Lina Bo Bardi e a arquitetura do povo

Apaixonada pelo Brasil, a arquiteta, designer e ilustradora projetava pensando no que as pessoas precisavam. No Masp, no Teatro Oficina ou no Sesc Pompeia, seus três grandes projetos, sua alegria era ver gente vivendo na prática o que tinha riscado no papel.


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Sesc Pompeia: a grande lareira central é uma das peculiaridades do projeto de Lina Bo Bardi. Foto: Getty Images



Foi amor à primeira vista. Durante toda sua vida, Lina se lembraria do momento em que o navio em que chegava da Itália, em 1946, se aproximou do porto, no Rio de Janeiro. A imagem que capturou seu olhar (e seu coração) não foi, a princípio, a beleza de uma cidade envolvida pela natureza, mas um prédio. Projetado por Lucio Costa e inaugurado um ano antes, o Palácio Capanema abrigava o Ministério da Educação e Saúde (o Rio era a capital do país). Claro e envidraçado, ele se destacava ao longe na paisagem como uma das grandes obras da arquitetura modernista brasileira. Le Corbusier havia contribuído com uma consultoria, Niemeyer participara da obra a convite de Costa, os painéis levavam a assinatura de Portinari e os jardins eram de Burle Marx. Uma visão que só poderia ter encantado a arquiteta Lina Bo Bardi. Ao lado do marido, Pietro, ela tinha deixado para trás um país marcado pela guerra e se impressionou rapidamente com o Brasil, porque aqui tudo lhe parecia novo. Não havia ruínas, gostava de frisar. 

Nascida em Roma, em 1914, Achillina Bo Bardi, ou Lina, conviveu com o rastro de devastação que as duas grandes guerras deixaram na Europa, marcando primeiro sua infância e depois sua juventude. Ao se formar em arquitetura, em 1939, não havia trabalho. Por todos os lados, restavam apenas escombros. Mudou para Milão e montou um escritório com Carlo Pagani, com quem fez alguns trabalhos para o reconhecido arquiteto Gio Ponti. Na falta de oportunidades para projetar, começou a escrever artigos, editar e ilustrar revistas italianas abordando a temática do morar (aqui, se tornou editora da revista Habitat). Quando a guerra terminou, voltou a Roma, onde acabou conhecendo o galerista Pietro Maria Bardi, com quem se casou, em 1946. A ideia era partir para um país onde houvesse perspectivas melhores no mercado de arte e de arquitetura. Foi o começo de duas histórias de paixão. Por Bardi e pelo país que os recebeu.

“O Brasil é o meu país de escolha. Por isso, meu país duas vezes. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu escolhi o meu país”, afirmou Lina muitos anos depois em uma de suas palestras. “Pietro nunca esqueceu a Itália. Ainda hoje. Eu não, não me lembro mais de nada, não me interessa nada. Só o Brasil, porque acho um país pelo qual tenho carinho especial”, disse em entrevista a Olivia de Oliveira, poucos meses antes de morrer, com 77 anos, em 1992. 

Lina Bo Bardi e sua Casa de Vidro

A arquiteta se naturalizou brasileira em 1953 e ao longo da carreira deixou um conjunto de construções e restaurações em São Paulo e em Salvador que até hoje chamam a atenção pela originalidade e, sobretudo, por sua simplicidade. A primeira foi a Casa de Vidro, que se tornou a moradia do casal. Erguida na década de 1950 em meio a plantações de chá no ainda descampado bairro paulistano do Morumbi (“um lugar cheio de tatus, preás, gambás, cobras, jaguatiricas”, segundo Lina), a obra foi feita sobre pilotis, para aproveitar o relevo natural do terreno. Enquanto as salas se apoiam sobre os tubos de ferro, a área de trás, com os quartos, está assentada sobre a terra.

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Casa de Vidro: arquitetura em conexão com a natureza. Foto: Getty Images

A construção é contemporânea de duas outras que se tornaram referência nessa estética, de grandes panos envidraçados: a Glass House, de Philip Johnson, de 1949, e a Casa Farnsworth, de Mies van der Rohe, de 1951. “Não há efeitos decorativos ou de composição nesta casa. A ideia era intensificar a conexão com a natureza, usando os meios mais simples para ter o mínimo impacto na paisagem”, descreveu ela em um artigo na Habitat. Queria criar um espaço protegido da chuva e do vento, mas ao mesmo tempo “aberto a tudo que fosse poético e ético, mesmo a mais violenta das tempestades”. No jardim, cultivou plantas e flores tropicais, e distribuiu poltronas Le Corbusier, Charlotte Perriand e Charles Eames pelo interior, onde a coleção de pinturas do marido se expandia, incluindo entre elas um Goya.

Aos poucos, seus projetos deixaram claros os propósitos de Lina. Ainda que fossem impactantes, a arquiteta era a primeira a criticá-los. Chamou de feios o Sesc Pompeia e o Masp. A estética pela estética não a interessava. Segundo Marcelo Ferraz, que junto com André Vainer e Marcelo Suzuki foi seu colaborador durante muitos anos, ela combatia a ideia do belo clássico. Seu foco era voltado para o que era necessário, o que funcionava, sempre com soluções aparentemente simples, mas de grande engenhosidade técnica. Criava, sobretudo, para a coletividade. Lina iniciava seus desenhos imaginando o vai-e-vem das pessoas, crianças brincando, gente comendo, jogando bola, o público participando de debates ou, simplesmente, desfrutando de um passeio solitário. “Ela dizia que as grandes cidades carecem de espaços onde é possível exercer a solidão junto com os outros, num ambiente coletivo”, lembrou Ferraz durante um encontro com estudantes. 

A polêmica das cadeiras

O Masp e o Fábrica Pompeia nasceram desses desejos. O primeiro surgiu apoiado sobre o maior vão livre do mundo para 1968, quando abriu. São 74 metros entre os pilares que sustentam 10 mil metros quadrados dedicados à arte. Com rampas cruzadas com as laterais pintadas de vermelho, assim como as pilastras que o amparam, o prédio é da mais pura simplicidade. Não tem excessos. Oferece amplitude de sobra. Como um gigante pernalta de concreto e vidro, recebe em sua praça todo tipo de encontro: de casais de namorados a manifestações políticas.

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Masp, um marco na paisagem paulistana. Foto: Eduardo Ortega

Já o Pompeia, uma fábrica de tambores da década de 1930, ganhou vida nova nas mãos dela. Com Vainer, Suzuki e Ferraz, colocou de pé seu projeto mais maduro, que refletia o objetivo maior da sua arquitetura: proporcionar a convivência, especialmente em uma fase pós-ditadura, com a sociedade ávida por respirar livremente. 

O quarteto partiu da construção de inspiração industrial inglesa e foi abrindo espaços para alojar restaurante, teatro, biblioteca, salões de estudos, praças para exposições e shows, tudo acessível pela ampla rua central de paralelepípedos. As janelas de formato irregular, a grande lareira central e o sinuoso espelho d’água interno são algumas das ótimas surpresas. Bastou abrir para virar um polo cultural efervescente. As cadeiras do teatro sempre foram motivo de polêmica. Austeras, de madeira, elas têm um motivo para serem incômodas: o foco é o espetáculo, não o conforto. 

Lina, aliás, fundou uma fábrica de móveis com Bardi e Giancarlo Palanti e chegou a desenhar mais de 100 peças. A cadeira Girafa, de 1986, virou um clássico do design nacional.

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Linha Girafa, produzida pela Marcenaria Baraúna. Foto: Ricardo Durand.

A peça é produzida pela Marcenaria Baraúna, que recentemente lançou uma linha com outras criações da arquiteta, entre elas, uma versão da poltrona desenhada para o auditório do Museu de Arte Moderna da Bahia, batizada de Sertaneja, e os móveis do restaurante do Sesc, com cadeiras de pinho e mesa com base de concreto. Uma curiosidade: quando falavam mal das cadeiras pesadas, Lina rebatia em tom de brincadeira que assim ninguém teria forças para virá-las sobre a mesa do bar, expulsando os últimos clientes, ou para quebrá-las na cabeça de um oponente durante uma briga. 

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Cadeira e mesa do restaurante do Sesc: móveis passaram a integrar o catálogo da Marcenaria Baraúna. Foto: João Ferraz

Polêmica não falta no currículo dessa criadora. Outra querela conhecida envolve o uso dos cavaletes de cristal na exposição do acervo do Masp. Tirados de cena em 1996, eles voltariam apenas em 2015. Uma das críticas é que o nome do artista vinha atrás dos quadros – uma forma de Lina levar o visitante a gostar da obra por ela mesma. Por isso também eram apresentadas misturadas e não organizadas por movimento ou autor. A graça estava em caminhar livre entre elas, sem se preocupar com qualquer formalismo.

Amiga de Zé Celso e Glauber

Lina ainda comandou a ampliação do Museu de Arte Moderna no Ibirapuera e o restauro do teatro Oficina, com sua rampa central, quase uma rua-palco, e a plateia sobre andaimes de ferro, dando ao lugar um ar operístico. A arquiteta e Zé Celso se tornaram muito próximos. Ela fez a cenografia e o figurino de sua peça Na Selva das Cidades e do filme Prata Palomares, que tinha roteiro escrito pelo dramaturgo. 

Avessa a eventos formais, Lina não dava a mínima para socializar com gente pretensamente influente. Mas fez grandes amizades com algumas das figuras mais importantes da cena arquitetônica nacional e também da cultural baiana, como o fotógrafo Pierre Verger, o compositor Gilberto Gil, o artista Mario Cravo Júnior e o cineasta Glauber Rocha, com quem esteve nos bastidores de Deus e o Diabo na Terra do Sol – encontros que marcaram sua passagem pela Bahia, onde deixou obras relevantes. Em Salvador, restaurou o Solar do Unhão para abrigar a nova sede do Museu de Arte Moderna da Bahia, que dirigiu. Mais tarde, trabalharia na Casa do Benin, no Pelourinho, e na restauração da ladeira da Misericórdia e na Casa do Olodum.

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Poltrona Sertaneja: as cadeiras, que eram conectadas no auditório do Museu de Arte Moderna da Bahia, viraram peças individuais produzidas pela Baraúna. Foto: Felipe Berndt

O arquiteto é um mestre da vida

Apesar da genialidade, Lina sempre se sentiu uma outsider. Mesmo depois de ter feito o Masp, não era tão reconhecida pelo público em geral. Deu aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, mas foi preterida quando tentou voltar para um contrato mais longo. Perseguida pela ditadura por ter cedido a casa para uma reunião de amigos de esquerda na qual Marighella apareceu, ela teve que fugir para a Itália depois de ser interrogada e ameaçada de prisão. Passou anos lidando com um processo na Justiça que não se encerrava. 

Por motivos políticos também se afastou da direção do MAM na Bahia (os militares exigiram uma exposição sobre objetos subversivos, exaltando o regime, e o caldo entornou). Solavancos que foram tirando o ânimo de Lina. Em 2021, quase 30 anos depois de morrer, ela foi homenageada pela Bienal de Veneza, com um Leão de Ouro. “Sua carreira como designer, editora, curadora e ativista nos lembra o papel do arquiteto como organizador e, principalmente, construtor de visões coletivas”, disse o curador Hashim Sarkis.

Coerente, Lina defendeu sua visão até o fim, buscando sempre uma arquitetura a serviço da população. “Para um arquiteto, o mais importante não é construir bem, mas saber como vive a maioria do povo. O arquiteto é um mestre de vida, no sentido modesto de se apoderar de como cozinhar o feijão, como fazer o fogão, ser obrigado a ver como funciona a privada, como tomar banho. Ele tem o sonho poético, que é bonito, de uma arquitetura que dá um sentido de liberdade”, dizia. Uma lição que ela exerceu com firmeza na prática, montando seu escritório sempre dentro do canteiro das obras para buscar soluções para o que inventava junto com os operários.

Para saber mais:

Site oficial: Instituto Bardi
Livros:
Lina Bo Bardi, o que eu queria era ter história, de Zeuler Lima
Lina, uma biografia, de Francesco Perrota-Bosch
Stones against Diamonds, de Lina Bo Bardi

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O Brasil de Sergio Rodrigues

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