Demorei para assistir Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo. Tenho preguiça de filmes sobre realidades e universos paralelos, intertemporalidade, essas coisas. Metafísica nunca me desceu bem. Outra coisa que me dá preguiça é polemiquinha de rede social sobre quem fez primeiro, quem copiou quem. Como se originalidade existisse e criação acontecesse no vácuo.
Não digo que amo o vencedor do Oscar de melhor produção longa-metragem. Porém, preciso deitar, é genial. Roteiro, edição/montagem, fotografia e direção de arte principalmente. É uma reprodução fantástica precisa e, sobretudo, honesta de como se consomem, assimilam, interpretam, reproduzem e criam informações, imagens, tudo. Tudo mesmo.
O título me lembrou uma expressão que já escrevi muito: tudo junto ao mesmo tempo. Às vezes, sem os espaços para enfatizar a aceleração simultânea: tudojuntoaomesmotempo. Se fosse especialmente relevante, ganhava um “agora” no final. Tudojuntoaomesmotempoagora. Com certeza, usei essa aglutinação de palavras para falar de alguma coleção da Amapô, quando a marca de Carô Gold e Pitty Taliani desfilava na São Paulo Fashion Week. Devo ter escrito também em algum texto sobre a Gucci de Alessandro Michele. Seria adequado. Para Raf Simons, seria mais ainda.
A junção sincronizada de muitos e tudo é um reflexo dos nossos tempos. Tem até um livro sobre isso, chama Collage culture. Ele consiste de dois ensaios, um de Mandy Kahn e o outro de Aaron Rose. De forma resumida, eles argumentam que, no século 21, nada do que se cria é novo. No lugar da inovação, temos uma grande colagem de elementos, referenciais, recortes, edições, fragmentos, memórias e visões de algo já existente. Como exemplo, Kahn cita a técnica de sampleamento na música. Aquela mistura de batidas, ritmos e melodias de composições distintas. Aaron evolui para a ideia de que esse modelo acaba com a identidade. Afinal, vivemos como uma colcha de retalhos.
Com todo respeito aos autores, é um entendimento um tanto drástico, purista, absolutamente impreciso. E não sou só eu que pensa assim. O cineasta Jim Jarmusch também. Em uma entrevista para a revista MovieMaker, em 2004, ele disse: “Nada é original. Roube de qualquer lugar que ressoe com sua inspiração ou sirva de combustível para sua imaginação. Devore filmes antigos, filmes novos, música, livros, pinturas, fotografias, poemas, sonhos, conversas aleatórias, arquitetura, pontes, placas de rua, as árvores, as nuvens, as massas de água, luz e sombra. Selecione para roubar somente coisas que falam diretamente com sua alma. Se você fizer isso, o seu trabalho (e o roubo) será autêntico. Autenticidade é inestimável, originalidade é inexistente. E não se preocupe em esconder seu roubo – celebre-o se você sentir vontade. Em todo caso, lembre-se sempre do que Jean-Luc Godard disse: ‘Não é de onde você pega as ideias, mas para onde você as leva’”.
Os roteiristas e diretores de Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, com certeza não se preocuparam em esconder seus roubos. Seguindo a cartilha de Jarmusch, eles os celebram. E, como ensinou Godard, os levam para multiversos fantásticos. Respire fundo: Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Quero ser John Malkovich, Matrix, Caça fantasmas, qualquer produção da franquia Marvel, O tigre e o dragão, Dia da marmota, Boneca russa, Interestelar, Kill Bill, Karate kid, Crazy rich asians, 2001: Uma odisséia no espaço, O máscara, Carol, Magnolia, Carrascos de Shaoling, Senhor dos anéis, Ratatouille, Os Goonies, Amor à flor da pele, Exterminador do futuro. Essas são apenas algumas das muitas referências presentes e expostas, sem vergonha, no longa.
Cena do filme Amor à flor da pele e, ao lado, cena de Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo. Foto: Divulgação
Nos últimos anos, a caça por referência virou um hobby nas redes sociais. Não raramente, com viés acusatório. O Diet Prada, um perfil no Instagram criado em 2014, ficou famoso ao expor supostos casos de plágio. Vira e mexe, aparece alguém no Twitter alegando ter sido copiado por não sei quem.
Já recebi DM de um estilista indignado com a loja nova de uma colega de profissão. Segundo ele, era parecida demais com a sua própria, inspirada nas casas de barro e pau a pique de várias regiões brasileiras. No WhatsApp, uma outra designer pedia apoio para expor o perfil de uma criadora gringa, que teria se apropriado das tranças, usadas como elementos centrais na coleção da brasileira. Mais recentemente, uma marca compartilhou o vídeo da apresentação de uma etiqueta internacional na última semana de moda de alta-costura. Era a entrada final, e o look (inspirado em Nossa Senhora Aparecida) e a trilha sonora eram idênticos aos de seu desfile. Ok, aí sim. Nem tem como argumentar.
Porém, no geral, é complicado definir o que é cópia do que é semelhança ou coincidência improvável. Fica mais complicado ainda num mundo e período em que somos expostos aos mesmos estímulos visuais, muitos deles programados matematicamente por algoritmos de acordo com nossos comportamentos. Das redes sociais ao serviço de streaming, e até aquela busca inocente no Google. Não à toa, as leis de propriedade intelectual e direitos autorais sobre vestuário e acessório são pouco específicas.
Entendo a indignação. Sinto coisa parecida quando vejo texto meu replicado sem o menor esforço no parafraseado. No entanto, tenho consciência de que escrevo sobre fatos, acontecimentos reais, ideias que estão no ar em determinado momento e contexto. São assuntos ou objetos de estudo, disponíveis para todos. De livre acesso. Roubando de Godard, o que muda é a interpretação, o ponto de vista, a análise, a mensagem final.
Do mesmo jeito, a referência X, a inspiração Y, o mood Z, que podem servir de faísca criativa para uma coleção, não surgem do nada, tampouco são exclusivos. Como reivindicar a autoria sobre a interpretação particular de um elemento comum e acessível? Como patentear elucubrações estilizadas sobre fragmentos da cultura popular regional? Não dá para privatizar o que é de domínio público, menos ainda cultura popular.
Pintura de Andy Warhol inspirada na arte etrusca, na Fondazione Luigi Rovati, e escultura do séc. 4 a.C, presente na exposição Recycling Beauty, na Fondazione Prada. Foto: Divulgação
E isso não é novidade não, tá? Em Milão, fui a uma exposição na Fondazione Luigi Rovati sobre arte etrusca e sua influência em artistas e designers contemporâneos. A mostra começa com peças antiquíssimas, tudo de antes de Cristo, pontuadas por uma obra do século 20 nada dissonante. Ao percorrer o espaço, a proporção é invertida. Tem até uma tela de Andy Warhol inspirada na pintura de um vaso etrusco.
A atual exposição da Fondazione Prada, Recycling beauty, tem conceito similar (olha aí os mesmos estímulos provocando reações distintas). Miuccia explica: “Junto aos curadores e Rem Koolhaas, que desenhou o layout da mostra e contribuiu para o desenvolvimento do projeto, tomamos como ponto de partida a questão atual da reciclagem de coisas e materiais, mas também da inspiração e a reelaboração de ideias. O objetivo é entender como o contexto e o tempo foram relevantes para obras de arte, objetos e coleções na história. A serialidade, a reutilização criativa e a apropriação na arte estão intimamente ligadas à nossa concepção de modernidade e atestam a persistência de certos valores, categorias e modelos clássicos. Como o futuro, o passado é um conjunto de teorias, suposições e interpretações. O que por definição parece estático está, na verdade, em constante diálogo conosco, que decidimos sua destruição, preservação ou desenvolvimento com base na oportunidade, na necessidade ou no desejo de fazer ou contar algo novo”.
Faz sentido, não? Neste vídeo, John Galliano detalha com esmero como tal pensamento se aplica à moda.
Porém, embalados pela jurisprudência nada justa dos tribunais das redes sociais, criou-se um modo simplista de pensar, enxergar e interpretar. Não só a criação é enquadrada num modelo irreal de isolamento de interferências externas, como outras variantes são desconsideradas por completo.
Uma delas é o fornecimento de tecidos. É comum uma mesma tecelagem vender seus produtos para diferentes marcas, até para marcas concorrentes. Além disso, o desenvolvimento desses materiais está sujeito aos mesmos estímulos e influências atuantes sobre quase todo mundo. Claro, é possível garantir exclusividade na compra. Basta pagar. Ou permitir que aquele mesmo produto possa ser comercializado com pequenas modificações.
Neriage, verão 2022, e bolsa Prada. Foto: Divulgação
Quando a diretora de criação Rafaella Caniello começou a esboçar a coleção de verão 2022 da Neriage, ainda no primeiro semestre de 2022 (o desfile aconteceu em novembro daquele ano), escolheu um tecido com padronagem triangular de preto e bege, ou preto e rosa. Meses depois, a Prada lançou uma série de acessórios feitos de material similar, com desenhos mais parecidos. E aí? A Prada copiou a Neriage? A Neriage copiou a Prada? Ou ambas gostaram de uma mesma oferta?
Na temporada seguinte, rolou outra coincidência. Rafaella usou chapéus de palha, feitos artesanalmente em colaboração com o Projeto Akra, não muito diferentes dos que a Jacquemus apresentou algumas semanas adiante.
Na mais recente temporada de desfiles, a de inverno 2023, não faltaram ideias, recursos, silhuetas e modelagens já vistos por aqui anos antes. Alexandre Herchcovitch, por exemplo, fez questão de colocar lado a lado suas roupas que mudavam de cor, desfiladas no ano 2000, e as apresentadas em março pela marca Anrealage. Teve ainda as peças vestidas e construídas com as costas na frente (como na Prada), os enchimentos tubulares (como na Bottega Veneta) e mais um tanto de cruzamentos.
Desfile de Alexandre Herchcovitch, no ano 2000, e apresentação da marca Anrealage, na mais recente semana de moda de Paris. Foto: Divulgação
Teve quem visse os posts como denúncias de cópias. Pode até ser. Pode ser também uma chamada para um olhar mais cuidadoso sobre a produção nacional. Durante muitos anos, houve o entendimento de que a moda feita no Brasil era um pastiche do que se via acima do Equador. O pensamento ficou tão enraizado que muita gente ainda ignora a criação brasileira ou esquece de colocá-la em perspectiva na hora de analisar as propostas internacionais.
Dia desses, uma jornalista postou a capa de uma publicação europeia em sua conta do Instagram, dizendo, na legenda, como seria bom se as revistas nacionais fizessem igual. Era uma capa com uma única chamada de texto, só foto e uma ou duas palavras. Acontece que quase todos os títulos de moda nacionais empregam tal conceito há pelo menos um ano.
Sabe a história de que as coleções internacionais de inverno 2023 pisaram no freio, cortaram excessos e apostaram em simplicidade, como roupas funcionais, pau para toda obra e, acima de tudo, vendáveis? Rolou por aqui meses antes. É só dar uma busca neste site por SPFWN54 para tirar a prova.
Parece uma maluquice sem conexão nenhuma, eu sei. Não é. É que é difícil abrir mão do entendimento simplista de criação, aquele que ignora sobreposições, misturas, recortes e colagens. Apontar o dedo para o tal copiador sem criatividade é mais divertido, dá uma sensação de poder. No entanto, é uma ilusão, uma negação. E vai contra nossa própria construção de identidade. Ou você acha que sua personalidade não está sujeita a interferências mil?
Já que começamos na pegada cinematográfica, vamos terminar com outro filme, o documentário de 1989 Notebook on cities and clothes, de Wim Wenders. Nele, o diretor examina a onipresença da imagem digital e como ela muda a forma como as pessoas se definem. Diferentemente dos autores de Collage culture, para o cineasta, a identidade é mais interessante quando indefinida, tipo um livro aberto onde se escrevem memórias, desejos futuros e acontecimentos presentes.
“A própria palavra (identidade) me dá arrepios. Ela ressoa calma, conforto, contentamento. Mas o que é isso, identidade? Para saber onde você pertence? Para conhecer o seu valor próprio? Para saber quem você é? Como você reconhece a identidade?”, questiona Wim Wenders. Não precisa responder, não. Melhor assim.