O motivo foi um pôr do sol. No fim de 2019, depois de passar uma semana de cama, delirando de febre, acordei melhor e saí para caminhar perto da praia quando o vi, belíssimo, um pouco adiante. No cruzamento que separava os pedestres do píer, os celulares se multiplicaram. Quando o sinal abriu, virou manada: as pessoas corriam e se empurravam em busca do melhor ângulo, ansiosas para capturar a imagem – inclusive eu. Ainda fraca, mas automaticamente pronta para registrar o meu story.
Aí veio uma pequena tragédia: a bateria do celular morreu bem na hora da foto. A tela se apagou, o sol se pôs e eu perdi a chance. Fui tomada por uma sensação tão forte de raiva que fiquei confusa. De onde aquela frustração tinha vindo se era só uma foto? No dia seguinte, ainda assustada com o efeito que o Instagram tinha instalado em mim, deletei a conta. A partir dali, eu não teria mais rede social nenhuma.
Depois de duas semanas de abstinência – eu pegava o telefone o tempo todo e lembrava que não tinha onde clicar, um horror –, a vontade passou. Uns meses depois, os amigos e a família se acostumaram. Assinei newsletters e passei a ouvir mais podcasts e programas de rádio, ler revistas inteiras e prestar atenção em anúncios de ponto de ônibus para me inteirar sobre as novidades. A vida seguiu.
Hoje, as primeiras perguntas costumam ser: mas como você sabe das coisas? Como te acham? Não se sente isolada? As respostas: às vezes não sei, às vezes não me acham e sim, às vezes me sinto isolada. Mas, para mim, continua a melhor decisão. Pensando neste artigo, criei uma conta temporária no Instagram para ver como eu me sentiria. Em poucos dias, o comportamento voltou: eu olhava em volta em busca de fotos, me interrompia o tempo todo para abrir o app, me chateava com “poucas” notificações. A ansiedade subia feito lava. Saí de novo.
Essa é uma experiência pessoal, mas é difícil negar que estar online virou uma coisa intensa. É só olhar em volta – na rua, no ônibus, no banheiro, até no velório – para constatar esse fato. O uso incessante do celular é tão rotineiro que repetimos o comportamento sem perceber, mais de 100 vezes por dia. Geralmente, rumamos para as redes sociais: cerca de 60% da população global está nelas, e só o Facebook tem quase 3 bilhões de usuários ativos.
“É uma das questões básicas da psicanálise: a gente quer ser amado e desejado, antes mesmo de desejar.” – Ana Carolina Cubria
Depois de tantos anos convivendo com elas, me vejo pensando menos se estamos mais viciados, deprimidos ou ansiosos por conta delas (talvez sim, a ciência ainda não cravou) e mais se essa lógica deixa rastros em um nível psicologicamente íntimo, que afeta nosso senso de lugar no mundo, e por isso há tanto temor em sair delas. Isso mesmo diante de tantos escândalos (lembra da manipulação eleitoral de dados do Facebook feita pela Cambridge Analytica?) e crises (como as pesquisas internas vazadas recentemente que apontam o Instagram como um produto perigoso para as adolescentes).
Ao longo dessa última década, as redes sociais foram virando espaços fundamentais de expressão, conexão e informação. E esse poder é tão vasto que, mesmo não tendo mais um perfil, sigo ligada a elas de alguma maneira: sou aquela pessoa que não tem redes, porque estranho mesmo é estar ausente delas. Por que é tão estranho assim?
A psicóloga Qi Wang, professora de Desenvolvimento Humano da Universidade de Cornell, propôs uma teoria do eu triangular na era das redes: tem o eu que existe de forma privada na mente do indivíduo, o eu registrado e apresentado online e, por fim, o eu inferido e construído pelo público virtual. Nessa camada do meio, do eu registrado, vive a figura de um pequeno artista: é quem decide a linguagem, o ângulo, os filtros, o facetune, o mood, o que é lembrado ou deletado. “O eu registrado escreve as próprias histórias e atua como personagem central”, escreve Wang. Com o arsenal digital que temos hoje, esse eu nunca foi tão moldável e a história contada, tão personalizável.
Nessa teoria, esse mesmo eu registrado é uma personagem que performa para um público e que, por isso, pode criar estratégias de autocensura e autoapresentação específicas de acordo com a resposta que obtiver ( ❤️ ). O público tem um certo poder sobre ele, dentro e fora do app. Era o que eu sentia de vez em quando, como ao arrumar a mesa para ficar mais instagramável ou testar diferentes ângulos para uma selfie “espontânea”. Era a minha realidade, mas não era necessariamente autêntica. Ainda assim, eu fazia. (E, se flopasse, eu ocasionalmente apagava.)
A psicanalista Ana Carolina Cubria, doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de Ver e Ser Visto: Considerações Psicanalíticas sobre as Redes Sociais, estuda o fenômeno que ela batizou de “documentação visual do cotidiano” e esse nosso desejo de expor a intimidade. Ela explica que as redes sociais respondem a uma demanda de exteriorização que cresce há décadas, com as fronteiras entre público e privado cada vez mais fluidas. Coisas que antes seriam segredo agora estão aí para todo mundo ver. Existe maior liberdade para ser.
E existe o outro lado. Vivemos numa era com mais sofrimentos narcísicos (aqueles que se referem à construção da identidade), inclusive devido à maior influência das relações interpessoais. Nas plataformas onde nos apresentamos, ficamos mais expostos. E a partir do feedback virtual, voamos para mil interpretações: like pode ser afeto, visualização pode ser desejo e nunca somos esquecidos. “É uma das questões básicas da psicanálise: a gente quer ser amado e desejado, antes mesmo de desejar. É claro que isso cresceu com as redes porque somos levados a crer que todo mundo vai pensar em mim e querer saber de mim quando vir meu post”, comenta Ana Carolina.
“Mesmo que alguém decida que não quer ter a autoestima hackeada em termos de likes, que não quer usar essas coisas, ainda vive num tecido social em que suas oportunidades sociais estão lá. Então o ponto é que a sociedade não seja hackeada.” – Tristan Harris
Para complicar um pouco mais, esse ambiente é infusionado por uma mensagem de consumo (é sempre útil lembrar que as redes sociais são riquíssimas e vivem de vender anúncios): tudo é possível, basta querer. Dali para uma sensação de fracasso, FOMO ou FOBO, é um pulo. “É uma questão humana, mas que se inflacionou muito. No Instagram, por exemplo, você vê pela atualização da página: se surge o interesse por alguma coisa e não segura o dedo, outra aparece em cima. Tem um excesso de informação que dá essa ilusão de que você precisa consumir tudo, precisa ter tudo”, aponta Ana Carolina.
As consequências disso a médio a longo prazo na psique, especialmente de crianças e adolescentes, ainda não estão dadas. Então, para hoje, restam as perguntas: Se explorar nossas ilusões é lucrativo, existe um jeito saudável de existir nas redes? Se os algoritmos são mais rápidos do que nós, existe uso verdadeiramente autônomo? Se as redes sumissem hoje, eu seria um pouco diferente amanhã?
Apesar do objetivo das redes sociais ser essencialmente o mesmo (monetizar a atenção), estar nelas ainda é uma experiência psicologicamente singular, que pode ser positiva ou negativa, e esses exercícios críticos viram uma forma de autoproteção e autoconhecimento. “Essas perguntas – o que estou buscando e o que estou de fato encontrando nas redes – são colocadas todos os dias. É uma reflexão importante porque, se não, vamos no automático e elas foram feitas para irmos no automático”, diz Ana Carolina.
Um dos maiores críticos das redes sociais é Tristan Harris, que aparece no documentário O Dilema das Redes. Ex-engenheiro do Google e especialista em persuasão, ele usa o termo “animais humanos” para debater o tema. É para ressaltar uma mensagem: com conhecimento, qualquer animal pode ter seu comportamento manipulado, e as chamadas Big Techs são especialistas nesse campo. Nada nas interfaces é por acaso. “As redes contrataram muitos psicólogos, neurocientistas, psiquiatras e biólogos que estudam nossa cognição e interação social”, diz Marco Mello, ele mesmo biólogo e professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.
Aqui vai um resumo da encrenca: a construção dos algoritmos leva em conta que, ao longo da evolução, nossa espécie priorizou o convívio presencial (instintos, gestos, fala, química) e fica mais desprotegida na secura do online. Através do uso de estímulos e vieses cognitivos (nossos atalhos mentais), as redes ativam emoções, sentimentos e comportamentos tão rápido que nem percebemos. Tem o viés de confirmação, que nos leva a procurar informações que confirmem nossas crenças. Tem o efeito adesão, que é a tendência em fazer/acreditar em algo porque outros já estão na pilha. Tem o gatilho de urgência (as notificações) e o automatismo (é só continuar rolando a tela para ver mais). E assim, de grão em grão, vamos passando mais tempo lá dentro. “Todo mundo é presa de rede social, mesmo quem estuda o assunto”, explica Marco.
Ironicamente, Marco e as Big Techs trabalham com o mesmo conceito de redes complexas. Ele, que estuda sínteses ecológicas, busca entender como diferentes espécies interagem em um sistema. E do mesmo jeito que Marco analisa como certas abelhas polinizam certas lavouras de café, as redes sociais estudam como certas pessoas interagem com certos subgrupos – e aí fortalecem essa conexão personalizada para que elas fiquem mais online. O resultado é sabido: entretenimento, distração e, no limite, bolhas ideológicas.
Marco saiu das redes em 2021, desiludido com o que considera uma atmosfera tóxica, excessivamente individual e espelhada, com pessoas que querem quem pense e/ou seja parecido. Foi uma decisão minoritária: uma pesquisa de 2021 aponta que os estadunidenses são os que mais buscam como deixar as redes sociais, mas são meros 0,363% dos usuários. O Brasil aparece longe, em 28º lugar, com 0,004%.
Hoje ele mantém apenas seu blog de divulgação científica e passou a se informar por podcasts, rádios e canais tradicionais no YouTube. Investiu em várias atividades presenciais para socializar. É a única pessoa do seu convívio imediato sem redes. E está satisfeito. “A Internet é muito boa, as redes sociais que são ruins. No fundo, as pessoas têm que se curar do FOMO e experimentar outras coisas. Se você diminui o tempo nas redes ou sai delas, percebe que o mundo está aí”, finaliza.
É verdade que pesquisas começam a apontar que usar as redes sociais de forma controlada (como 10 minutos por dia) ou tirar um tempo off (tipo uma semana) pode ter efeitos positivos para o bem-estar. Que quem sai vê mais a família e os amigos, têm mais tempo de lazer e até um toquinho de melhora na satisfação geral. A questão para Tristan Harris, hoje à frente do Center for Humane Technology, é que a saída individual das redes não é mais suficiente. “Mesmo que alguém decida que não quer ter a autoestima hackeada em termos de likes, que não quer usar essas coisas, ainda vive num tecido social em que suas oportunidades sociais estão lá. Então o ponto é que a sociedade não seja hackeada”, sintetiza. O buraco é mais embaixo.
De certa forma, estar ou não nas redes sociais virou uma decisão tão emaranhada que foge das nossas mãos. Mesmo quem sai ainda fica um pouco dentro, já que a lógica do instantâneo e do hiperpersonalizado está por toda parte: na política, na mídia, na cultura. No cenário macro, é uma tensão que não vai se resolver tão cedo.
Já no meu mundo microscópico, lembro da pontada de pavor ao deletar meu perfil. Depois de oito anos, parecia um pulo no abismo. Houve tédio, dúvida, angústia. Até que acabou. Apesar da aura de onipotência, não há nada nessas plataformas que seja realmente imprescindível, se houver disposição para se adaptar. A Internet segue de pé. As pessoas próximas não somem. E, eventualmente, alguma coisa clica. Percebi num dia qualquer, sentada no metrô, quando não recebi o comando invisível para checar-a-tela-agora que invadia o vagão. É uma retomada que começa pequena, sutil. Mas existe.