Um professor, uma aluna: esta não é uma história de amor

Minha Sombria Vanessa, livro de estreia da norte-americana Kate Elizabeth Russell, lança um olhar sobre situações em que a própria vítima tem dificuldade para reconhecer o abuso a que foi submetida.


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Na contracapa, em letras enormes, o aviso: “Esta não é uma história de amor”. Como se, antes mesmo de começarmos a ler, tivéssemos que ter consciência do que o livro não é, de como não deve ser encarado. Faz sentido optar por algo tão taxativo, numa obra que prioriza a ambiguidade do início ao fim? Obrigar o leitor a seguir por um caminho predeterminado sem nem mesmo ter iniciado as primeiras linhas? Sim, porque esta é mesmo a chave da história de Vanesa Wye, uma garota solitária de 15 anos, que vai cursar o primeiro ano do ensino médio num internato famoso, no estado do Maine, Estados Unidos. No livro de 430 páginas, que você provavelmente levará no máximo três dias para ler, ela tenta se convencer o tempo todo de que o relacionamento que viveu com seu professor de literatura, Jacob Strane, de 42 anos, foi uma história de amor — e não um abuso. É como se o aviso da contracapa alertasse o leitor, já que a própria personagem, muito inteligente, porém vulnerável, não teve condições de perceber isso a tempo.


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Há um exagero — e uma tentativa de simplificar as coisas — por parte de quem anda comparando Minha Sombria Vanessa com Lolita, o clássico de Vladimir Nabokov. No primeiro, Kate Elizabeth Russel traz uma história bem contada, na perspectiva feminina, em ritmo de best-seller, possivelmente pronta para também virar um filme de sucesso. No segundo, temos um autor que inovou — e chocou metade do mundo — ao retratar com maestria linguística e complexidade psicológica a relação abusiva entre Dolores Haze e Humbert Humbert. A autora do romance conta que teve a ideia de escrever a obra justamente depois de ler Lolita (o nome do livro vem de um trecho de outra obra de Nabokov, Fogo Pálido), e que levou 18 anos entre os primeiros esboços e a versão final. Mas entre uma obra e outra, a distância é, digamos, literária: as passagens memoráveis de Nabokov, ainda que hoje o romance seja execrado por quem enxergue nele uma romantização da pedofilia, estão ali para comprovar.

Uma dinâmica inteligente da autora em Minha Sombria Vanessa foi alternar o tempo em que a história é narrada. Os capítulos se passam em 2017, quando Vanessa tem 32 anos, e os primeiros anos da década de 2000, quando ainda era uma adolescente. Com isso, é possível acompanhar a vida da personagem sempre à sombra de Strane. Fica nítido o abismo que é uma relação entre um adulto e uma garota de 15 anos, sem maturidade e repertório suficientes para perceber a manipulação, o desequilíbrio de poder e o abuso a que está sujeita. Strane, como abusador, é perfeito no assédio, primeiro intelectual, depois físico: compara a cor do cabelo vermelho de Vanessa com as folhas de outono, então, empresta a ela livros de poesia e, logo, em seguida dá de presente nada menos do que Lolita, de Nabokov. O próximo passo de Strane, dias depois, é tocar o joelho da menina embaixo da mesa, durante a aula.

Vanessa, em sua solidão adolescente, sem amigos ou namorado, é a presa ideal: sente-se especial com a atenção do professor, já que está descobrindo também seu poder de sedução, uma combinação que faz com que seja quase impossível sair daquela armadilha. A personagem, no decorrer da história, fica confusa ao tentar se lembrar de como aquilo realmente começou, porque em muitas passagens o abusador, como é comum em relatos verídicos e ficcionais, culpa a vítima. “‘Eu nunca faria aquilo se você não quisesse tanto’, dissera ele. Parece uma ilusão. Que menina ia querer o que ele fez comigo? Mas é a verdade, quer alguém acredite, quer não. Atraída por aquilo, por ele, eu era o tipo de menina que não deveria existir: a louca para se jogar na frente de um pedófilo.”

As descrições sexuais de Minha Sombria Vanessa (são muitas no decorrer do livro) podem deixar o leitor chocado. Por serem muito realistas, e ao nos lembrarmos de que é uma menina que está ali, são aterrorizantes. A vontade é tirar a garota dali, salvá-la daquilo que a marcará para sempre.

A dificuldade em denunciar o professor quando outros casos de assédio na mesma escola em que estudou aparecem é um aspecto importante da narrativa. Vanessa, já adulta, é procurada por outra vítima de Strane — e logo mais algumas se juntam ao grupo — para contar sua história. Mas ela sempre cambaleia entre continuar a acreditar que o que viveu foi uma história de amor e a raiva que sente ao perceber que a vida dela foi definida por aquela relação abusiva. Em entrevistas, a autora foi questionada se viveu algo parecido na juventude. As respostas primeiro foram evasivas, depois ela declarou brevemente em seu site que o livro foi inspirado por várias experiências que teve quando era adolescente. O que a autora faz questão de reforçar é que fez uma pesquisa extensa durante a elaboração da obra, lendo mais de 80 teses psicológicas e narrativas ficcionais sobre abuso e pedofilia.

Em janeiro deste ano, logo após saírem as primeiras notícias sobre a publicação de Russell, a californiana descendente de mexicanos Wendy Ortiz, autora de Excavation, de 2014, obra que conta o abuso verídico que sofreu por parte de um professor no ensino médio, acusou Kate Russell nas redes sociais de ter roubado a história dela e de ter mais visibilidade por estar inserida num setor extremamente branco. A polêmica fez Oprah Winfrey retirar Minha Sombria Vanessa de seu Clube do Livro. Por outro, lado, a autora recebeu várias críticas positivas, inclusive de escritores como Gillian Flynn e Stephen King.

Kate Russell declarou em entrevistas que o mais importante ao narrar a história de Vanessa e Strane foi abordar a mudança que viu acontecer nos últimos anos em relação às denúncias de abuso, em como agora os abusadores são de fato denunciados e punidos. Tanto que o livro ganhou o apelido de Lolita da era #MeToo. Ela conta que muitas vezes ia mudando o rumo da escrita ao ler sobre o caso Harvey Weinstein, em 2017, o poderoso produtor de filmes acusado de assediar e estuprar dezenas de atrizes de Hollywood. “O #MeToo permitiu que as pessoas percebessem que não estão sozinhas em suas experiências, o que é importante. Acho que o abuso e a possibilidade de abuso ainda estão aí, mas a conversa está mudando, e há muita arte boa saindo deste momento. Isso tem que ser um começo, certo?”, declarou ao The Guardian. Na dedicatória do livro, a autora reafirma sua posição: “Para as Dolores Hazes e Vanessas Wyes da vida real cujas histórias ainda não foram ouvidas, reconhecidas ou compreendidas”.

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Minha Sombria Vanessa, Intrínseca, 432 págs.

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