Individual de Maria Auxiliadora, na Galeria Estação, em junho deste ano.
Foto: João Liberato/Galeria Estação
Madeira, cera e tinta. Figuras de feições indígenas, altas e baixas. Umas com marcas do tempo, outras que parecem recém-saídas do ateliê da artista. As esculturas descritas acima são os Bugres de Conceição. Produzidos incessantemente por Conceição Freitas da Silva ao longo de 30 anos, hoje eles povoam o corredor do subsolo do Museu de Arte de São Paulo, o Masp – a primeira exposição monográfica dedicada à artista em uma instituição desse porte. Autodidata, de origem indígena, nascida em 1914 no Rio Grande do Sul e radicada no Mato Grosso do Sul, ela é uma das muitas artistas provenientes da tradição popular brasileira que vêm ganhando maior visibilidade em espaços institucionalizados da arte.
“A Conceição é uma artista que teve reconhecimento institucional, mas não o que merecia, e tampouco a pesquisa necessária em torno de seu trabalho extraordinário”, afirma Amanda Carneiro, curadora-assistente do Masp e responsável pela exposição Conceição dos Bugres: tudo é natureza do mundo, ao lado de Fernando Oliva, curador da instituição. A novidade, completa Carneiro, é o peso institucional que advém de uma exposição individual: “Ainda vemos poucas exposições monográficas dedicadas a artistas da tradição popular. Em geral, eles são agrupados em grandes exposições coletivas”.
Em cartaz até 30 de janeiro de 2022, a mostra reúne 119 obras da artista e integra o biênio de
Histórias brasileiras – ciclo expositivo do Masp que, nesse primeiro momento, se centrará em grandes escultoras do país. “A Conceição dos Bugres é uma escultora magnífica. Por isso, acreditamos que ela deveria estar em interlocução com Erika Verzutti e Maria Martins. Verzutti está no que chamamos de arte contemporânea e Martins é um ícone do período dedicado à arte moderna. Portanto, fazer isso é uma maneira de lançar luz à produção da Conceição e ao fato de que ainda há muito a ser feito. Precisamos romper hierarquias que negam possibilidades de diálogo”, afirma a curadora.
Apesar de a artista ter tido reconhecimento nos anos 1970, participando de exposições em São Paulo e no Rio de Janeiro, ela morreu em 1984 sem recursos e sem realizar o sonho da casa própria, ou melhor, da “casa de minha”, como comenta em um documentário de 1979, também em exposição no Masp. O título da mostra, aliás, vem de um depoimento presente no vídeo: “Tudo é do mato (…) A cera é a abelha que faz, a madeira é do mato… Tudo é da natureza do mundo”.
Ao longo da história da arte brasileira, a arte popular foi associada a artistas autodidatas, de raças e origens sociais específicas, que pintavam e esculpiam elementos do cotidiano e cosmogonias próprias de suas comunidades. Mas, com o desenvolvimento de uma arte contemporânea que imagina e representa a partir de perspectivas decoloniais, com artistas indígenas, afrodescendentes e de tradições populares que se encaixam exatamente nessa descrição, faz sentido falar em arte popular atualmente?
“Utilizo o termo arte popular quando estamos nos referindo a uma escola e a um período específico de produção, assim como nos referimos à arte moderna. Mas, de fato, é muito difícil encontrar um termo adequado para produções de artistas não eruditos que não necessariamente se encaixam nesse período. Essa é uma discussão muito antiga”, conta Vilma Eid, colecionadora de arte popular e fundadora da Galeria Estação (São Paulo), a principal do circuito comercial a trabalhar com produções do gênero.
Nos anos 1970, o que se convencionou chamar de arte popular foi muito apreciado pela intelectualidade no Brasil, com incentivo de personalidades como Lina Bo e Pietro Maria Bardi. “Nos anos 1980, isso passou por um esquecimento. Mas finalmente está aflorando novamente. Instituições como o Masp e a Pinacoteca de São Paulo têm sido essenciais para o movimento de valorização do popular, do qual a Estação também faz parte. Só espero que não seja uma onda, pois as ondas vêm e vão, são incontroláveis e não ficam”, afirma a galerista.
Em março de 2020, a casa adicionou um novo elemento ao debate sobre arte popular: como as mulheres, artistas não eruditas, foram e são representadas em exposições pelo país. Com curadoria de Fernanda Pitta, a coletiva Mulheres na arte popular reuniu cerca de 50 obras, de oito artistas, entre esculturas, pinturas, gravuras e tapeçarias. “A importância do recorte se evidencia pelo fato de que mulheres estiveram menos representadas na construção da ideia de arte popular no Brasil”, escreve Pitta no catálogo da exposição, que tomou forma na sede da Estação, no bairro paulistano de Pinheiros.
Individual de Maria Auxiliadora, na Galeria Estação, em junho deste ano.Foto: João Liberato/Galeria Estação
A mostra rendeu frutos: colecionadores e instituições da cidade adquiriram obras de Conceição dos Bugres, Miriam Inez da Silva, Maria Auxiliadora e Madalena dos Santos Reinbolt, entre outras – ampliando a visibilidade dessas artistas, que cada vez mais ganham destaque em acervos e programações de museus e espaços comerciais. Além da coletiva Mulheres na arte popular, a Estação apresentou uma individual de Maria Auxiliadora em junho deste ano, e a galeria paulistana Almeida & Dale organizou, em novembro do ano passado, As impurezas extraordinárias de Miriam Inez da Silva – a maior retrospectiva da artista goiana já realizada, com 110 pinturas e gravuras.
Da terra à tinta
Esse movimento também abre espaço para artistas da tradição popular que seguem em atividade. A galeria Bergamin & Gomide apresenta até 1º de outubro, na Casa Flávio de Carvalho, nos Jardins, a exposição Maria Lira Marques: obras recentes. Descendente de negros e índios, como gosta de dizer, Maria Lira Marques nasceu em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), em 1945, e herdou a habilidade manual da mãe, lavadeira que na época do Natal fazia pequenos presépios de barro para amigos. Com texto crítico de Rodrigo Moura, curador-chefe do El Museo del Barrio, em Nova York, a individual reúne cerca de 60 pinturas que utilizam o barro como matéria-prima, criando um imaginário próprio da fauna e flora sertanejas.
Obra de Maria Lira Marques (1945), Sem título, 2019-2020.Foto: Ding Musa/Bergamin & Gomide
Conhecida pelo manuseio do barro, Marques conta que a pintura chegou tardiamente em sua prática, devido a um problema de saúde que a afastou do trabalho pesado da cerâmica. “Comecei a pintar por incentivo de Frei Chico, um padre holandês com quem trabalhei muito tempo na pesquisa sobre a cultura popular do Vale do Jequitinhonha”, conta a artista, que segue morando em sua cidade natal. Frei Francisco van der Poel, importante personagem em sua trajetória, ajudou Marques a transportar para a pintura os desenhos que já fazia em suas famosas máscaras de cerâmica. A mineira não apenas dominou a técnica como incorporou novos elementos, como a utilização de pigmentos produzidos por ela a partir de terras coloridas da região.
Do barro ao papel, da terra à tinta, do Vale ao mundo. Maria Lira Marques já expôs em galerias e instituições de Belo Horizonte e São Paulo e em países como Bélgica e Alemanha – fato que muito a orgulha. “O bonito é a gente poder sobreviver daquilo que a gente faz. Não tem coisa melhor no mundo do que ser valorizado. Como uma frase do Paulo Freire que Frei Chico sempre fala: ‘Ajudar a pessoa é valorizar aquilo que ela já tem’.” Que o trabalho de Maria Lira Marques e de tantas outras tenha seu devido reconhecimento, e que a arte popular, seja qual for a nomenclatura, torne-se perene nas estruturas.