Design nacional revela o Brasil de todos os santos
Em um país formado por uma mistura rica de culturas, o sagrado percorre caminhos envoltos em memórias e afetos e inspira artistas e designers a criar obras que revelam a sua fé e contam nossa história de miscigenação e espiritualidade.
Graças a Deus, somos o lugar onde as crenças se cruzam: não é incomum ver católicos, judeus, protestantes, budistas ou muçulmanos em terreiros de umbanda e candomblé para pedir a bênção dos orixás, em templos de meditação em busca de equilíbrio ou em centros espíritas para limpar a aura, assim como há adeptos das religiões de origem afro que, em algum momento, se voltam também para outras expressões de fé. Sim, aqui é tudo junto e misturado, resultado da cultura dos povos originários, da religiosidade vinda da África com os povos escravizados e daquela trazida pelos colonizadores europeus. Esse é o borogodó brasileiro.
Entre santos de predileção e divindades relacionadas à natureza, é fato que cultuamos e reverberamos o que nos toca a alma. E não é diferente no campo do design nacional. Com referências à sua fé particular e às diversas religiosidades e fusões brasileiras, a artista visual Aline Bispo explora em suas ilustrações símbolos e divindades de suas conexões afetivas. “Entre os ícones que mais utilizo estão a espada-de-são-jorge, ou espada de Ogum, as ervas utilizadas em ritos medicinais e de benzimento, como a arruda, e os alimentos e objetos ligados ao ajeum, o momento sagrado do candomblé em que pessoas se juntam para alimentar o corpo e o espírito”, explica.
Cosme e Damião, por Aline Bispo. Divulgação
É o caso da coleção Fartura, feita em parceria com a estilista Naya Violeta para a SPFW, em que espigas de milho, quiabos e canecas de ágata se fizeram presentes nas estampas. E da capa do premiado livro Torto Arado, do escritor baiano Itamar Vieira Junior, na qual as protagonistas empunham plantas protetoras em suas mãos.
Ilustração de Aline Bispo para a capa do livro Torto arado, de Itamar Vieira Junior. Divulgação
“Também gosto de explorar as imagens de santos, muitas conectadas à cultura popular e às minhas memórias. E é aí que entram figuras como são Jorge, Nossa Senhora Aparecida, Cosme e Damião”, conta a artista, que costuma ilustrar as divindades infantis como Ibejis, ou orixás crianças, pois naturalmente possui um interesse maior pelas práticas tradicionais de matrizes africanas e de povos originários, como pajelanças e ritos de cura. “Sou umbandista, filha de uma casa de Nação Angola, um terreiro tradicional onde cultuamos as sete linhas de umbanda e os orixás. Então, antes de tudo, a minha conexão com esses signos, símbolos e saberes e com a fé está intensamente ligada às minhas próprias vivências”, aponta Aline.
De família baiana, a artista paulistana Calu Fontes construiu a sua espiritualidade a partir de suas raízes e lembranças de infância. “Digo que sou soteropaulistana. Fui batizada na Igreja do Bonfim, em Salvador, e cresci passando as férias na cidade, onde me encantava todo dia 2 de fevereiro com os presentes e flores oferendados a Iemanjá”, conta Calu, que incluiu a rainha dos mares em muitas de suas peças.
Painel de azulejos de Calu Fontes. Foto: Divulgação
A divindade, com seus cabelos longos e vestido branco, surge em cerâmicas lindamente adornadas por flores e corais ou em painéis de azulejos repletos de cores, grafismos e elementos como conchas e peixes, de todos os formatos e tamanhos, nadando nas mais diversas direções. Não à toa, a orixá da fertilidade, Yèyé Omo Ejá, no idioma iorubá, é a “mãe cujos filhos são como peixes”. Além dela, Oxum, o orixá das águas doces, a rainha de rios e cachoeiras, associada à beleza e ao amor, surge no trabalho da artista em formato de sereia, figurativa ou estilizada. “As duas estão bastante presentes em minhas produções. Mas também já fiz representações de são Jorge, Nossa Senhora de Guadalupe e santo Antônio”, conta Calu, que transfere para suas criações todo o universo de significados impressos em seu ateliê.
Ela conta que tem altares com imagens de orixás e santos católicos e cantinhos com budas e deuses hindus, como Ganesha, Vishnu e Lakshmi, deusa da prosperidade, comumente em destaque nos pratos de cerâmica. “Todos eles aparecem tanto de forma figurativa quanto em simbolismos no meu trabalho. Posso dizer que, na maioria das peças, de forma onírica e cheia de simbologia, os peixes nadam entre imagens e sonhos”, acredita.
O sincretismo religioso no design nacional
Não é diferente com o designer Marcos Bazzo. Muito conectado com suas memórias, ele cria obras têxteis impactantes, utilizando cordas, linhas e adornos, e muitas delas em alusão a santos e divindades. Há representações de Oxóssi, o guerreiro das matas, Oxalá, o orixá associado à criação do mundo e da espécie humana, e de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. “As obras remetem às lembranças de imagens relacionadas à fé, que de certa forma me fascinaram em algum momento da vida. Como uma espada-de-são-jorge encapsulada e iluminada, que ficava acima da porta da casa de minha tia, o som do tambor do terreiro da minha rua, as festas de Cosme e Damião ou uma viagem que fiz para a Bahia. São recordações que se fundem e se conectam com as memórias de todos nós, brasileiros”, explica Marcos.
Obra de Marcos Bazzo inspirada em Iemanjá. Foto: Divulgação
Até o formato de suas peças está ligado à recordação de um dia marcante: a primeira vez que o designer visitou um museu. “Foi em minha cidade natal, Tupã, no interior paulista. Me lembro, como se fosse hoje, de meu encanto com a galeria, repleta de imensos cocares”, conta. O adereço, que para muitas etnias indígenas está associado a rituais sagrados, tem seu uso como escudo de proteção contra maus espíritos ou reservado aos curandeiros das tribos. “Acho que a brasilidade é a minha inspiração. Sou um cara de fé, de todas as fés”, resume.
Já o colorido contagiante, que parece sempre estar em movimento nas ilustrações da designer gráfica pernambucana Joana Lira, se estende para os desenhos que representam sua ligação com a espiritualidade, como as representações de Nossa Senhora Aparecida e Iemanjá. “Tenho muita admiração e curiosidade pelo mundo espiritual, em especial as manifestações de matrizes africanas e indígenas”, revela. “Seus simbolismos, cantos, danças e imagens me encantam.” E ser parte do repertório artístico dela é uma consequência natural. A artista, que tem seu trabalho pautado por uma forte identidade cultural e não se dedica a uma religião específica, sinaliza que pratica sua fé de maneira particular. “Tenho meus rituais e crenças de proteção, agradecimento e escuta. Sempre gostei de ter um altar com elementos espirituais de naturezas diversas em casa”, conta.
Obra de Joana Lira. Divulgação
O sincretismo também é uma característica forte da ceramista paulistana Flavia del Pra. “Eu nasci no Dia de Santo Antônio e tenho como meus orixás Oxalá e Oxum”, diz. “E quis traduzir esse universo múltiplo por meio de símbolos que nos conectam e falam de amor. O amor por uma terra, uma cultura e uma memória”, reflete Flavia.
Coleção Patuá, de Flavia del Pra. Foto: Divulgação
Inspirada na azulejaria colonial portuguesa, em que desenhos azuis reinam sobre o fundo branco, a sua coleção Patuá, criada para a loja Amoreira, traz referência ao significado de amuleto, como o próprio nome sugere. “São peças para trazer boas energias, força e fé”, explica. A linha, que reúne bandejas, pratos, fruteiras e travessas pintados à mão, mistura elementos tropicais, como frutas, conchas, sóis e coqueiros, a símbolos e frases que remetem à proteção e à boa sorte. Portanto, não faltam Iemanjás, com caudas de sereia, a cantar no mar, corações sagrados da tradição cristã e ícones mitológicos, como o olho, em alusão ao tradicional amuleto grego contra a inveja. “Acho muito bonita essa mistura de culturas e suas diversas formas de devoção.” Prova de que o sincretismo religioso deu bons frutos também no campo criativo!
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