Cláudia Abreu: “A mulher é sempre interrompida”

Atriz, que escreveu, produziu e atua em monólogo sobre Virginia Woolf, em cartaz em São Paulo, fala sobre o desafio de conciliar a maternidade com seus projetos profissionais.


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Na hora marcada para a entrevista por videochamada, um “intruso” ameaça tirar o sossego da Cláudia Abreu. “Tem um ratinho aqui embaixo da mesa”, diz a atriz, sorrindo. “Meu amor, não vou conseguir me concentrar. Por favor, Pepêzinho, dá licença pra mamãe. Pedro, tá atrapalhando.”

A cena doméstica com o caçula de quatro filhos serve de ilustração irônica para uma consideração que Cláudia fará alguns minutos depois, falando sobre a criação da peça Virginia, sobre a escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), que ela escreveu, produziu e protagoniza. “A mulher é sempre interrompida, né?”

A montagem, em cartaz até 07.08 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, costura passagens da vida da autora de Mrs. Dalloway, Orlando e outros monumentos da literatura do século 20 com um sobrevoo de seus principais escritos. A figura que emerge do monólogo, com direção de Amir Haddad, é uma mulher machucada por perdas sucessivas (primeiro, da mãe; depois, do pai e da irmã mais próxima), episódios de violência (abuso sexual por parte de dois irmãos mais velhos), uma autocobrança impiedosa e um alarido de vozes que quase nunca silencia em sua cabeça.

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A atriz de 51 anos, que participou de produções marcantes da TV nas últimas décadas, como Anos rebeldes (1992) e Celebridade (2003), amadurecendo aos olhos do público, já tinha visitado a prosa de Woolf. Foi no fim dos anos 1980, quando dava os primeiros passos profissionais, numa encenação de Orlando por Bia Lessa. “É óbvio que hoje, com a minha vivência, consigo alcançar mais camadas de profundidade no meu entendimento da obra dela. Tenho mais bagagem não só para entender, mas para me conectar com ela, com a sua sensibilidade fina”, avalia Cláudia, nove novelas, sete séries, 13 filmes, oito peças e 33 anos depois.

Com Virginia em cartaz, ela atualmente escreve um roteiro “sobre o mundo queer” com Ismael Caneppele (de Os famosos e os duendes da morte), que interpretou seu marido na série Desalma (Globoplay). Tem vontade de dirigir (“Gosto do contato com os atores, sei o clima que eu gostaria de criar, o conceito que embalaria um possível filme”), mas acha que teria dificuldades (ou se aborreceria) com questões técnicas.

Na entrevista a seguir, Cláudia fala sobre a criação do texto, a base de improvisos e “áudios para mim mesma”, diz que os retrocessos recentes no entendimento do direito ao aborto no Brasil e no exterior reforçam a atualidade da voz feminista de Woolf e compara o ofício de atriz com o trabalho da maternidade.

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No início da sua carreira, nos anos 1980, você atuou em uma montagem inspirada no romance Orlando, de Virginia Woolf. Agora, reencontra a escritora numa peça sua que mistura passagens da vida e da obra dela. O que mudou na sua relação com a autora nesses mais de 30 anos?
O primeiro contato já tinha sido muito impactante. Mas, apesar de aquela peça ter sido bastante importante pra mim e de eu já compreender naquela época a importância e o ineditismo da saga do homem que um dia acorda mulher, é óbvio que hoje, com a minha vivência, eu consigo alcançar mais camadas de profundidade no meu entendimento da obra dela. Tenho mais bagagem não só para entender, mas para me conectar com ela, com a sua sensibilidade fina.
Não me identifico com personagens específicos, com a Mrs. Dalloway (do livro homônimo) ou a Mrs. Ramsay (de Ao Farol). O que mais gosto na Virginia são os detalhes, as frases que vêm como um punhal. Às vezes, são observações triviais que me batem com muita contundência, conseguem traduzir coisas que eu sinto e que me pareciam intraduzíveis. Ela traduz grandes sensações sem reduzi-las. Por isso, eu fui atrás da pessoa, da biografia. Aí deu no que deu.
Eu tinha vontade de escrever sobre fluxo de consciência, já estava escrevendo Valentins (série exibida no Gloob, canal infantil da Rede Globo) e projetos que eu gostaria de produzir, para atuar ou não. Estava até pensando em eventualmente escrever um livro de contos. Acabei me encantando pela vida dela, vendo que era cheia de acontecimentos dramáticos que ela conseguiu transpor para criar. Era uma vida, uma personagem fascinante. E uma atriz está sempre querendo uma grande personagem. Tudo acabou confluindo.

Você escreveu essa peça no meio da pandemia, isolada como a Virginia muitas vezes se sentiu ao longo da vida, mas, ao mesmo tempo, rodeada de marido e filhos, alguns ainda na infância. Como transcorreu esse processo?
A mulher é sempre interrompida, né? Isso é da condição da mulher. Com todos dentro de casa, é óbvio que é mais difícil você ter um “momento todo seu”. Mas, de alguma maneira, pelo fato de ter tido quatro filhos e estar casada há um bom tempo (com o diretor José Henrique Fonseca), criei dinâmicas para cavar um espaço pra mim. A prioridade é ser uma mãe presente para os meus filhos. Por ter essa dedicação, acumulo um crédito também. “Poxa, agora eu preciso ficar aqui um pouquinho.” Daí eu marco: “A gente vai maratonar Stranger Things daqui a uma hora”. (risos) Negocio um tempinho pra mim.
Durante a pandemia, inventei de fazer uma pós-graduação online em artes cênicas. Vim de uma escola da prática (o Teatro Tablado, no Rio), não tinha estudado a teoria. Quando fui fazer vestibular e faculdade (de filosofia), já tinha 30 anos. Como passei o miolo da pandemia em Portugal (a filha mais velha da atriz, Maria Maud, foi aprovada em um curso de música no país e a família a acompanhou na viagem), e lá eram algumas horas a mais, a minha aula começava às 22h. Era o momento em que a casa já estava mais calma.
Eu não sou do fatalismo, do “ai, não tenho tempo pra mim”. Acho que quem quer fazer faz. Quem tá a fim de fazer cava um espaço e faz. Uma hora que você passaria no Instagram vendo bobagem e perdendo tempo você poderia fazer outra coisa, muito mais legal. Não que eu não passe algum tempo olhando… Mas chega uma hora em que você faz escolhas.
(Durante a escrita da peça) Eu gravava minhas improvisações, mandava áudios pra mim mesma, e que depois transcrevia. Como atriz, crio na oralidade. Preciso fazer a cena, ver a ação. Quando só escrevia, ficava muito formal, respeitosa. Quando improvisava, era como se filtrasse aquilo que realmente importava. Depois reescrevia o que tinha dito, de um jeito um pouco mais elaborado, pensando em estrutura.


Desalma 2ª Temporada | Série | Original Globoplay

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A peça mostra o quanto Virginia Woolf era acossada pela autocobrança, pela “síndrome de impostora”. Como você lidou ao longo da sua carreira com a possibilidade do fracasso?
O lugar de descontrole a que a Virginia ia (por causa da autocobrança) era desproporcional. Entrava em jogo ali o desequilíbrio psíquico que ela tinha. O que ela passava, o terror da dúvida sobre o reconhecimento do seu esforço, tinha também a ver com a época, com o fato de ela pertencer a um grupo de pessoas muito intelectualizadas (o Grupo de Bloomsbury, que reunia escritores, economistas e críticos, entre outros). Mas a pressão que ela se impunha era acima da média.
Por mais que eu tenha as minhas próprias expectativas em relação ao meu trabalho – nunca tinha imaginado fazer uma peça sozinha e lancei o texto em livro, no dia da estreia, pela mesma editora que publica a Virginia no Brasil –, não é nada no mesmo nível que as dela. Até porque, ao longo da minha vida, já me deixei ficar muito ansiosa pelo que o outro pensa. Comecei muito garota, com 16 anos. As coisas aconteceram muito cedo. Sempre me exigi muito, quase como se eu só pudesse ter prazer se os projetos dessem certo. Com o passar do tempo, vi que isso estava errado, que precisava ter prazer durante. A avaliação do outro é subjetiva. Numa plateia, tem gente que vai gostar e gente que não vai. Não posso me deixar afetar por algo que não controlo. Percebi que não podia ficar vulnerável às opiniões de todo mundo.

O texto do espetáculo ilustra o quanto Virginia Woolf questionou o papel desenhado para a mulher no começo do século 20. Você já disse se sentir muito confortável na função de mãe, sem que isso tenha sido prejudicial à sua carreira. Como foi operar nesses dois fronts?
Quis ser mãe com 30 anos porque tinha vontade de viajar bastante, trabalhar bastante antes (da maternidade) e não ter essa culpa nem com o meu filho, nem com a minha profissão, nem comigo mesma. Tive uma menina, que foi filha única durante seis anos, e depois tive outros três (os filhos da atriz têm 21, 15, 12 e 10 anos). Pude viver a maternidade da filha única e, depois, da galera. Posso dizer que foi a maior alegria da minha vida, mesmo que não tenha sido planejado. Nada mais interessante do que ver seres humanos se desenvolvendo e perceber as diferenças entre eles. Um precisa de uma mãe mais firme, que dê mais limites; o outro, não, requer rédea mais solta. É muito bonito. Não é muito diferente do que eu sempre fiz como atriz: você entender a alma humana é um pouco a minha profissão. Entrar na alma do outro, sem julgamentos. Estou o tempo inteiro interessada no ser humano.
Na década e meia em que tive os três menores, busquei trabalhos que pudessem incluí-los na minha rotina. Escrevi Valentins, uma história sobre uma família com quatro filhos, com o meu marido dirigindo. Fiz o (clássico da literatura infantil brasileira) Pluft, o Fantasminha duas vezes no Tablado. Era uma homenagem, para que eles curtissem a minha profissão, se fascinassem por esse universo.

“Percebi que não podia ficar vulnerável às opiniões de todo mundo.”

Ainda sobre a questão do papel social da mulher, como você vê os retrocessos recentes no entendimento do direito ao aborto, no Brasil e nos EUA? Isso torna ainda mais urgente voltar a autoras como a Virginia?
A voz dela como feminista é muito importante. Na peça, falo de questões que seguem atuais, como o direito da mulher à educação (Virginia foi educada em casa com os materiais de um irmão). Pense na (ativista paquistanesa vencedora do Nobel da Paz) Malala (Yousafzai)… Na verdade, não precisa nem ir pro Paquistão. Olhe para o interior do Brasil, para essas meninas que cuidam dos irmãos mais novos, que se casam muito cedo, que muitas vezes são estupradas. Ou para o número de feminicídios. As mulheres são mortas por causa de ciúmes dos companheiros ou simplesmente porque elas querem pôr fim à relação. Só a necessidade de existir uma Lei Maria da Penha já dá a dimensão do quanto as mulheres são maltratadas e violentadas.

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