Imaginar, apesar de tudo

No livro Vista Chinesa, Tatiana Salem Levy nos leva a imaginar o inimaginável: a dor do estupro sofrido por uma de suas melhores amigas.


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“É um romance sobre o inimaginável, baseado no ápice do horror que o machismo pode produzir: o estupro.” É assim que a escritora carioca Tatiana Salem Levy fala sobre seu novo livro Vista Chinesa (editora Todavia, 112 págs.), que acaba de ser lançado no Brasil. “Eu quis imaginar a dor, quis colocar em palavras o indizível, porque quando estamos diante de algo tão terrível, a nossa tendência é achar que não conseguiremos contar, que não encontraremos as palavras.” A dor, aqui, é o estupro que uma de suas melhores amigas, a diretora de TV Joana Jabace, sofreu em 2014, ao ser levada para o meio da Floresta da Tijuca, durante uma tarde em que saiu para correr no trajeto que vai do Horto até a Vista Chinesa, no Rio de Janeiro. “Naquele dia, justamente naquela hora, eu havia mandado uma mensagem para a Joana. Vi que ela não leu, mas achei que estivesse em alguma reunião, porque é uma pessoa bastante ocupada. Só no dia seguinte recebi o telefonema da minha irmã contando o que tinha acontecido”, lembra Levy.

“Naquele momento em que quase morri, eu morri. Ele foi embora e eu fiquei morta. Lembro de me virar, olhar para o céu e ter a sensação de que havia morrido, de ver as estrelas, de ouvir o som, como se alguma coisa estivesse se descolando do meu corpo. Eu estava indo embora.” Este é um dos fragmentos da carta que Júlia, a protagonista do livro Vista Chinesa, resolve escrever aos filhos pequenos relatando o estupro que sofreu, cinco anos antes. “Pensando melhor, não é bem uma carta. É mais um testemunho. Um testemunho, não. Um testamento. O testamento que eu não quero deixar para vocês”, diz a personagem.

Na obra de Levy, o tempo não é linear, ele é cortado constantemente, como acontece com a memória de Júlia durante os depoimentos à polícia, em que os detalhes do terror se perdem, ao mesmo tempo em que estão, desde a pavorosa realidade de sua experiência, sempre presentes. São dois planos que ora se opõem, ora se sobrepõem na vida de quem sofre um trauma. “No início, era só o cheiro. O cheiro dele, o cheiro da jaca, um cheiro que sinto até hoje, nos lugares mais inusitados, em férias no México, tomando margarita em frente ao mar, de repente ele aparece, o mesmo cheiro que senti caminhando na mata. Eu não escolho, ele volta quando quer, onde quer”, escreve Júlia.

A decisão de misturar a memória do estupro, a vida depois com os filhos pequenos, a adolescência com aparelho nos dentes, o resgate da vida sexual, as férias com rituais místicos no México, as idas à polícia, o estupro novamente, foi decisiva para Levy encontrar o ritmo incessante do texto, que faz o leitor não conseguir largar a narrativa. “Percebi que não poderia escrever de um modo linear, porque não é assim que a nossa mente funciona, principalmente depois de passar por algo tão violento. Nestas situações, acho que a pessoa sofre uma dissociação, como se estivesse lá durante o que aconteceu, mas, ao mesmo tempo, fosse uma espectadora de sua tragédia”, diz Levy.

Na época em que aconteceu o estupro com Joana, a escritora acompanhou diariamente o sofrimento da amiga, a quem considera, desde a adolescência, uma segunda irmã. Por mensagens, telefonemas, chamadas de vídeo, já que Levy mora em Portugal, ficava a par do calvário pelo qual Joana passava: exames médicos, medicamentos antirretrovirais, depoimentos, inúmeras tentativas de reconhecer o agressor, sessões de terapia, flashes dilacerantes de seu corpo sendo invadido, machucado, a sensação de solidão. No livro, esta morte simbólica, de não estar mais inteira em lugar nenhum, é descrita em muitos momentos da narrativa: “Um pedaço de mim, um pedaço grande de mim havia ficado na mata, perdido, esfacelado, restos de carne, comida dos animais”.

Durante uma visita à exposição “Os inocentes”, da fotógrafa Taryn Simon, em que ela documenta casos de pessoas que foram presas injustamente a partir do reconhecimento das vítimas, Levy achou que tinha ali um gatilho para fazer o livro baseado na história de Joana, que na época também já havia desistido de reconhecer o agressor, por medo de cometer uma injustiça. Mas o impulso maior viria somente depois, durante a segunda gravidez de Levy, desta vez de uma menina. “Acho que foi também a vontade de que as coisas mudem, de encarar de frente a violência pela qual as mulheres são submetidas. Nós, principalmente no Brasil, vivemos com este fantasma, com o pavor de que isso nos aconteça a qualquer momento”, diz Levy.

Foram alguns meses de áudios, mensagens e telefonemas entre as duas amigas até a escritora achar que já tinha os fatos que serviriam de base para a sua história. A partir daí, criaria uma ficção, ou uma alterficção, algo que pode ser pensado como a criação de uma narrativa a partir do outro. “Mesmo depois de ter os depoimentos, eu ainda não sabia como conseguiria colocar a dor do que ela viveu no livro, porque a Joana sempre me contava tudo de uma forma pragmática, com muitos detalhes, mas de uma maneira distante, talvez para se proteger. Foi quando percebi que a chave estava ali: os detalhes é que dariam a dimensão do horror. Algo que não é sempre usual na literatura, porque muitas vezes, diante de algo tão aterrorizante, a tendência é darmos um corte na história, deixarmos um vazio. Eu percebi que teria que fazer o contrário: teria que detalhar,” conta Levy.

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Para o leitor, a existência do mal personificado e da total ausência de humanidade são colocados em questão, já que o que Júlia encontra, como descreve, é como ter “o diabo na frente”. Primo Levi, em É isto um homem? (editora Rocco, 176 págs.), fala sobre esta mesma sensação, assim como o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, em Imagens apesar de tudo (Editora 34, 272 págs.), obra que foi uma referência para Levy, onde o autor faz uma defesa sobre a imagem como forma de resistência, quando discorre sobre quatro fotografias tiradas nas câmaras de gás, em Auschwitz. “Foi ali que percebi que é preciso imaginar o inimaginável. Não posso sentir a dor da Joana, mas posso imaginá-la, colocar aquilo em palavras, encarar o monstro”, diz Levy. No livro, é como se fôssemos mesmos transportados diretamente para a mata, para o inferno sem fim a que Júlia foi arrastada. “A arma colada à minha cabeça, ele me puxava com força, me arrastava pelo mato, os galhos me arranhavam, as árvores tapavam a visão. De vez em quando, uma palavra, uma frase, anda senão eu te mato, e o bafo subindo pelas minhas narinas, a vontade de vomitar logo ali, as pernas arrastadas, cambaleantes mas fortes, obedecendo à voz, ele ia me matar e eu não queria morrer.”

Levy opta no livro por detalhar cada movimento do agressor em diversas passagens, como se, a cada lembrança, outras partes do horror surgissem, coisas que ela ainda não havia mencionado ao dar o primeiro depoimento à polícia, coisas que pensava ter esquecido ou não reparado, como quando precisa descrever exatamente a cor e o tipo das luvas usadas pelo estuprador. “Que tipo de luva, eles iam me perguntar depois, que cor de luva, você tem certeza, você lembra bem, que tipo de luva, que cor de luva, grossa ou fina, preta ou azul, será que você não está se confundindo, tem certeza que as luvas eram assim”, escreve Júlia.

“Um trauma, palavra que eu ouviria da polícia dezenas de vezes, interrompe tudo ao seu redor, interrompe o próprio mundo, embaralha o tempo, a memória, e você é arrastada para fora da paisagem”, escreve a protagonista. O livro é, em si mesmo, uma luta contra isso: deixa clara a necessidade do não-esquecimento, de esgotar cena a cena, de dar nome às coisas para que assim surja a possibilidade de se seguir em frente. Ao terminar a leitura, pode se pensar se o livro é, de antemão, uma obra política ou se trata da história de uma dor singular. Para Levy, todo livro é político. “Aqui, tive que me concentrar na dor específica de um estupro – e não na de milhares de mulheres. Mas acho que o livro vai ajudar a abrir a discussão, que é política, de o estupro ainda ser um tabu, pouco relatado, denunciado e muito associado à vergonha e culpa.” A escritora também conviveu, de maneira indireta, com essa dor: sua mãe foi violentada quando Levy tinha 4 anos de idade. “No fundo, eu sabia o tempo todo o que havia acontecido, mas ela só colocou aquilo em palavras uma única vez, quando eu tinha 18 anos. Depois de dois anos, faleceu. Sempre me vem à cabeça como seria se ela não tivesse me contado.”

Naquele dia de sol do Rio de Janeiro, quando o país vivia a euforia da Copa do Mundo e o Rio de Janeiro se preparava para sediar os Jogos Olímpicos, quando Joana decidiu correr seus habituais 40 minutos antes de uma reunião de trabalho, viveu o inimaginável que Levy fez questão de imaginar no livro que, para ela, foi o mais difícil de ser escrito. No final da obra, há uma nota corajosa: a autora, a pedido de Joana, coloca ali o nome verdadeiro da amiga, para que todo mundo saiba que aquilo aconteceu de verdade – com ela. O mesmo impulso está em Eu tenho um nome (editora Intrínseca, 336 págs.), de Chanel Miller, lançado recentemente, que conta o estupro sofrido por Miller no campus da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Em Vista Chinesa, esta obra imperdível de Levy, nas palavras da personagem Júlia, lembramos: “há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo. Elas não te deixam esquecer porque se repetem todos os dias”.

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