SPFW sem filtro: Angela Brito, Neriage, Ponto Firme e LED.
Com uma tentativa de filtragem falha, voltamos aos percalços da semana de moda e algumas das coleções mais interessantes da temporada.
Eu bem que tentei. Juro! Porém, pelo bem do bom jornalismo, do jornalismo verdade, não deu para segurar. Passei um tempo sentado numa cadeira de plástico, meio escondida entre os banheiros do salão de entrada do Auditório Ibirapuera, tentando começar esse texto sem parecer rabugento, mal-humorado ou reclamão (sou tudo isso, mas sei lidar). Até que me dei conta que estava fazendo justamente o oposto do que se propõe esta seção sem filtro.
Então vamos lá: de quem foi a infeliz ideia de agendar um desfile às 20h, na Mooca, e outro às 21h30, no Ibirapuera? Detalhe: eram as duas últimas apresentações do dia. Ou seja, as chances de dar ruim não eram poucas. E deu. Meia hora depois do horário marcado, ainda tinha modelo despencando da zona leste para o parque.
Nada contra ter eventos espalhados pela cidade, até prefiro. É assim em Nova York, Milão e Paris (sem deslumbres, tá?). Dá todo um outro contexto para a semana de moda. Mas é São Paulo, né? A locomoção nem sempre é fácil e rápida por aqui. E tudo bem, só organizar direitinho.
Se fosse assim, com certeza teria mais gente bem-humorada e menos desesperada para ir embora no desfile deslumbrante de Lenny Niemeyer, agora em parceria com o estilista Leandro Benites. Por sorte, temos um editor de beleza declaradamente apaixonado pela estilista ao ponto de ser inabalável pelos percalços de uma semana de moda um tanto bagunçada. Com vocês, Pedro Camargo:
“É raro ver dois designers em tão perfeita simbiose. A dobradinha de Lenny e Leandro é um exemplo muito refinado desse tipo de exercício criativo. As curvas dos maiôs dela namoram as curvas dos vazados dele, e tudo isso dentro do Auditório Ibirapuera, desenhado por Oscar Niemeyer.
Qual seria o figurino de uma pool party de luxo na lua? Alguns dos looks dessa coleção parecem ser a resposta para essa pergunta. Os desenhos sinuosos da dupla de estilistas arranjam mil e uma maneiras de contornar os corpos das modelos. São espirais e mais espirais que, a cada momento, lançam mão de uma técnica de moda diferente. Isso sem falar na crescente das cores: o desfile começa todo branco, passa pelo azul cobalto e termina numa explosão multicor. Lindo!”
Apesar do (meu) mimimi, o quarto dia da São Paulo Fashion Week foi um dos mais interessantes da temporada, pois foi também um dos mais contrastantes. Começou com Angela Brito, no shopping Iguatemi.
“O desfile da cabo-verdiana é uma boa aula de como transformar referências locais e lembranças pessoais em desejos globais”, escreveu a redatora-chefe Renata Piza. Não à toa, o nome da coleção é Estrangeira, e parte dos deslocamentos vividos pela estilista e outras tantas pessoas, em especial as do continente africano.
Esta é a segunda coleção de Angela inspirada em vivências pessoais. Na anterior, ela falou sobre as memórias de infância na casa dos pais, em Cabo Verde, para onde viajou e ficou mais do que o previsto devido a restrições sanitárias da Covid-19. Agora, de volta ao Brasil, é como se a viagem de retorno tivesse desencadeado mais um tanto de recordações.
O mais interessante é observar a mestria da estilista na condução do tema. Nada é literal ou sobrecarregado conceitualmente. Sua roupa sempre prezou por uma certa funcionalidade, muitas delas, aliás, podem ser usadas de maneiras diferentes. Essa qualidade volta de maneira marcante nesta coleção, ainda que com algumas construções um tanto complexas demais para o propósito prático. Mas são deslizes pontuais e, no geral, seu trabalho minucioso e bem manual salta aos olhos.
Na sequência, e já com quase 1h30 de atraso (falei que eu era chata), veio Rafaella Caniello, da Neriage. O que a gente viu foi não só a melhor coleção da estilista, como também uma das mais bem executadas dessa 54ª SPFW (pelo menos até agora). Sabe aquela história de um produto de luxo feito no Brasil? Pois bem, tá aí.
Ou quase. É que nem tudo que a estilista usa é feito em solo nacional. Ainda assim, suas roupas são quase todas feitas dentro de casa, numa oficina de costura montada pela marca no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Numa conversa pré-desfile, Rafaella e sua sócia, Laura Cerqueira Leite, falaram mais sobre a importância desse movimento de verticalização da produção.
Nesse bate-papo, com direito a alguns goles de cachaça de jambu (é uma longa história), a diretora-criativa comentou também sobre a especificidade do seu produto. A roupa da Neriage não é fácil. É também cara, por N motivos: custo dos tecidos de alta qualidade, produção em pequena escala, trabalho manual e por aí vai. Sempre foi assim, mas agora todos esses predicados crescem bastante.
Tem um vestido tomara que caia preto, por exemplo, que parece simples. Acontece que a construção é toda baseada em técnicas de alfaiataria, com pregas e pences discretas, que fazem toda a diferença no caimento da peça. E isso é bem complexo – e difícil. Como disse o editor de moda da ELLE, Lucas Boccalão, “tem muito estilista há anos no mercado que não consegue fazer um tomara que caia tão bem feito”.
E isso sem falar nos looks de seda, a mesa usada pela Hermès para fazer seus lenços. Rafaella tem uma quedinha especial por materiais mais encorpados. Principalmente aqueles que ela pode plissar, preguear, dobrar e drapear. Uma crítica antiga era que suas roupas pesavam horrores. Não mais. O inverno 2023 da Neriage tem vestidos de seda, tipo camisolas com alcinhas finas, porém finalizadas com laços nas costas, bem maravilhosas. E com recortes e costuras que conversam com a alfaiataria do resto da coleção.
Depois de um verão mais casual, street até, o inverno retoma a essência da marca com excelência máxima. A praticidade da temporada passada continua presente, porém junto a propostas mais elaboradas, texturas intrincadas (um novo tipo de plissado, um jacquard com desenhos desérticos), tecidos nobres (como o veludo de seda do final) e acessórios de palha. Falando neles, os chapéus e bolsas foram feitos artesanalmente em colaboração com o Projeto Akra, dedicado a treinar artesãos da Bahia, Maranhão e Madagascar e conectá-los com marcas de moda.
De volta às roupas, os plissados tão característicos de Rafaella agora ganham uma nova versão, mais intensa e um pouco estruturada, mais juntinhos. As dobraduras e pregas aparecem pontuais, em sobressaias ou nas mangas. E a alfaiataria fica ainda mais afiada, cortada com extrema atenção. É um produto de qualidade rara no mercado atualmente, fruto daquele investimento de verticalização que já falamos mais acima.
Na saída do desfile, tinham umas pessoas falando “isso sim é moda. Moda com M maiúsculo”. Adoro ouvir essas coisas. Acho engraçado. Qual é a justificativa para a caixa alta? Por que aquilo e não outra coisa é digno de ser considerado moda. Aliás, como funciona esse conceito, hein? Para mim, o que torna esse métier (ui, ui, ui) interessante é justamente essa interpretação aberta.
Para Gustavo Silvestre, estilista responsável pelo projeto Ponto Firme, a moda é uma ferramenta de transformação. “Nesta temporada, o estilista decidiu pesquisar mais a fundo o crochê, trabalho manual que é a essência da marca, que começou e ainda é um projeto de capacitação para pessoas em situação de vulnerabilidade — transexuais, refugiados, detentos e egressos do sistema penitenciário”, escreveu o editor Gabriel Monteiro.
“Nessa busca pelas raízes do artesanal, o designer chegou, aos povos originários, os grandes donos dessa terra que conhecemos como Brasil. Mais especificamente, Gustavo alcançou em suas pesquisas os Mantos Tupinambás, tramas feitas há centenas de anos.
Para auxiliar na construção da coleção, o estilista convidou a também designer Day Molina, da marca Nalimo, para assinar o styling nesta temporada. Outro nome fundamental para o todo foi o da pesquisadora Célia Tupinambá, apresentada em um vídeo antes do desfile, e que tem como principal pesquisa o resgate desses mantos.
Fato curioso é que existem apenas onze desses artefatos históricos no mundo e, infelizmente, todos não estão mais no Brasil. Essa riqueza, porém, não é tratada de forma literal na coleção, que segue incorporando materiais inusitados e contemporâneos ao crochê. As penas que decoram o traje tradicional foram trocadas por miçangas, correntes, celofane e até pequenos espelhos. Bonito ver esse olhar de hoje para um passado que precisamos resgatar. Fora isso, trata-se do casting mais indígena da temporada até agora, com a presença de modelos como @noahalef, @dandarajqueiroz e @emillynunes.”
Na LED, moda é uma válvula de escape emocional e autofalante para questões sociopolíticas bem urgentes. A repórter Giuliana Mesquita conta mais, ó:
“Quem conhece a moda da LED sabe que o estilista Célio Dias é um pouco emocionadinho, como o próprio gosta de definir. Se no último desfile ele escreveu uma carta de despedida para um desamor, nesse ele abraça ainda mais sua sofrência com uma coleção que homenageia o feminejo, o interior de Minas Gerais, onde nasceu, e Marília Mendonça.
Essa estética aparece com a carinha da marca: tem estampas que ilustram um amor LGBTQIA+ sertanejo e outras que imitam toalhas de mesa do interior, além de chapéus de cowboy com franjas que cobrem os olhos e os tradicionais crochês da marca em sungas, vestidos e tops coloridos. Há também uma parte enxuta de jeans, novidade para a etiqueta.
O desfile também é permeado por menções políticas, como as camisetas estampadas com ‘o Brasil no futuro será fabuloso’, ‘antifa’ e ‘meu mito sou eu’. Na trilha sonora, tem Célio em si misturando o sofrimento de um coração que sente demais com um lado bem afrontoso. Ao fim da apresentação, a deputada federal Erika Hilton entra na passarela com um terno vermelho e uma faixa presidencial feita de crochê.
Célio nunca foi de não se posicionar. Suas coleções descrevem suas vivências como homem gay e todo o seu redor, além de sua veia política cada vez mais presente. No último desfile, não custa lembrar, ele entrou com uma toalha do Lula na fila final. Não que isso não venha sem nenhum pesar. Depois daquele ato, alguns patrocinadores pularam fora. Complicado, ainda mais para uma marca independente. Mas para a LED, alguns valores são inegociáveis — e incensuráveis. Ainda bem.”
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