Pagodear: verbo brasileiro

Desde os anos 1990 até hoje, o pagode entrou em todas as casas brasileiras. Sem nunca ter deixado de ser popular, o gênero vem passando por diversas transformações, sendo mixado com outros ritmos, reverenciado por novos artistas e visibilizando cada vez mais a presença das mulheres.

O pagode é contagiante. Desdobrado do samba, ele é uma genuína expressão dos brasis do Brasil e tem o poder de chamar o nosso espírito para dançar. Foi no final dos anos 1980 e durante os 90 que o gênero começou a ganhar a forma que hoje ouvimos e notoriedade midiática. Passados 30 anos, ele continua a se reinventar e forjar novos artistas, inclusive mulheres pagodeiras, que constroem seu espaço em uma indústria que segue sendo majoritariamente reconhecida pelos homens.

A indústria musical evoluiu, a internet se expandiu e as mídias sociais dominaram as dinâmicas do ambiente digital. Atualmente, uma música viral não passou, necessariamente, por uma rádio, mas talvez por plataformas de streaming e mídias como o YouTube. Nesse contexto, muita coisa se perdeu, mas o pagode tem conseguido acompanhar essas transformações ao traduzir o Brasil contemporâneo. Grupos e artistas que personificam isso não faltam.

Vale dar destaque ao boom pelo qual o “pagode anos 90″, conhecido também à época como ”pagode romântico”, está passando. As músicas que marcaram a década voltaram com tudo às playlists de muita gente e, se você é millennial ou baby boomer, é provável que lembre de nomes como Fundo de Quintal, Raça Negra, Katinguelê, Soweto, Pixote, Exaltasamba, Negritude Júnior, BokaLoka, Molejo e vários outros.

Esses grupos lançaram hits como “Eu me apaixonei pela pessoa errada” (Exaltasamba), “Temporal” (Art Popular), “Cheia de manias” (Raça Negra), “Cilada” (Molejo), “Derê” (Soweto) e ainda “Cohab city” (Negritude Junior). Sucessos absolutos há três décadas, eles voltaram a ter popularidade nos últimos anos ao serem regravadas por novos grupos de pagode. Entre eles, Menos É Mais, com seu famoso Churrasquinho do menos é mais – um dos álbuns mais ouvidos de 2020 –, e Di Propósito. Ambos já somam mais de 1 bilhão de visualizações no YouTube.

Em entrevista à ELLE, o vocalista do Di Propósito, Carlos Pereira (conhecido como Kaique), analisa que muita coisa evoluiu dos anos 1990 para cá, mas diz sentir falta de letras que se perpetuem ao longo do tempo. Ele relembra que ”tocar alguma das clássicas das décadas passadas era o ápice dos shows, um grande momento nostálgico”. O brasiliense, que começou ainda na adolescência, diz que escolheu o gênero “porque é possível retratar muitos sentimentos ao mesmo tempo: alegria, tristeza, reunião de amigos, família, de tudo um pouco”. Atualmente, sua preocupação é conseguir compor letras mais elaboradas, com um impacto que possa ser sentido por gerações futuras, assim como as de 1990.

Ferrugem, Dilsinho, Mumuzinho, o grupo Entre Elas e Marvvila são outros artistas jovens da empreitada pagodeira, mas nomes consagrados, como Turma do Pagode, Belo, Pixote, Péricles e Thiaguinho, seguem fazendo sucesso.

Fazer pagode com linguagem atual pode parecer simples: talvez bastassem um novo arranjo e uma boa campanha publicitária? Mas traduzir a contemporaneidade na música, às vezes, é mais difícil do que ouvir “Melhor eu ir” ou “Até que durou” depois de um término.

O que temos visto como outro sinal de reinvenção é o gênero sendo mixado com diferentes ritmos, desde o funk até o sertanejo. Péricles, o ex-Exaltasamba que seguiu carreira solo em 2012, é um grande entusiasta: suas últimas parcerias foram com Liniker (nossa capa, que tem no pagode uma das grandes referências para o novo disco), na canção “O melhor do mundo”, e com Drik Barbosa, em “Calma, respira”. No funk, a fluminense Ludmilla lançou um álbum inteiro só de pagode, chamado Numanice. Já no rap, Emicida convidou Zeca Pagodinho para “Quem tem um amigo tem tudo”. A música “Traje de verão reuniu Dfideliz e Péricles, e a já clássica “Eu me apaixonei pela pessoa errada” aparece até na canção “Flamingos”, de Baco Exu do Blues.

Para Claudinho de Oliveira, um dos fundadores do Soweto, todas essas novas movimentações são motivo de celebração. ”Somos uma sequência. E precisamos entender a importância disso e considerar essas transformações para que o pagode continue sendo cultura viva e o samba não se torne uma peça de museu”, diz ele. ”Por isso, falo dessa chama acesa. Queremos que o samba continue sendo original, contextual, que favoreça esses grupos, que as pessoas tenham mobilidade social e consigam sonhar.” O músico, que desde 2006 não faz mais parte do grupo, é otimista e acredita que em breve teremos outras gerações do pagode que continuarão ”fazendo a crônica do que a gente é”.

O Soweto foi um dos grupos de maior sucesso nos anos 1990. Formado inicialmente por Claudinho e Robson Buiú, seu terceiro álbum, Farol das estrelas, vendeu mais de 1 milhão e meio de cópias em 1999 – à época, o cantor Belo já fazia parte da banda havia seis anos. Dessa leva de pagodes “das antigas”, o Grupo Pixote é um dos únicos que mantém todos os integrantes da sua formação original, de 1993, composta por Thiago Carvalho Santana (ou Thiaguinho), Agnaldo Nascimento Apolinário (ou Tiola Chocolate) e Douglas Fernando Monteiro (ou Dodô).

O último diz, em entrevista à ELLE, que ”vive e respira pagode 24 horas por dia” e acredita que os amantes do gênero se mantêm e até aumentaram nos últimos tempos. ”Digo que o pagode é como mortadela: todo mundo come, mas diz que não gosta. Hoje, todos têm uma playlist, porque, depois de ir pela primeira vez, você não quer parar de ir. E num churrasco ninguém vai colocar ópera, né?”, questiona o cantor, que começou no Pixote com apenas 14 anos.

As mulheres no pagode

O primeiro show de abertura de Kassia Freire Marvila (ou Marvvila) foi para o grupo Pixote. À época, a artista carioca tinha apenas 18 anos e uma carreira que estava só começando. Ela descobriu organicamente o samba quando saiu da casa dos pais e o vê como uma expressão da cultura nacional que é levada para o mundo. ”Vai além de gostar. É resistência de um povo que veio de baixo, assim como eu. Para mim, o samba e o pagode são a maior representação do Brasil”, afirma a cantora, que teve em Dodô uma de suas primeiras inspirações. “A música se renova a cada dia, mas a essência continua a mesma. Inovamos com a linguagem, trazendo jovialidade, mas sempre com referências de quem abriu espaço pra gente lá atrás.”

Marvvila é uma das mulheres que têm, cada vez mais, conquistado o seu espaço no pagode. Não que as cantoras não existissem antes, mas o gênero não se exime da cartilha do machismo que opera toda a indústria musical e dinamiza as relações sociais. Ao olhar para a década de 1990, lembramos de alguns nomes de gigantes do samba que tiveram grande repercussão, como Alcione e Leci Brandão. Mas dificilmente vêm à mente pagodeiras, já que foram poucas as que ganharam notoriedade.

Enquanto os homens negros e periféricos estavam rompendo certas barreiras e colocando suas narrativas em destaque, isso não se estendia da mesma forma às mulheres. Normalmente, elas apareciam retratadas nas letras apenas como ”musas inspiradoras”, como explica a jornalista Nathália Geraldo. ”Nos anos 1990, o sistema e a forma de divulgação eram focados e influenciados pelo patriarcado, e pela TV, que sempre buscava colocar o homem na centralidade”, continua ela, que é pós-graduada em relações étnicos raciais pela Universidade de São Paulo com o trabalho Machismo e racismo na música: as mulheres negras no pagode dos anos 1990.

Discussões importantes são produzidas pelo pagode nos campos raciais e de classe, mas questões de gênero ainda são incipientes, apesar do avanço das pautas das mulheres. ”Nos 1990, tivemos uma música focada no pagode masculino, como se eles fossem uma boy band brasileira, e hoje temos um discurso feminino e feminista mais claro sendo pautado na mídia”, diz Nathália, que aponta uma semelhança entre as sambistas e as pagodeiras: ambas as presenças são de resistência.

Os ambientes digitais são um dos responsáveis por mais espaços favoráveis. A jornalista acredita que ”um dos benefícios das redes sociais para as mulheres, e sobretudo mulheres negras, é conseguir dar o aviso de ‘nós existimos’. Você consegue divulgar seu trabalho por conta própria e acaba possibilitando essa potência”.

Foi o caso de Marvvila, que começou a bombar primeiro no YouTube, e já gravou com Ludmilla para o álbum Numanice. A artista diz que o pagode mudou sua vida, e, se antes achava que fazer sucesso no meio era algo impossível para uma mulher, agora não mais. ”As mulheres estão vindo com tudo. Elas estão perdendo o medo. Ainda tem muita coisa para fazer, mas queremos ver muitas mulheres no pagode fazendo história”, continua ela, que lança uma nova trilha neste dia, 20 de agosto.

Preparamos uma playlist especial apenas de mulheres pagodeiras para você conhecer: