Vera Holtz: “Eu gosto de caminhos difíceis”

Atriz encena adaptação do best-seller Sapiens, em que interpreta 20 personagens, e fala à ELLE sobre finitude, etarismo e Instagram.


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Vera Holtz virou bicho. Ovelha, asno, fóssil genérico, até o bom e velho Homo sapiens. E virou planta também – trigo, no caso. A versatilidade da atriz paulista de 70 anos é posta à prova numa peça que adapta o best-seller Sapiens – Uma breve história da humanidade (2011), do historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari.

Ficções, em cartaz no CCBB Rio até 30 de outubro (e com temporada prometida para SP no começo de 2023), toma o ensaio arrasa-quarteirão – já traduzido para mais de 60 idiomas – como base para encenar a capacidade humana de inventar histórias, sonhar e projetar a vida coletiva, um diferencial evolutivo que (ainda?) não se traduziu em felicidade universal. No palco, guiada pelo texto e pela direção de Rodrigo Portella, Vera encarna quase 20 personagens das mais variadas espécies (literalmente) e só tem a companhia do músico Federico Puppi.

Desde a primeira peça, em 1979, um Rasga coração, de Vianinha, a filha de Tatuí (SP) trabalhou com alguns dos faróis do teatro brasileiro, como Antônio Abujamra, Gerald Thomas, Amir Haddad, Bibi Ferreira e Luís Antônio Martinez Corrêa. No meio dos anos 1990, Mauro Rasi a escalou para o papel-título de Pérola, fábula autobiográfica que marcou época, ficou cinco anos em cartaz e deu os principais prêmios das artes cênicas do país à protagonista.

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Na TV, a atriz é muito lembrada por Santana, a professora alcoólica de Mulheres apaixonadas (2003). Mas antes vieram a Fanny de Que rei sou eu (1989), criada discreta de Ravengar, a Simone de De corpo e alma (1992), uma mulher presa num casamento frio que descobria o calor dos amassos com um stripper, e a empoderada Marta de Presença de Anita (2001), uma viúva que “ia à caça”, como descreve a própria Vera.

Mas palcos e telas por pouco não perdem seu vigor, o bom humor e o delicioso sotaque interiorano. A atriz se formou em desenho e artes plásticas e chegou a trabalhar em empresas de engenharia e institutos de tecnologia fazendo mapas geológicos. O “bicho” da atuação a mordeu pra valer só depois dos 20 anos, quando ela se inscreveu no vestibular da Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo. Não chegou a completar a formação antes de se mandar para o Rio, onde também deixaria pela metade a preparação para ser professora de artes cênicas.

“Gosto do acaso. Não acredito que as coisas que não me pertencem vão chegar pra mim”, diz. “A vida pra mim é esse rio que corre para o oceano. Posso parar na beira do rio, posso seguir na correnteza. Nunca consegui definir: ‘Agora eu vou fazer isso’.”

O acaso também fez dela um fenômeno das redes sociais. Suas fotos e vídeos conceituais no Instagram, cuidadosamente planejadas e sempre de apurado senso estético, mobilizam mais de 1,2 milhão de seguidores. Um abraço num peixe graúdo sobre fundo cinza, um enorme coração que arde em fogo, uma costela plantada/enterrada num canteiro… Tudo acompanhado de títulos sucintos e enigmáticos, como “Kathársis” ou “Zeitgeist”. Eis a receita que a faz ser celebrada por anônimos e personalidades. “É um convite: ‘Olhe de outra forma, não fique no lugar comum, saia da catalogação, da etiquetagem, conceitue você mesmo’”, explica ela.

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Sua carreira também se esquiva habilmente de casinhas, categorias, expectativas. Tanto que ela diz não sentir sobre si os olhares enviesados do etarismo, ou seja, o estreitamento do espectro de papéis oferecidos a atores (e sobretudo a atrizes) a partir de uma certa idade. “Talvez tenha a ver também com o fato de eu não me sentir muito atraída por papéis ligados à família”, especula. “Fiz um pacto comigo: ‘No dia em que você sentir que está se repetindo, pare e pegue outro caminho’.”

Na entrevista a seguir, ela fala também sobre o quanto a pandemia a “desacelerou” e, sem citar nomes, defende a necessidade de mudarmos algumas práticas se o objetivo é “uma narrativa mais democrática”. “Não cabe mais o ‘nós contra eles’. Chega disso.”

Como o projeto de adaptação do livro do Harari chegou a você e por que decidiu embarcar nele?
Eu já conhecia o livro quando recebi o convite. Já tinha dado muito de presente para amigos. Também tinha ótimas referências do (dramaturgo e diretor) Rodrigo Portella. Ele disse que queria montar (o espetáculo) com uma mulher, que tinha feito um resumão (o ensaio tem 462 páginas), mas que faltava um recorte. Falei: “Vamos juntos”. Abri as asas e me lancei no abismo sem ter a menor ideia para onde iríamos. O Rodrigo criou alguns personagens e o que seria uma conversa minha com o Harari, como se fôssemos mulher e marido. A obra se completa com o pensamento do público, que vai ligando os pontos, tecendo as relações. São 17 personagens, é híbrido: tem asno, fóssil, ovelhinha, trigo… O Sapiens é um grande livro de histórias.

Você estreou no teatro, em 1979, e se manteve no palco ao longo destes mais de 40 anos, trabalhando com alguns dos maiores diretores brasileiros e encenando grandes autores. O que o teatro tem de especial?
Quando vi pela primeira vez uma peça, Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, do Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), pensei “nosssaaa”. Tinha música, artes visuais, aquela movimentação. Era a minha turma. Eu tinha feito conservatório de música em Tatuí desde criança, mas não enxergava aquilo como um lugar de criação. Era um espaço de formação. A mesma coisa com a pintura, com as artes plásticas. Na plateia do teatro, percebi que era ali (em cena) que eu queria estar, naquela interseção de todas as artes. O teatro é uma exuberância. É trabalhoso, dói, porque você está sempre buscando alguma coisa. É camada em cima de camada. E você tem uma hora e meia, duas horas para contar uma história. Então, ele é compacto, essencial. O meu encantamento diante disso segue intacto, brilhante.

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Em O gosto da Vera, sua autobiografia lançada em 2009, você diz que é preciso deixar certa loucura tomar conta da profissão de atriz, guiar-se mais pelo instinto do que pela razão. Isso ainda vale?
Acho que sim, se você considerar que eu entrei neste trabalho (Sapiens) sem nem saber qual texto iria falar… Eu compreendo um texto primeiro vendo as letrinhas, como se eu estivesse vendo um desenho. Depois, vem a música do texto, e só no fim o significado de tudo aquilo. Fiz uma peça chamada Ópera Joyce (1988), do Alcides Nogueira. Lembro que li o texto e não entendi nada. Era uma obra sobre o (James) Joyce com a mulher. Falei: “Nossa, que bom! Quando eu não entendo nada, eu quero fazer”. Eu gosto de caminhos difíceis. Não gosto muito de atalhos, né?! Eu gosto mais do desafio. Do difícil. Do não compreendido. Pra eu ir decifrando no caminho, durante o processo.

Nos últimos anos, o etarismo da indústria do entretenimento passou a ser abertamente apontado e denunciado, sobretudo por atrizes veteranas. Você está com 70 anos. Sentiu a oferta de papéis se afunilar por causa da idade?
Eu não sinto muito isso, não. Não sei falar sobre ela, não tenho como discutir contigo uma questão que não é minha. Não consigo opinar.

Você acha que o fato de não ter tido filhos de alguma forma contribuiu pra isso? No sentido de não ter te associado a uma imagem maternal, talvez redutora?
Pode ser. Nunca pensei sobre isso. Talvez tenha a ver também com o fato de eu não me sentir muito atraída por papéis ligados à família. Posso até fazer, como a mãe de cinco de Orgulho e paixão (novela de 2018), mas… Acredito que os personagens encontram a gente. É uma relação um pouco mais poética com a vida. Gosto do acaso. Não acredito que as coisas que não me pertencem vão chegar pra mim. Não gosto muito de catalogar, de etiquetar as pessoas. Já saí da escola sabendo disto: “Não quero fazer os mesmos papéis”. E no teatro eu abri também: fiz tragédia, comédia, musicais. Trabalhei com diretores contemporâneos, outros mais tradicionais. Fiz um pacto comigo: “No dia em que você sentir que está se repetindo, pare e pegue outro caminho”.

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A pandemia fez você voltar a pensar nesse pacto?
Ela mudou o meu tempo, meu ritmo, que era acelerado. Ela faz você rever o ponto inicial, a sua casa, o seu apartamento. “Eu moro aqui, esse lugar precisa de mim, de cuidado.” Como você se alimenta, como se relaciona com o outro, com o seu país, com o mundo. Daí passa para um “e agora, como é que que eu quero ir até a ‘pós-produção’?”. Mamãe morreu com 76, papai com 82, minhas tias, com 94 e 96. Eu tenho um tempo. Como é que eu quero passá-lo? Essa reflexão é produtiva, real. Isso não é ficção. Existe uma plenitude a caminho de uma finitude.

E essa reflexão deságua em alguma resolução concreta, do tipo “ainda quero fazer esse personagem”?
Não, não. O acaso, ele realmente continua por perto. Eu estou indo. E estou encontrando. A vida pra mim é esse rio que corre para o oceano. Eu posso parar na beira do rio, posso seguir na correnteza. Na minha vida, nunca consegui definir: “Agora, vou fazer isso”. Gosto de encontrar o meu caminho, com meus parceiros para os próximos momentos, para os próximos dias, meses, o que for… E depois eu encontro outro e encontro outro.

“Fiz um pacto comigo: ‘No dia em que você sentir que está se repetindo, pare e pegue outro caminho’”

Com mais de 1,2 milhão de seguidores no Instagram e outros 560 mil na sua página no Facebook, você é um fenômeno da internet. A que atribui isso? Tem uma equipe por trás pensando e preparando o conteúdo?
Tem um arquiteto, o Renato Santoro, que fotografa. O Evaldo Mocarzel dá os títulos – ficamos horas discutindo isso (risos). É tudo feito num smartphone. A ideia é incentivar reflexões sobre o tempo de hoje, mas por outro caminho, diferente daquele a que as pessoas estão acostumadas. É um convite: “Olhe de outra forma, não fique no lugar comum, saia da catalogação, da etiquetagem”. Cada pessoa tem um olhar, um ponto de vista. Conceitue você mesmo.

Como você atravessou os últimos anos no Brasil, com ataques recorrentes do presidente à cultura e aos artistas? Quais são as perspectivas para 2023?
(Vai ser) Um trabalho longo. De reflexão, de atitude, acima de tudo. De conhecimento… Se a gente quer uma narrativa mais democrática, mais pautada pela maioria, algumas práticas têm que mudar. Não cabe mais o “nós contra eles”. Precisam surgir novas ficções, novos acordos, como diz o Harari em Sapiens. É o nosso caminho a partir de agora… Sem citar nomes, é hora de recriar. Cuidar do nosso habitat, tirar o homem do centro de tudo. Chega disso. Mas olha, eu sou melhor em fazer foto sobre isso do que de falar (risos). É por aí que consigo conceituar, chamar a atenção para determinados assuntos. Não sou tão habilidosa com as palavras.

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