meu interesse está nessa intersecção. Mapeio o digital, tenho negócios nele, o respeito. E posso debater com mais gente, criar consciências, conquistar fãs e levá-los para os meus shows. Mas não trago para o coração o veneno das redes. Fake news me preocupam: as pessoas não querem saber o que é verdade. Repassam. Ética e criação de leis são necessárias para responsabilizar a pessoa por trás dos perfis, que engana e leva seguidores a ações ruins.
Na nossa cultura, pouco se fala da morte. Você vem de uma família espiritualizada, que viveu a perda precoce de seu irmão Pedro, num acidente de carro. O luto desmitificou o tema em casa? Como seu pai, o compositor Gilberto Gil, abordou o morrer com você?
Perder o Pedro de forma abrupta foi uma dor inaceitável. Eu tinha 15 anos, e ele 19. Era músico, no auge da plenitude. Meu pai lidou melhor do que a família. Em 2017, ele também agiu com serenidade nas inúmeras internações para tratar uma síndrome cardiorrenal. Sempre conectado com a filosofia oriental, escreveu músicas como “Não tenho medo da morte”. Quando me viu no hospital, lutando contra aquela situação terrível após a sepse, me disse: ‘‘Preta, a gente luta até um limite. Há outra esfera da cura que não passa por nós, que não podemos decidir. Então, seja resiliente, aceite o que vier. Se for para ser a morte, pense: ela pode ser boa, a solução, e não o problema. Se você estiver sofrendo demais, se for duro demais, e se a recuperação se tornar impossível, aceite a morte como um novo começo”. Eu estava zonza, debilitada e tive medo. Em outros diálogos, com ele falando do jeito gilbertiniano, que inclui filosofia e poesia, entendi, virei a chave. Aceitando a finitude, tive calma e entrega. Eu dizia: “Deus, meus orixás e santos me protegem, os médicos fazem tudo, e eu vibro pela vida. Se chegar a morte, ok.” Meu pai faz carinhos na minha alma. Sento para tomar um café da manhã com ele e aprendo. Vejo como ele escolhe os alimentos, como mastiga e fala. É meu Orixá vivo.
Quando criança, você já o via como um sábio? Como lidava com as ausências de Gil, que dividia a atenção entre oito filhos, ex-mulheres, suas composições e as lutas políticas?
Não via como sábio, não. Na adolescência, me revoltava porque ele não me buscava nas festas e faltava na reunião da escola. Mas o que isso significa diante de um pai que compõe “Se eu quiser falar com Deus” com você do lado? A irmandade supria um pouco a falta. Vivemos uma infância feliz, numa família-tribo. Há discussões, às vezes brigas banais. Mas é todo mundo junto, e Gil sem preterir ninguém.
Você assume a bissexualidade, ataca a gordofobia, defende a comunidade LGBTQIA+. E tem a coragem de confessar que precisa aprender mais para eliminar qualquer tipo de racismo. Tornar-se antirracista demanda muito trabalho, não é?
Fui criada em Salvador, a cidade mais preta fora da África, e o combate ao racismo era natural, embora eu não fosse militante. A verdade sobre a nossa história, o apagamento cruel da nossa cultura emerge com muita força hoje e requer mudanças radicais. Eu desconhecia que meu corpo não é só sobre mim, mas sobre o coletivo, e aprendi da pior forma possível. Em 2016, no Teatro Castro Alves, na Bahia, participava de um debate sobre mulheres negras, a convite de Olívia Santana (deputada estadual do PCdoB). Eu disse que não ligava para as pessoas que me denegriam na internet. Tomei uma vaia. Depois, fiz referência a mim como mulata. Outra vaia. Soube ali que “denegrir” e “mulata” são termos racistas, ofensivos, têm que ser banidos. Decidi saber tudo sobre os ancestrais e a minha negritude, que a branquitude escondeu. Meu letramento é dialogar com ativistas antirracistas, como Djamila Ribeiro ( filósofa), Carla Akotirene (doutora em estudos de gênero), Maíra Azevedo (atriz), Taís Araújo (atriz) e Luana Xavier (roteirista). Quem sabe sobre o Brasil é o povo negro. E o indígena.
O que são na sua vida Sol e Drão?
Sou como minha mãe, Sandra Gadelha, também leonina, e a cada dia fico mais parecida. O jeito de ser esfuziante vem dela. Tenho a palavra Drão (apelido de Sandra) tatuada na mão. É um privilégio ser avó de Sol, que tem quase 9 anos. Aos 20, tive Francisco (cantor e compositor), e ele é pai. Não sei se Sol vai querer filhos. Só a possibilidade já me dá a sensação de longevidade. Sol não cabe no meu peito, extrapola tudo, é amor livre. Revejo nela a Preta criança. Outro dia me perguntou se eu conhecia Celly Campello (rainha do rock nos anos 1960), que ela viu no YouTube. E cantou para mim “Estúpido cupido”. No Bloco da Preta, Sol interpretou a música. No hospital, quando sentia que não ia resistir, Sol entrava e falava: “Vovó, você é muito guerreira”. Quero viver e ver essa menina se tornar mulher. Francisco e eu nos criamos juntos: a gente foi se autoeducando, errando e seguindo. Agora, na maturidade, posso proteger a minha neta, incentivar, ensinar o que me faltou e hoje sei.
O astral da Preta que emergiu das cinzas está em De volta ao Sol, EP lançado este ano. É a reafirmação da sua gratidão à cura, aos amigos?
Totalmente. Não compus as músicas agora, mas em 2021. Somos premonitórios. A neurociência explica que podemos antever o que virá. Tudo está escrito nas nossas células. A dificuldade é ler. Doente, não consegui compor nada. Estava numa bad, em anulação criativa, achando que não cantaria mais. Escutei a gravação da canção “De volta ao Sol” e minha cabeça bugou. A letra diz: “Dá a volta por cima, você não está sozinha, joga a tristeza pra lá. Só chega cantando assim, vem… ela consegue ver o futuro que ela vai ter”. Eu já intuía que haveria um hiato forçado e a música me salvaria. Muito louco: o tridimensional é real. Passado, presente e futuro se fundem hoje. A dor me trouxe o insight. Quero decifrar o mistério da vida. Estou tentando traduzir isso em um livro, que devo lançar no meu aniversário.
Você se sente pronta para planos futuros?
Não posso dizer: “Uhuuu, acabou. Vou viver tempos normais!” No Carnaval, não aguentaria cinco horas no trio elétrico debaixo do sol. Voltei com o Bloco da Preta em lugar fechado (RioArena), cercada pelo meu cirurgião, os fisioterapeutas, a família. Os Gilsons, Pabllo Vittar e MC Carol cantavam enquanto eu comia, alongava, descansava. Em Salvador, no Camarote 2222, onde sou anfitriã, peguei uma gripe, o corpinho pediu pausa antes do último dia de folia e fui me cuidar. Faço o que dá. Não cogito projetos grandes para não me frustrar. Na reabilitação, me foco na fisioterapia pélvica e estou reaprendendo a fazer cocô. Como o tumor era grande, amputei o reto. A função dele era armazenar as fezes e comunicar ao cérebro: “Expulsa agora”. Sem receber a informação, o meu cérebro não controla. A incontinência fecal é uma questão delicada, mas é a minha realidade e preciso falar dela. Há mulheres sofrendo sozinhas e querendo morrer como se não pudessem viver nessa situação. Usei fralda por um período grande. Minha vida gira em torno de um banheiro. Se vou ficar muito tempo longe dele, recorro à fralda. Não posso ignorar as sequelas emocionais, espirituais e fisiológicas. Os gatilhos que me desestabilizam aí são muitos. Então existe a fralda, desconfortável e necessária. Logo me libertarei dela. Para namorar, ter uma relação íntima, ainda é complicado. Estou, porém, em remissão de um câncer. Isso é gigantesco e me dá outro tipo de prazer.
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