Em entrevista, Kengo Kuma reflete sobre o papel da arquitetura na crise climática

“Os arquitetos precisam mostrar para as pessoas que o mundo está mudando da grande arquitetura para a pequena arquitetura. Construir edifícios altíssimos não é solução para nada", disse Kengo Kuma.


Kengo Kuma reflete sobre o papel da arquitetura. Na foto, sauna Sazae, no glamping Sana Mane, em Kagawa
Projeto de Kengo Kuma: na foto, uma das estruturas da sauna Sazae, no glamping Sana Mane, em Kagawa. Foto: Keishin Horikoshi / SS



É a fragilidade que interessa a Kengo Kuma. Não a permanência do concreto ou a dureza do ferro, mas a graça do bambu, a suavidade da madeira, a leveza do papel. O arquiteto japonês defende uma arquitetura feita para desaparecer, e não para durar. Ele é contra a arquitetura autocentrada, da estética pela estética, que ignora a importância do entorno.

“Quero criar edifícios fracos. As pessoas esperam que os prédios protejam os corpos frágeis dos seres humanos. Mas será que edifícios robustos realmente nos protegem?”, escreveu em um de seus muitos ensaios.

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O terremoto que assolou o Japão em 1995 e o tsunami de 2011 provaram a ele que não. E mudaram a forma como os japoneses (e também o arquiteto) compreendem o morar. “As pessoas entenderam que era melhor compartilhar espaços e bens, em vez de possuí-los”, conclui.

Projeto de Kengo Kuma Green Terrace, em Tóquio.

Green Terrace, em Tóquio, montado com pequenos pedaços de ciprestes encaixados. Foto: Masaki Hamada / Kkpo

Esse é um dos aspectos que o levam a escolher com sabedoria e delicadeza os materiais que utiliza, sempre tendo em conta a conexão com o ambiente, ouvindo artesãos e trabalhadores do local onde o projeto vai ser assentado e tomando a sustentabilidade como balizadora. “O uso da madeira contribui para proteger as florestas e evitar que as cidades sejam inundadas por chuvas extremas. Isso é sustentabilidade”, diz em entrevista exclusiva à ELLE Decoration Brasil.

“É preciso construir menor, erguer estruturas na escala humana e administrar o uso da madeira. Temos que dar tempo para as florestas se restabelecerem de forma saudável”, defendeu também em seu livro Minha Vida como Arquiteto em Tóquio.

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Nascido em agosto de 1954 em Okurayama, uma cidade entre os limites de Tóquio e Yokohama, Kuma se define como uma pessoa de fronteira (ou border person, explica, citando o filósofo Max Weber), alguém que sempre olhou para a capital como um outsider. Talvez venha daí o fato de se interessar mais por cidades do que por países, já que sempre trafegou no caldo cultural formado entre os vilarejos do entorno da metrópole. “Quando desenho um prédio, em qualquer cidade, acredito que o mundo é uma coleção de vilas, em vez de um grupo de nações”, reflete. “E gosto de cidades com muitos ruídos e com muitos vazios. São eles que nos dão o sentimento de liberdade e inspiração”, frisa.

No Japão, construir se relaciona profundamente com o conceito de Ma – uma ideia de vazio que pode significar um intervalo entre espaço e tempo ou mesmo a distância entre duas partes estruturais. “Ma existe em todos os lugares de Tóquio. É uma cidade cheia de pequenos espaços e passagens que fazem as pessoas se sentirem livres. É um elemento essencial no meu design”, comenta.

Projeto de Kengo Kuma: estrutura da Grande Muralha de Bambu, na China.

Estrutura da Grande Muralha de Bambu, na China. Foto: Satoshi Asakawa

Com o passar dos anos, no entanto, o ritmo intenso de Tóquio o desanimou. Recentemente, trocou toda a agitação da capital e transferiu seus escritórios para Hokkaido e Okinawa para ficar imerso na natureza. Apesar de simples e acessível, Kuma é uma sumidade. Faz parte de um rol de arquitetos admirados e premiadíssimos.

Este ano, ele recebe o cobiçado Prêmio Imperial, que está em sua 80ªedição, e o Prêmio da Academia de Arte do Japão, como reconhecimento pela coleção de obras magníficas que espalhou pelo mundo. São muitas e todas atraem os olhares por suas formas inusitadas, o uso criativo dos materiais naturais e a luz, que sempre se destaca.

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Só para citar algumas, são dele o estádio das Olimpíadas do Japão de 2021, o complexo público The Exchange, em Sydney, Austrália, o recente Ummahat 9-3, um complexo hoteleiro sobre as águas, na Árabia Saudita, o prédio de escritórios da Associação Ambiental de Aroma do Japão, o Green Terrace, de 2023, em Tóquio, e a sauna orgânica de Sana Mane, em Kagawa, com módulos que mais parecem suspiros de madeira. Mas o que toca o coração dele é o hotel batizado de Grande Muralha de Bambu, em referência à Muralha da China, erguido perto dela, nos arredores de Pequim, em 2002.

A construção tem uma casa de chá flutuante no centro e é toda envolvida por venezianas de bambu. “A qualidade da construção na China naquela época não era tão boa quanto hoje e o bambu que nos foi apresentado era bem diferente do que eu conhecia, mas isso me deu uma oportunidade maravilhosa de troca com os construtores locais, o que resultou em um edifício único, que teve um grande impacto na minha carreira”, lembra.

Projeto de Kengo Kuma: teto da sauna Sazae, no glamping Sana Mane.

Teto da sauna Sazae, no glamping Sana Mane. Foto: Keishin Horikoshi

No Brasil, ele fez sua estreia com uma obra que ilustra bem a estreita ligação de São Paulo com a cultura japonesa: a fachada da Japan House, que possui apenas outras duas sedes, uma em Londres e outra em Los Angeles. Inaugurada em 2017, ela teve toda sua parte frontal trabalhada em hinoki, um pinheiro típico do Japão, sagrado segundo a religião xintoísta, e seguindo a técnica de encaixes, sem pregos, o sukiya, criado há mais de 300 anos.

O uso de métodos tradicionais de construção, aliás, faz parte do DNA de Kengo Kuma. Além do trabalho com a madeira e com o bambu, o papel washi também é muito presente em seus projetos, assim como tecidos leves, que ganham geometrias e dobraduras lembrando origamis e plissados que parecem ter saído de um look de Issey Miyake para filtrar a luz. E fazem todo o sentido com o respeito que ele cultiva pela natureza. “A arquitetura tradicional japonesa foi construída sobre ideias e técnicas ecológicas”, explica. “Por isso, gostamos de pesquisar e aplicar métodos antigos que podem ser relevantes hoje, quando os combinamos com tecnologias modernas”, explica.

A conexão entre Kuma e o Brasil cresceu aos poucos e se tornou um caso de amor que já dura mais de quatro décadas. A primeira vez que ele pisou no país foi em 1980, quando esteve em Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro a passeio. Depois disso, voltou muitas outras vezes. A mais recente foi em abril, quando fez uma passagem relâmpago por São Paulo. Veio para checar pessoalmente o restauro do hinoki da Japan House e acertar detalhes de seu segundo retrofit para uma rede de eletrônicos (a primeira foi de uma das lojas de São Paulo e agora será em uma unidade do Rio de Janeiro). Como sempre, Kuma está de olho no trabalho de artesãos locais. Dessa vez, vai contar com a colaboração de uma cooperativa de mulheres que faz tramas com fibras de bananeira, em Miracatu, no interior paulista.

Ummahat 9-3, complexo hoteleiro no Mar Vermelho, com projeto de Kengo Kuma.

Ummahat 9-3, complexo hoteleiro no Mar Vermelho, com projeto de Kengo Kuma. Foto: Nicola Maniero.

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As novidades, no entanto, não param por aí. Se depender dele, muito em breve é possível que tenhamos outros edifícios levando a assinatura de seu escritório em terras brasileiras. “A relação entre Brasil e Japão é longa e profunda. Adoro o clima descontraído e alegre das pessoas e das cidades brasileiras. Isso me inspira a trabalhar nos projetos daqui. Quero muito combinar essas qualidades com as tradições japonesas em nossos trabalhos”, se entusiasma.

Kengo Kuma ao lado do seu projeto V&A Dundee.

Kengo Kuma ao lado do seu projeto V&A Dundee, museu de design em Dundee, na Escócia. Foto: Alan Richardson

Professor honorário da Universidade de Tóquio, Kuma é mais do que um arquiteto. É alguém que reflete sobre a prática da arquitetura. Foucault, Spinoza, Barthes, Deleuze, Merleau-Ponty são filósofos sempre presentes em seus escritos, na busca de estabelecer algum sentido para a relação entre o ser humano, o morar e a sobrevivência do planeta. Num momento que exige o olhar sustentável para o futuro, nada melhor do que ouvir o mestre, que prepara as novas gerações de arquitetos.

“Meu objetivo ao ensinar arquitetura é mostrar aos estudantes como conectar seus cérebros às suas mãos. Hoje, o cérebro pode ser sustentado ou controlado por computador. Mas e as mãos, que realmente concretizam sua ideia?”, questiona. E continua: “Não gosto de pregar aos alunos como os futuros arquitetos devem ser. Prefiro fazer isso falando sobre os desafios que enfrento todos os dias.”

Um deles, sem dúvida, é como equilibrar a natureza, a tecnologia e as necessidades de moradia da população. “Os arquitetos precisam mostrar para as pessoas que o mundo está mudando da grande arquitetura para a pequena arquitetura. Construir edifícios altíssimos não é solução para nada. Enfatizar esse ponto é a coisa mais importante que nós, arquitetos, podemos fazer.” Ou seja, os desafios não são poucos nem pequenos. Mas sempre ganham soluções extraordinárias quando a assinatura leva dois Ks.

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