Tulipa Ruiz: “Estamos cheias de hematomas e nem falamos sobre isso”
Cantora lança Habilidades extraordinárias, disco em que aborda a condição feminina, depois de um período de empreendedorismo na pandemia.
Para seu novo álbum, Habilidades extraordinárias, a cantora e compositora paulista Tulipa Ruiz criou pela primeira vez uma música sobre opressões e abusos causados por homens em mulheres. “Estardalhaço” diz o seguinte: “Pareceu caída/ Pareceu, mas não caiu/ Quem te viu foi quem mentiu/ (…) Mais um caso de descaso aconteceu aqui/ Um vacilo, pode crer, faz um estardalhaço”.
A exposição maior e mais acurada da condição feminina é o traço dominante do novo disco e corresponde a toda uma nova série de tomadas de posição e de consciência. Uma foto de peito nu ilustra a arte de capa, depois de quatro álbuns anteriores em que desenhos da própria Tulipa substituíam ou despistavam nas capas a imagem da artista.
A faixa-título fala das habilidades extraordinárias que é preciso ter para seguir sobrevivendo, em especial na sobreposição de identidades que constituem Tulipa, entre as quais ela enumera as de mulher, compositora, preta, indígena, brasileira. É preciso ser hábil, segundo a letra, “para sair de casa com ou sem batom” e “para poder chegar em casa só”. As habilidades de Tulipa são plurais e se multiplicaram no período de pandemia, levando-a a se desdobrar em iniciativas para além da música e do desenho, como criação de moda (participa desde 2021 da Casa de Criadores), impressão de cadernos personalizados, até mesmo fabricação e comercialização de café. As várias frentes se unificam na marca Brocal, que funciona em casa como estúdio de gravação, produtora, confecção e loja de roupas, entre outras atividades somadas para garantir sobrevivência.
TULIPA RUIZ – HABILIDADES EXTRAORDINÁRIAS (Visualizer/Lyric)
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Hoje com 43 anos, Tulipa tem criado música, desde a estreia com Efêmera (2010), ao lado do irmão Gustavo Ruiz, de 42 anos, produtor, guitarrista e coautor da maioria das canções. O pai, Luiz Chagas (parceiro de ambos no cortante punk rock “Vou te botar no pau”), além de jornalista e crítico musical, é guitarrista da banda Isca de Polícia, que notabilizou a chamada vanguarda paulista do início dos anos 1980 sob a liderança de Itamar Assumpção.
Tulipa cresceu no sul de Minas Gerais, onde começou a construir uma identidade musical que explode mais forte que nunca no novo álbum, entre a vanguarda paulista de Itamar e o Clube da Esquina liderado por Milton Nascimento. Na entrevista abaixo, a multiartista e empreendedora de si mesma fala sobre tudo isso e mais um pouco.
Que relação existe entre o álbum Habilidades extraordinárias e a pandemia?
Já era para a gente ter gravado desde 2019, mas veio a pandemia e paramos todos os processos. Agora, os shows voltaram a milhão. Está tudo sucateado, mas está uma loucura a agenda de shows. A cadeia toda da música voltou a trabalhar a mil, e esse disco foi feito no meio disso. Conseguimos parar em junho para nos encontrar e gravar em situação presencial, a gente estava com muita saudade. Gosto de gravar um disco, tocar, tocar, tocar, e o próximo disco acontece depois, no cronograma que bloqueei para ele. Faço muitas coisas, então preciso de cronograma. Não tenho músicas guardadas na gaveta. Posso não fazer música em três anos e fazer cinco em um dia, quando me proponho a fazer.
Você então não fica compondo o tempo todo?
Estou criando o tempo todo, mas não necessariamente música. Pode ser um desenho, um tricô, coisas que se desdobram em música e têm sua musicalidade também. Não sou uma compositora com repertório, que fica o tempo todo no exercício da composição. Mas gosto muito desse momento em que vou gravar disco e preciso de músicas. Cada planeta vai nascendo individualmente. Na hora de compor, fico canetando as letras e Gustavo vai fazendo a harmonia, mas é muito interessante quando a gente inverte esses papéis.
“Posso não fazer música em três anos e fazer cinco em um dia, quando me proponho a fazer.”
A faixa“Vou te botar no pau” tem a ver com aquele momento em que a pandemia parou tudo e os contratadores não pagaram mais cachê?
Não tive como fugir. O tempo todo isso era pauta. “Vou te botar no pau” é supercoletiva – eu, meu pai, Gustavo e minha prima Layla Ruiz, que é atriz, mãe e palhaça. Imagina o ofício da palhaçaria no meio da pandemia. Não queria que fosse uma coisa escancarada, é para ser verbalizada, cantada, berrada para um cara, mas também para uma pessoa opressora ou para uma pessoa jurídica, uma empresa. Ficamos dias falando sobre quem a gente processaria, sobre o que merece processo. É um apanhado de indignações de muita gente, totalmente atravessado pelo atual governo e pela pandemia. Tenho a sorte de ter meu irmão como parceiro, a gente tem um estúdio, que viabilizou fazer lives. A Brocal é um estúdio, uma marca e um e-commerce. Aqui fica um showroom, que não é aberto, é minha casa, produtora, loja, estoque, o estúdio está mudando para cá. Fiquei trabalhando muito no meu merchan, e isso segurou bastante minha onda com a falta dos shows. Tenho a sorte de ser compositora, essa parte não parou, mas a gente podia ter dançado. A gente só vai ver as feridas e os hematomas daqui muitos e muitos anos, 2020 e 2021 são uma maçaroca.
Você virou empreendedora?
Gente, virei isso. São as habilidades, não teve como, não tive saída. Tenho a música “Dois cafés” e agora lancei o café Dois Cafés. Se eu fosse uma super empreendedora, não seria exatamente um café que eu venderia, mas fui pensando na música, num blend de dois grãos, o pacotinho tem um QR code que direciona para a música. Faço uns cadernos com uma gráfica superparceira de Minas Gerais, Impressão de Minas. Fiz um caderno em papel pólen, que é o nome de uma música (“Pólen”). Gosto de ficar pensando nesses produtos, é um lugar de criação.
Como você fabrica café?
Vendo no restaurante Las Chicas (São Paulo), você consegue comprar no meu site e nos shows também. Estamos começando a distribuir em alguns lugares. Cresci em São Lourenço, no sul de Minas, uma cidade de produtores de café, e como é de altitude, eles são especiais. Tenho uma amiga da escola que é produtora de café. Então, faço com ela. Escolhi o grão, fui na torra, é muito sensorial.
Fazer café é arte, ou você se desdobra entre atividades artísticas e não-artísticas?
Tenho dificuldade na realização. Se eu pudesse viver só das eurecas, seria muito maravilhoso, mas não é simples. A operação é onde eu sofro, a parte administrativa. Sou uma artista que fica tentando, empreendo e as coisas vão funcionando. Comecei a fazer roupas, a marca Brocal está há um ano na Casa de Criadores, mas acho complicado ficar pensando em duas coleções por ano, tanto pela sustentabilidade quanto pelo momento em que o mundo está, que não é “consuma”, é “reutilize”. Faço moda sob demanda, tenho pouquíssima coisa em estoque. Faço bastante coisa em crochê também, numa área de reaproveitamento da indústria. É demorado, porque sou eu que teço, são peças superexclusivas. Vou aos poucos, são habilidades extraordinárias, é muito trabalho.
Tanto empreendedorismo deixa você rica?
Não, nem um pouquinho, está cada vez mais difícil. O mundo virtual é cruel, porque o apagamento dos perfis todos nas redes sociais é gigante. Se a gente não faz impulsionamento, que é o jabá de antigamente, aparecem muito pouco. Se você não me acompanha e não sabe do meu café, o algoritmo não vai te mostrar. Está muito difícil para os micro-empreendedores e artistas divulgarem seus trabalhos. O ciberespaço virou um lugar que precisa de uma reforma agrária (risos). É superdifícil, mas foi o que segurou a ausência dos shows. Consegui pagar minhas contas na pandemia, não consegui comprar minha gleba. Enquanto muita gente diz “saí de São Paulo, comprei uma terrinha em Piracaia”, eu não consegui, preciso trabalhar mais. Não juntei dinheiro, sobrevivi.
O que são afinal as habilidades extraordinárias?
Em 2019, íamos tocar no Lincoln Center, em Nova York, e precisávamos de visto de trabalho. Eu e Gustavo estávamos no questionário protocolar (no consulado estadunidense) e o cara da imigração perguntou se a gente tinha alguma habilidade extraordinária. Fui completamente surpreendida. “Como assim?” Na hora falei que não, “não faço nada fantástico, sobrenatural”. E Gustavo, muito rápido, falou: “Eu tenho um Grammy”. O tratamento mudou na hora, ele carimbou nossos vistos automaticamente, quis saber mais sobre nosso trabalho. Saindo de lá, fui entender que existe um tipo de visto facilitado quando você comprova uma proficiência no seu ofício. É um visto específico, para artistas, acadêmicos e esportistas. Desde Efêmera, lá em 2010, a gente viajou muito para fora do país, e ficamos num lugar de embaixadores da nossa cultura. Nas entrevistas, minha música e meu disco são a quinta pergunta, primeiro preciso explicar o contexto político e a cultura do Brasil. Que responsa, hein? E que falta de cuidado. São os artistas e os atletas que saíram do Brasil, e a gente conta muita coisa que acontece aqui. Decupar o Brasil fora do país, realmente, é uma habilidade extraordinária. Vai ficando cada vez mais distópico. Mas habilidade extraordinária é sair e voltar para casa com segurança.
TULIPA RUIZ – VOU TE BOTAR NO PAU (Visualizer/Lyric)
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Você gosta de explicar o Brasil lá fora?
Fomos tocar num festival em Portugal quando Bolsonaro ainda não tinha sido eleito, e na entrevista coletiva as pessoas só queriam saber de Bolsonaro. Eu falava: “Gente, imagina, é impossível”. Não passava pela minha cabeça, e o mundo já sabia que era uma grande ameaça. A gente achava que era só uma brincadeira.
Sua condição feminina está mais presente que nunca no novo álbum, não?
Está. No começo da minha carreira, eu achava muito legal estar em festival onde só tinha banda de homem e ser a única mulher. Me sentia mais rock’n’roll com isso. Demorou para eu me perguntar por que sou a única mulher desse festival, a única na participação de um show de um cara. Demorou para isso ser um escândalo para mim. É agora que a gente tem enxergado as coisas como são, e elas doem demais. A gente está com raiva, acostumada a viver com dor. Nos outros discos, não estávamos tão machucadas ou com tanta consciência do nosso estado.
“Estardalhaço” é uma canção sobre violência contra a mulher, escrita por uma mulher. Como aconteceu?
É uma letra muito séria, muito pesada. Fala de abusos ancestrais, dores muito fortes, que são minhas e das minhas, resultado de opressões causadas por homens mesmo, em mulheres, cis ou trans. Ainda estou entendendo essa música. É uma abordagem nova, de dores que ainda estão sendo decupadas, mas que existem muito fortes. Eu nunca tinha feito uma música com temática pesada, baixo astral. É uma dor que eu nem sabia que existia, que não matou, mas um hematoma apareceu aqui. Caramba, estamos aqui, todo mundo, cheios de hematomas, e nem estamos falando disso. Que bom que uma mulher falou sobre isso.
O som de Habilidades Extraordinárias é black power?
Aconteceu assim. Estou me entendendo assim, como uma mulher preta, indígena também. “Samaúma” é uma música bastante indígena. Sou eu me entendendo como uma mulher compositora preta, indígena, brasileira, com minhas raízes gigantescas. Vejo isso também na minha imagem, na foto de capa. Bicho, eu pareço a Diana Ross! (risos). Além de verbalizar que sou uma mulher preta, me vi assim e gostei. É a primeira vez que a capa do disco é minha cara, sou eu, minha presença escancarada.
Tem alguma intenção sensual?
Isso também aconteceu. Eu estava com um sutiã que ficava ruidoso na foto. Tirei o sutiã, e a foto rolou daquele jeito. A única coisa que eu sabia que queria para essa sessão de fotos era o cajado. Depois de tanta coisa, eu mereço um cajado nessa travessia (risos). Sou de uma família de mulheres, de muitas bruxas, tenho uma tia que mora no sul de Minas, pedi para ela me trazer. Não falei mais nada, ela foi para a mata, pegou os cajados que intuiu, botou um quartzo rosa na ponta. Esse cajado é de família (risos).
“Cada vez mais, é importante para mim o lugar de compositora, dar meu nome, minha cara.”
Você faz bruxaria?
Tenho meus rituais, pode-se dizer que sou um pouco, uma fashion wicca (risos).
Por que você está exibindo de um modo sexy na capa? Existe alguma transformação nesse sentido também?
Na verdade, nem estou pelada, tem uma transparência, estou com uma blusa que aparece o peito. Não sei se num outro momento da minha carreira eu ia tirar o sutiã e fazer a foto sem ele. Realmente, faz parte desse momento de entendimento do meu corpo todo, da minha voz, da minha presença. Meu corpo está à mostra na capa porque estou presente, ocupando todos os espaços, inclusive o do meu corpo. Esse cajado tem muito a ver, abram caminhos, estou aqui, viva, este é meu corpo, minha cara, meu peito. Estou de peito aberto.
É como se você estivesse se escondendo e agora não mais?
Na capa de Efêmera está escrito só Tulipa, na ficha técnica não está escrito “voz de Tulipa Ruiz” e fui eu que fiz. Como não escrevi meu próprio nome? Não está escrito Ruiz em lugar nenhum. É só Tulipa, você acha que é uma banda. Já me perguntaram se eu não era daquela banda Tulipa. Eu sou daquela banda (risos). Agora, cada vez mais, é importante para mim o lugar de compositora, dar meu nome, minha cara. Com certeza tem a ver com assinar e estar presente em todos os lugares. Faz todo sentido.
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