Silvia Buarque: cinema, política e resistência
A atriz, que está no elenco de Homem onça, ao lado do ex-marido Chico Díaz, trabalha em dois novos filmes e atua como forma de seguir adiante.
Em uma época de desmonte da cultura brasileira, estar atuante, produzindo e fazendo acontecer, sem dúvida é uma forma de resistir ao cenário devastador que a classe artística atravessa. Aos 52 anos, a atriz Silvia Buarque tem um papel de destaque no filme Homem onça, dirigido por Vinícius Reis e protagonizado por seu ex-marido, o ator Chico Díaz, pai da sua filha Irene, de 15 anos. O filme, baseado em uma história real vivida pelo pai de Vinícius na Vale do Rio Doce, aborda de forma sensível a devastação humana causada pelo processo das privatizações no Brasil. “É um filme muito intrigante e, ao mesmo tempo, afetivo. Infelizmente, o tema está muito atual. Mas nós o fizemos recheado de carinho. Com a equipe toda muito próxima, familiar, vários amigos de longa data, casais e ex-casais, isso foi muito bom”, conta Silvia.
Rodado no início de 2018, o longa-metragem estreou no fim de agosto nos cinemas e chega ao streaming do Canal Brasil no próximo dia 7 de outubro. Na trama, Silvia vive Sônia, mulher do personagem central, Pedro, interpretado por Chico. Apesar de toda a devastação na Ancine, a atriz está envolvida em mais dois filmes. Um deles é Os escravos de Jó, de Rosemberg Cariry, rodado durante o vira-voto no segundo turno das eleições presidenciais, em 2019, em Ouro Preto (MG), com histórias entrelaçadas e pegada antropológica. Em novembro, Silvia filma no interior do Ceará um roadie movie do diretor Petrus Cariry, filho de Rosemberg, em que interpreta uma dona da loja de conveniência de um posto de gasolina.
Silvia em cena de “Homem onça”Foto: Divulgação
Neta do historiador Sérgio Buarque de Holanda, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), e filha de Chico Buarque e Marieta Severo, Silvia nasceu no exílio do pai em Roma, em 1969. Ela aparece bebê na Itália em cena do documentário Chico Buarque – Artista brasileiro (2015), dirigido por Miguel Faria Jr., que chegou no mês passado na Netflix. Além do berço, ela tem um gosto genuíno pela política e está sempre presente nas manifestações, físicas e digitais.
Conversamos com a atriz sobre o filme, sua carreira, formação política, a família ilustre e seus planos para o presente e para o futuro:
Qual sua sensação em relação a Homem onça?
Eu acho o filme muito intrigante. E também muito afetivo. Foi construído com carinho. Existem muitos casamentos dentro da equipe. Acho que isso reflete dentro e fora da tela. Chico e eu erámos casados na época. Eu estreei no teatro com o Vinicius, que era ator, eu com 16 anos e ele com 15. A Bianca Byington (que também se relaciona com o personagem de Chico Díaz no filme) é minha amiga-irmã. A produtora, Gisela Câmara, é ex-mulher do Vinicius, mãe do filho dele. É um filme muito familiar. O projeto é de 2010, e gravamos há três anos e meio. Fala da privatização da Vale do Rio Doce, e de como essa reestruturação afetou a vida das pessoas que trabalhavam lá, caso do pai do Vinicius. Pessoalmente, me lembro do meu tio, Luiz Severo, irmão da minha mãe, que trabalhava lá e, coincidentemente, conhecia o pai do Vinicius. Foi uma época muito carregada. Infelizmente, estamos vivendo esse momento novamente.
Como você vê o resultado final do trabalho?
Eu adoro o filme, cada vez mais. Já virou um dos meus xodós. São poucos filmes em que a gente gosta de tudo. Mas esse foi assim e estamos tendo um retorno positivo, saíram críticas boas. Tem filmes que fiz que não gosto do meu trabalho. É muito bom quando a gente gosta. E, no meu caso, é muito raro (risos). Tenho a maior dificuldade de me assistir, me critico muito. Mas acho que acertei, modéstia à parte.
A atriz em cena de “Gonzaga: De pai para filho” (2012)Foto: Divulgação
Quem são seus maiores críticos?
Meus pais são bem corujas, mas eles comentam em relação à obra, dão a opinião deles, tanto nos filmes quanto nas peças. Minha mãe costuma ver o ensaio geral (dos espetáculos). A Adriana Falcão, minha grande amiga, também opina bastante. E o diretor Rosenberg Cariry é minha família no cinema.
Como foi trabalhar com o Chico, seu ex-marido?
Já fizemos três filmes juntos. Em Os pobres diabos (de Cariry) ficamos cinco semanas no Ceará, a Irene tinha 7 anos. A gente trabalhou incessantemente. A carga horária do cinema é puxadíssima. Neste filme, éramos amantes. No cinema, já fomos amigos, amantes, casados e separados. Chico entende muito de cinema. Ele é brilhante, um atorzaço. Tem aquele olho, aquela cara, dá pra fazer tudo.
Cinema, teatro e televisão. O que te atrai mais?
Me considero uma atriz dos três veículos. Acho que tive melhores oportunidades e melhores convites até hoje no teatro. De uns anos pra cá, estou muito encantada com a carreira cinematográfica, depois do Gonzaga (Gonzaga: De pai para filho, de Breno Silveira). Tenho muita ternura por este filme. Ali comecei a virar mãe no cinema, mãe de gente grande… Abre um leque, demorou a acontecer isso comigo. Gonzaga depois virou minissérie e me abriu muitas portas. Mas tenho um amor especial pelo teatro. E a paixão recente pelo cinema.
Como vê o cinema brasileiro?
Estava vindo de vento em poupa. Gosto demais, procuro acompanhar tudo. Agora está definhando, estamos em um momento trágico com a Ancine. Quando falo em cinema, penso no ódio que esse governo tem da gente. Mas, antes de tudo isso, vinha melhorando muito. A qualidade dos roteiros, temos grandes roteiristas hoje em dia. Cinemas regionais que correram o mundo. A gente bomba nos festivais, temos feito bonito lá fora, com diretores como o Karin Aïnouz (A vida invisível, Madame Satã) e Kleber Mendonça Filho (Bacurau, Aquarius).
“Tenho a maior dificuldade de me assistir, me critico muito”
Você é bem atuante nas redes. Qual a sua relação com a política?
Eu gosto muito de política. Estudei no CEAT (Centro Educacional Anísio Teixeira), o que me deu uma noção muito grande. A escola recolheu donativos (alimentos não perecíveis) para a greve do ABC. A gente já sabia quem era o Lula em 1979, 80. Tínhamos liberdade para falar de tudo. Quando comecei a me entender por gente, com 10, 11 anos, (1979/80) era a abertura (política) e os professores estavam entalados (censurados), alguns tinham sido presos políticos. Tive um professor chileno que fugiu da ditadura do Pinochet. O meu interesse sempre foi por humanas, ciências sociais, antropologia, me interessava muito por politica. Li O povo brasileiro, do Darcy Ribeiro, com uns 20 anos. Tinha a influência da família, da escola, mas sempre foi muito genuíno também. E foi crescendo ao longo do tempo. Fico lendo sobre política externa, a situação horrível da Hungria, o conflito entre Israeal e Palestina. Mas tudo leigamente, lendo jornais.
E você tinha também sua formação politica em casa…
Meu avô morreu quando eu tinha 13 anos. Eu me lembro muito bem dele, de conversas normais, mas não de políticas. Com meu pai, sim. Ele viajava para Cuba, Angola, Nicarágua e contava muito da censura. Meu pai foi, inegavelmente, o cara mais perseguido pela censura. Ele os chamava de “mandalhões”. Eu me lembro de, aos 5 anos, no Canecão, ver o show dele com a Bethânia e de “Tanto Mar”, que a banda tocava sem a letra, e ele explicava que os mandalhões não deixavam ele cantar. Mas lá em casa não tinha papo de tortura, por exemplo, eles nos poupavam. Meu pai foi detido algumas vezes. A música “Acorda amor” é bem isso. O policial só não entrou no quarto dele pois o porteiro pediu para acordar ele antes, para que não fosse acordado pela polícia. Ele não chegou a ser preso, mas foi detido, teve que prestar depoimento. Mas nós crianças fomos poupados disso. Eu me lembro muito da Zuzu Angel, de quando ela morreu. Mas, na época, eles disseram para gente que tinha sido um acidente de carro, não contaram que foi um atentado… Tinham um cuidado.
Conta um pouco do seu nascimento, na Itália.
Eu nasci no exílio, em Roma. Minha infância foi permeada de histórias (sobre a Ditadura), mas meus pais aliviavam muito…. Vim para o Rio com 1 ano e meio. Eu não me sinto nada italiana, mas me sinto um pouquinho romana (risos). Quando fui a Roma, fiquei emocionada. Minhas fotos de neném lá, toda encasacada na Villa Borghese (parque da cidade). Tenho uma relação afetiva muito grande com Roma, nenhuma intimidade. Fui para lá e ligava para o meu pai, para a minha mãe e eles diziam “a gente morou aí perto, veja a prédio…”. Mas sou 100% brasileira, e carioca, claro.
Quando decidiu ser atriz e como começou?
Fiz vestibular para Ciências Sociais, mas entrei no teatro com 16 para 17 anos. E com 18, ano que deveria estar entrando na faculdade, já estava fazendo uma novela na manchete Corpo santo. Eu era verde, verde, não sabia de nada. Já tinha feito uma peça infantil do Carlos Wilson Damião, que botou muita gente na estrada. Ele me convidou no Baixo Gávea para fazer a peça e eu disse que não era atriz. Daí alguém falou: mas ela dança. Eu fazia jazz na época. E era um musical. Eu respondi para ele que faria mas não queria ter texto… (risos). Até hoje meus amigos fazem piada com essa história. Na mesa do bar do Baixo Gávea estava também o Enrique Diaz, meu amigo de CEAT (que se tornaria seu cunhado). Daí fui fazer a peça e o bichinho me pegou… Tinha feito Os saltimbancos (que, além de sua mãe e irmã Helena, contou com Miúcha e Bebel Gilberto, sua tia e prima, respectivamente) quando eu era criança, mas foi uma experiência familiar.
Com os pais, Chico Buarque e Marieta Severo, em Roma, 1969Foto: Arquivo pessoal
Como foi a influência da sua mãe?
Quando você tem a mesma profissão dos seus pais, existe uma influência inegável. Está em algum lugar da minha infância que não sei localizar. Mas me pegou mesmo na adolescência. Não queria ser atriz a até começar a ser. Acho que fui uma adolescente muito precoce, criada com muita liberdade. Meus pais me tiveram jovens. Quando eu tinha 18 anos, minha mãe tinha 40. Eu sou a mais velha e eles me soltaram antes (risos). Minha mãe diz que tem três filhas, cada uma de um planeta, que não poderíamos ser tão diferentes. A Helena é pedagoga, a Luisa, filósofa. Sou a mais extrovertida, com certeza.
A arte imita a vida?
Eu acho que tem sempre uma ressonância com um pedacinho dentro da gente. Nos aproximamos dos personagens, sim. Se eu lembrar de cada trabalho que fiz na minha vida vou fazer uma ligação automática com o que eu estava vivendo naquele momento e onde resgatei determinadas características de cada personagem que fui compondo.
MEMÓRIAS DE SILVIA BUARQUE:
Cinema nacional: vou resumir em um nome, Eduardo Coutinho.
Homem onça: minha paixão atual, um filme político e altamente poético.
Um sentimento sobre o Brasil hoje: medo.
Privatizações: dos serviços essenciais acho um estrago.
Desmonte da cultura: um projeto demoníaco e já esperado.
Eleições de 2022: Lula.
Política para você: sou uma leiga muito interessada.
Vai passar? vai passar.
Suas referências artísticas: provavelmente minha mãe em A ópera do malandro. Eu tinha uns 7 anos e sabia de cor.
Teatro: Tablado.
Pai e mãe: meus amigos.
Irene: minha paixão maior. Uma menina muito madura.
Os Saltimbancos: Lembrança doce e alegre. Saudades da Miúcha.
Bebel Gilberto: como se fosse minha irmã mais velha. Ela tem três anos a mais do que eu. Somos muito ligadas, passamos a infância muito juntas.
Sobre nascer em Roma: um charme.
Rio de Janeiro: minha cidade.
Seu melhor papel: Talvez Luzia, de Ventania, (peça) dirigida por Gabriel Villela, em 1996.
Filme que ama: A vida é bela (de Roberto Benigni). Sou da turma que ama.
Um diretor: Rosemberg Cariry.
O que está lendo: a morte do pai, de Karl Ove Knausgard.
Bebel Gilberto e Silvia, no anos 70Foto: Arquivo pessoal
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes