Zoom no vórtex da autoimagem

Não é de hoje que a humanidade tem dificuldade de se satisfazer com o que vê refletido no espelho. No entanto, com a obrigatoriedade das chamadas de vídeo durante o isolamento social, essa relação ganhou contornos mais agonizantes.

A diretora criativa Luana*, 28 anos, tem medo de tirar fotos e aparecer em vídeos. Um medo paralisante, que a deixa muito angustiada. Ela quase não conseguiu tirar o passaporte por causa do temor. “Perdi a data, remarquei, porque sabia que sairia horrível. Meu nariz ficaria torto, meu rosto muito grande. Isso me deixa realmente incomodada”, conta. Devido à pandemia de covid-19, houve o início de outro pesadelo para Luana: as videoconferências no Zoom. “Eu fujo de reuniões. Já pedi para não participar por não querer aparecer e na maioria das vezes fico com a câmera desligada. Sempre que me vejo na câmera, procuro algum defeito”, diz. Ela já quis operar o nariz, fazer harmonização facial. “Só não fiz porque sou medrosa.”

Após o primeiro confinamento decorrente do surto epidêmico, um grupo de médicos liderado por Shadi Kourosh, dermatologista da Faculdade de Medicina de Harvard, fez um estudo com mais de 7 mil pacientes à procura de procedimentos estéticos. A pesquisa deu conta que 86% buscavam intervenções motivados por sua imagem nas telas. Foi assim que popularizou-se a “dismorfia do Zoom”.

Histórias como a de Luana têm se tornado cada vez mais comuns. Com o celular sempre na mão e o rosto aparecendo em janelinhas de videochamadas, temos tido mais contato com a nossa própria imagem. Aumenta, portanto, a pressão estética para estarmos sempre belas – e prontas – para qualquer reunião virtual. Queremos sair bem na selfie e na webcam. Porém qual o limite entre uma insatisfação natural e um distúrbio sério?

Um problema imaginário

Em 1886, o Transtorno Dismórfico Corporal foi descrito pela primeira vez na bibliografia médica pelo psiquiatra italiano Enrico Morselli. A condição seria reconhecida pela Associação Americana de Psiquiatria e incluída pela primeira vez no Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais, o DSM, quase um século depois, em 1980.

“É um transtorno neuropsiquiátrico que causa uma preocupação extrema com defeitos percebidos no corpo, que podem ou não ser notados por outras pessoas. O paciente não vê a harmonia do todo, apenas os detalhes e a assimetria, que pode nem existir”, explica a psicóloga Maria José Azevedo de Brito Rocha, uma das autoras do livro Transtorno dismórfico corporal: a mente que mente (2018, Editora Hogrefe). “Envolve comportamentos obsessivos, sofrimento clínico e perda psicossocial. Como esses pacientes gastam muito tempo se olhando, procurando procedimentos estéticos, as suas relações ficam comprometidas.”

De acordo com dados da Fundação Internacional de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, projeto que atende pessoas com o problema, por volta de uma a cada 50 pessoas do mundo tem o transtorno dismórfico corporal. Homens e mulheres sofrem com a síndrome na mesma proporção, porém os jovens, dos 15 aos 30 anos, são os principais afetados.

Não é uma questão de beleza ou feiúra, vaidade ou autoestima baixa. “É uma vivência angustiante, que leva à autorreferência. A pessoa pensa: ‘Olha como sou medonha, está todo mundo vendo como sou horrível’”, diz a especialista. “Parece até um pensamento delirante, mas eles não têm uma crítica do estado. Não percebem que não existe um defeito ou que essa falha não tem essa dimensão toda.”

O transtorno pode se manifestar de diversas maneiras. A publicitária Nathália*, 36 anos, não gostava de aparecer em fotos quando era adolescente. “Já cheguei a seguir o fotógrafo de festas, de casamentos, para garantir que ele deletaria alguma imagem que tivesse feito de mim”, narra. Não levantava a mão na sala de aula para evitar chamar a atenção. “Tentava simplesmente sumir para evitar que as pessoas olhassem muito para mim”, afirma.

“É injusto esse julgamento baseado na imagem da câmera, porque normalmente não estamos olhando frontalmente, mas sempre um pouco para baixo. Isso dá mais sensação de flacidez, aumentam as sombras no rosto.”

Na vida adulta, ela foi diagnosticada com o Transtorno Dismórfico Corporal e melhorou a relação com a sua imagem. Porém ainda não é fácil. “Não sei o que o engatilha, mas tem manhãs em que me olho no espelho e sei que o dia vai ser ruim. porque só consegui reparar nos meus defeitos.”

Os sintomas do transtorno são variados: os pacientes acham que, se não prestarem constantemente atenção ao que julgam ruim, isso pode aumentar. Evitam interações sociais ou se camuflam, porque acreditam que todos estarão olhando para a sua “falha”. “Eles não se reconhecem. É como se existisse uma distância muito grande entre a imagem e o corpo. É um produto mental que é deslocado para ele e se torna uma questão física. Por isso, esse defeito deve ser ‘corrigido’. São reféns da própria aparência”, complementa Maria José.

Lente de distorção

Por mais que plataformas de reuniões remotas tenham ficado mais frequentes durante a pandemia, o conceito de “dismorfia” causada por essas ferramentas não é algo novo. Em 2019, os cientistas da Universidade de Boston, dos EUA, já haviam percebido que jovens e adolescentes estavam procurando procedimentos estéticos para ficarem semelhantes a filtros de Instagram. Na época, elas criaram o termo “dismorfia do Snapchat”.

No entanto, ferramentas como o Zoom, Google Meet e Microsoft Teams também fizeram com que muita gente ficasse ciente de “defeitos” que antes não percebiam. “É muito comum que pacientes digam que nunca tinham notado algo antes da necessidade de fazer a videochamada”, fala a cirurgiã-plástica Renata Vidal, de Recife.

Segundo ela, pacientes jovens pedem mais intervenções no nariz e lábios, enquanto os mais velhos relatam insatisfação com os olhos e a sensação “de que o rosto está derretendo”. “Eles não percebiam tanto isso ou não se olhavam tanto antes das videochamadas. Muitos dizem que fazem as reuniões virtuais com a mão apoiada no rosto e no queixo para dar uma puxada”, conta Renata Vidal.

Antes de prosseguir ou sugerir qualquer intervenção, a médica tenta relembrar o paciente de que aquilo que ele vê na telinha da sala de reunião não é uma representação exata dele na vida real. “É uma imagem com distância focal que distorce as proporções. Sempre vai ter um alongamento da face, o nariz parece maior e mais achatado, os olhos parecem mais próximos. São distorções na imagem”, afirma a médica. “É injusto esse julgamento baseado na imagem da câmera, porque normalmente não estamos olhando frontalmente, mas sempre um pouco para baixo. Isso dá mais sensação de flacidez, aumentam as sombras no rosto.”

Maria José diz que, sim, o Zoom evidencia a dismorfia, mas não é o causador do problema. “A verdade é que somos todos dismórficos, a insatisfação é normativa. Sempre queremos mudar uma coisa ou outra. É um aspecto do ideal contemporâneo, em que queremos ter o rosto do Instagram, com lábios carnudos, maçãs de rosto proeminente”, declara a psicóloga. “O Zoom, no entanto, potencializou a atenção ao defeito, ao detalhe, e a vontade de corrigi-lo. Ele evidencia as insatisfações normativas. É muito tempo que ficamos olhando para nós pelas lentes de uma câmera.”

Quando percebemos, então, que essa insatisfação já não é a norma? “O grau de sofrimento é o termômetro”, adverte Maria José. “O Zoom é uma nova forma de relação. O quanto você se deixa afetar por ele? Se for muito angustiante, a pessoa precisa procurar a terapia. Investigar por que há tanta dificuldade em se relacionar com a própria imagem”.

Para desconstruir

A dermatologista Luciana Conrado escreveu a tese de doutorado Prevalência do transtorno dismórfico corporal em pacientes dermatológicos e avaliação da crítica sobre os sintomas nessa população, em 2008, porque se sentia em conflito. “Ficava angustiada quando chegava um paciente que dizia precisar de um procedimento que não era indicado. Se eu fizesse a intervenção, seria um desserviço como médica”, diz.

Desde então, procura manter uma relação de confiança e sinceridade com os seus pacientes. “É difícil classificar o limite entre uma insatisfação e o transtorno dismórfico corporal”, confessa Luciana. Assim, quando ela percebe que esse limiar pode estar sendo excedido, tenta criar uma conversa sobre o problema de imagem da pessoa. “Tem que ser com muita delicadeza.”

Tanto Luciana como Renata dizem que se negam a fazer procedimentos caso julguem o desejo do paciente descabido ou irracional. Ambas as profissionais acreditam que a informação e o esclarecimento são importantíssimos para evitar intervenções que trarão mais malefícios psicológicos do que benefícios. “Quando explico para um paciente que ele não é o que vê na câmera, e falo da distorção que a lente causa, ele fica muito aliviado”, complementa Renata.

A psicóloga Maria José ainda diz que, em casos leves e moderados do transtorno, os pacientes podem ser beneficiados pelos procedimentos estéticos. “O tratamento estético pode ser um coadjuvante ao acompanhamento psicológico. Antigamente, o TDC era um critério de exclusão, mas foram feitos estudos que mostraram que houve uma significativa melhora nesses pacientes”, diz. Os casos mais graves, no entanto, devem ter ajuda psiquiátrica e ficar muito longe da sala do cirurgião plástico. “Porque não vai adiantar. Eles nunca vão ficar satisfeitos o bastante. Apenas o tratamento medicamentoso pode trazer uma melhora verdadeira.”

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