Regeneração urbana: entenda o conceito que ganha força em São Paulo
Previstos para 2025, condomínios novos no centro da metrópole querem ir além do retrofit ao provocar impactos positivos permanentes na vizinhança.
No jargão dos arquitetos e urbanistas, um prefixo sobressai. Verbos como reformar, reconstruir, remodelar, revitalizar e requalificar espelham na linguagem o que parece ser uma constante nas nossas cidades: espaços públicos nada atrativos e, por isso, em necessidade permanente de… reformulação.
O conceito da vez, regeneração, amplia ainda mais esse vocabulário. Mas toma emprestada uma imagem da biologia – a capacidade de tecidos e órgãos de se recompor após danos físicos – para propor formas mais eficientes de conduzir intervenções urbanas. E elas podem ter a ver com ações de naturezas bem distintas: ocupações artísticas e eventos de design realizados em edifícios em ruínas, parcerias para capacitação de mão de obra, articulação de associações atuantes em uma rua ou um bairro em prol de objetivos comuns… sem, necessariamente, a participação do poder público.
Tudo isso está acontecendo neste momento no centro paulistano, a partir do impulso gerado por dois retrofits (tipo de projeto que aproveita a estrutura de uma construção existente e moderniza suas instalações, evitando o impacto ambiental de uma demolição). Antes mesmo de começar, seus efeitos positivos já reverberam no entorno imediato. É o tecido urbano se regenerando.
Edifício Virgínia: boa vizinhança com a Ocupação 9 de Julho
No entroncamento das ruas Martins Fontes e Augusta encontra-se o Virgínia, prédio de 1949 de autoria do arquiteto José Augusto Bellucci. “Com dez andares de apartamentos e comércio no térreo, ele havia sido convertido em salas comerciais nas últimas décadas e estava com apenas 20% de ocupação quando o compramos em 2020”, conta Marcelo Falcão, CEO da Somauma, fundada em 2019. Os cinco sócios da incorporadora, todos arquitetos, têm expertise tanto no mercado imobiliário quanto em restauro e patrimônio. Todos nasceram e cresceram na região central de São Paulo, e entendem que a tão sonhada revitalização do bairro depende de mais pessoas morando nele. Daí o modelo de negócio que transforma edificações vazias em novos residenciais.
Vista aérea do Edifício Virgínia, na região central de São Paulo.
Foto: Divulgação
No projeto do arquiteto Silvio Oksman, o edifício de dez andares preservará o térreo comercial e criará um restaurante no rooftop.
Imagem: Divulgação
A visão deles, no entanto, vai além do retrofit, cujo projeto de arquitetura está a cargo de Silvio Oksman. “Enxergamos os projetos como regeneradores bem antes de ficarem prontos, e o Virgínia é um laboratório disso. Abrimos uma loja de design no térreo, no começo, para sinalizar que o lugar tem dono, tem vida”, prossegue Falcão. “No mundo todo, a requalificação dos grandes centros urbanos sempre vem por meio da economia criativa. Por isso, passamos a promover eventos ancorados em moda, gastronomia, design e arquitetura.” Ele se refere às duas mostras realizadas ali, em setembro de 2022 e março deste ano – esta última atraiu 11 100 visitantes em duas semanas, um sucesso tão grande que estendeu as atividades até 28 de maio, véspera do início das obras, programadas para começar em junho (confira a programação aqui).
Ambiente da mostra Quanto Tempo Temos?, realizada em março durante a semana de design de São Paulo no 8º andar do Virgínia. Foto: Carolina Mossin/Divulgação
A empreitada, aliás, dará continuidade à regeneração. Iniciativas costuradas pela Somauma com o Istituto Europeu de Design e a ONG Mulher em Construção vão envolver nos trabalhos a Ocupação 9 de Julho, vizinha do Virgínia. Com a faculdade, a ideia é melhorar a marcenaria da comunidade para que a recuperação dos componentes de madeira aconteça ali. Já a ONG vai capacitar interessadas em atuar na obra. “Nós, dos movimentos sociais, defendemos a proposta de ressignificar o centro, mas sem gentrificar. Ações como essas, realmente interativas, é o que a gente sempre desenhou e desejou”, comenta Carmen Silva, líder da Ocupação. “Não queremos ser vistos como vizinhos indesejados. Ao contrário, estamos aqui reivindicando o tratamento como cidadãos de fato. A urbanidade pressupõe a relação entre diferentes pessoas, de diferentes classes, diversas áreas, diversos setores. A cidade inteligente é aquela que aceita, de fato, a participação social”, fala. Quando se mudarem, os moradores das 121 unidades já terão estabelecidas relações de boa vizinhança.
Basílio177: polo cultural e hub de iniciativas
A dez minutos de caminhada dali, entre as ruas Basílio da Gama e Sete de Abril, situa-se outro empreendimento com perfil de regenerador urbano. Trata-se do retrofit de um prédio de 1939 projetado pelo Escritório Técnico Ramos de Azevedo & Severo Villares, que pertenceu à Telesp e à Telefónica antes de ser esvaziado em 2010 e é tombado pelo Conpresp, órgão municipal de preservação do patrimônio histórico. Adquirido no final de 2021 pela Metaforma, o complexo, que contém mais dois edifícios adjacentes, vai dar origem a um condomínio de 274 unidades assinado por nomes de peso: arquitetura do Metro Arquitetos, áreas comuns da Todos Arquitetura, paisagismo de Ricardo Cardim e restauro liderado por Ana Marta Ditolvo, da Ambiência. O térreo, dedicado à gastronomia, com restaurantes, empórios e lojas, será aberto ao público, permitindo a circulação entre as duas ruas paralelas – como já fazem as consagradas galerias do centro paulistano. Ali também ficarão expostos antigos equipamentos de telefonia encontrados em meio ao entulho acumulado no espaço ao longo de quase dez anos de abandono.
Instalações da mostra Irrealidades Visíveis, realizada em abril no átrio do Basílio177. Foto: Divulgação
“Quando fechamos a compra, já tínhamos mapeado que a região é valorizada pelos criativos”, afirma Bruno Scachetti, diretor executivo da Metaforma. “Por isso, em poucos meses fechamos a parceria com o Kura, do artista e produtor cultural Kauê Fuoco. A instalação do ateliê dentro do prédio foi a primeira ação para reativar o local.” Em setembro de 2022 e abril deste ano, o local também encampou instalações artísticas e atraiu um público interessado em arte e design (média de mil pessoas por dia durante a semana e o dobro disso aos sábados e domingos).
Perspectiva ilustrativa da fachada do Ed. Basílio177. Foto: Divulgação
“Estamos resolvendo agora o quebra-cabeça de como as atividades culturais podem continuar funcionando durante a obra, que deve iniciar no segundo semestre. Uma possibilidade é deixar aberto o átrio do prédio tombado. Temos de equacionar a circulação, mas acreditamos que dá para manter o acesso, ainda que apenas por só uma das ruas. Também pensamos em montar ali uma oficina de argamassa, para capacitar profissionais para o restauro”, diz Scachetti.
Ao se inserir em uma cena já repleta de associações que demandam melhorias nos arredores, a Metaforma teve o mérito de organizar uma comissão que promove o diálogo entre elas e consolida as pautas comuns. “Agora, estamos articulando um diagnóstico mais profundo da área e tentando captar recursos para as ações concretas”, adianta o diretor executivo.
Na visão da engenheira Giovana Ulian, diretora da Biossplena Inteligência Urbana e estudiosa do tema, as iniciativas do Virgínia e do Basílio177 condizem com o conceito de desenvolvimento regenerativo porque são sistemas que geram valor para os vizinhos e para o bairro. “Eles causam impacto positivo no entorno. As cidades precisam de mais projetos como esses, acontecendo simultaneamente, com ainda mais impactos”, analisa. “É muito importante pensar no que se pode fazer enquanto o tapume estiver lá.” Em ambos os casos, isso quer dizer nos próximos dois anos.
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