A “cópia” da Prada, a festa de JW Anderson que nunca aconteceu e autenticidade

Na semana de moda masculina de Milão, duas apresentações representam bem os desafios e limitações de marcas, criativos e todos nós.


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Foto: Reprodução



Antes de começar esta coluna, gostaria de fazer uma recomendação: avancem o vídeo abaixo até 1h19min e prestem atenção ao texto.

Parte dele é uma citação do cineasta Jim Jarmusch, e para quem ficou com preguiça de assistir, aí vai a transcrição: “Nada é original. Roube de qualquer lugar que ressoe com sua inspiração ou sirva de combustível para sua imaginação. Devore filmes antigos, filmes novos, música, livros, pinturas, fotografias, poemas, sonhos, conversas aleatórias, arquitetura, pontes, placas de rua, as árvores, as nuvens, as massas de água, luz e sombra. Selecione para roubar somente coisas que falam diretamente com sua alma. Se você fizer isso, o seu trabalho (e roubo) será autêntico. Autenticidade é inestimável, originalidade é inexistente. E não se preocupe em esconder seu roubo – o celebre se você sentir vontade. Em todo caso, lembre-se sempre do que Jean-Luc Godard disse: ‘Não é de onde você pega as idéias, mas para onde você as leva'”.

A semana de moda masculina de Milão, que aconteceu entre os dias 14 e 17 deste mês, quase passou despercebida não fosse o post do Diet Prada alegando que a Miuccia Prada e Raf Simons teriam roubado Demna Gvasalia. É que algumas roupas do inverno 2022 da Prada são bem parecidas com outras que Demna fez para Balenciaga, marca da qual é diretor criativo. Mas a discussão (pelo menos da maneira como foi desenrolada) fala mais da falta de informação e superficialidade da comunicação em tempos de desespero digital do que de plágio.

Cópia, autoria e originalidade são conceitos difíceis de se aplicar a estilos, silhuetas e mais um tanto de trabalhos artísticos – ainda mais em meio ao bombardeio imagético e de conteúdo de agora. Os casacos de couro com ombros estruturados da Prada são, de fato, similares aos designs do estilista georgiano. Do mesmo jeito que muitos ternos de Demna parecem com a alfaiataria de Claude Montana, que por sua vez lembrava outros criadores dos anos 1940, os quais também deviam ter suas próprias inspirações do passado. Não teriam todos uns 100 anos de perdão? Afinal, ladrão que rouba ladrão…

Tem quem questione se uma marca com histórico e identidade tão fortes precisava produzir peças tão próximas ao atual repertório de outra etiqueta. Ou ainda se Miuccia, sempre na contramão ou em via própria fez bem em se alinhar ao mainstream. Tendo a concordar. E também discordar. Me deixa. Essa é uma equação complexa. Mais uma vez, esbarra nas métricas e algoritmos de redes sociais, audiência, cliques, views e, por fim, compras.

Em defesa dos réus, Raf Simons já havia trabalhado com algumas dessas ideias anteriormente, vide as coleções de inverno 2001 e 2005 de sua marca própria ou de inverno 2012 masculino da Jil Sander, onde era diretor de criação. Miuccia também é rainha da autoreferrência. O desfile masculino da Prada naquela mesma temporada de inverno 2012 é quase uma prequela do mais recente. Ambos falam sobre a percepção ou projeção de poder por meio das roupas e contaram com atores para incorporar tais representações.

Desta vez, porém, há um recorte específico na narrativa. O inverno 2022 da Prada fala essencialmente sobre trabalho e sobre como as roupas usadas no exercício de diferentes profissões servem como demarcadores sociais. “A coleção celebra a ideia de trabalho – em esferas e significados diferentes”, disse Miuccia, em entrevista ao WWD. “É algo prático, cotidiano. Mas aqui você é formalmente importante. Você não é casual. Por meio dessas roupas, nós enfatizamos que tudo o que o ser humano faz é importante. Todos os aspectos da realidade podem ser elegantes e dignos.”

 

Valoração do trabalho, fator humano, mais-valia não são conceitos estranhos a Miuccia. A subversão ou exploração desses temas estão entre os principais pilares de seu trabalho. Agora, é como se ela quisesse transformar a percepção de tudo, tornar o macacão de um operário fabril, de um minerador ou de um cientista tão sofisticado e imponente quanto um terno de um executivo, banqueiro ou CEO.

Burlando hierarquias, a proposta é de uma utópica dignidade igualitária, um sonho futurista, uma sociedade imaginada. Roupas funcionais e utilitárias são construídas com técnicas de alfaiataria e tecidos nobres como couro e seda. Ao mesmo tempo, os ternos e sobretudos de ombros protuberantes e cintura marcada se somam à praticidade de blusas e calças de náilon e o conforto do tricô.

Antes de se tornar codiretor de criação da Prada, Raf Simons apresentou desfiles memoráveis para Calvin Klein sobre a representação de arquétipos sociais por meio do cinema e da cultura pop estadunidense. Sua paixão pelo cinema faz sentido, ainda mais quando consideramos o tanto que aquelas imagens balizam nossas vidas.

É com esse pensamento, de trazer rostos conhecidos e capazes de projetar personagens e vivências, que a marca convidou dez nomes de indústria do entretenimento para cruzar sua passarela: Thomas Brodie-Sangster, Asa Butterfield, Jeff Goldblum, Damson Idris, Kyle MacLachlan, Tom Mercier, Jaden Michael, Louis Partridge, Ashton Sanders e Filippo Scotti. “Atores são intérpretes da realidade, empregados para ecoarem a verdade através de suas representações”, consta no release da coleção.

O estudo e exploração da relação entre vestimenta, indivíduo e sociedade também fazem parte do processo criativo de Demna. Não foram poucas as vezes que ele falou sobre como suas pesquisas são quase uma análise antropológica. Entender ou traçar paralelos entre tais similaridades, contudo, não gera tanto engajamento. Se aprofundar em como e por que três estilistas de origens e vivências diferentes se dedicam tanto a um assunto ainda muito presente em nossas realidades também não dá tantos cliques. Vale mais garantir os likes com uma foto comparativa e legenda sensacionalista sem embasamento (e olha que eu concordo que a Prada já foi mais emocionante). Isso, diz muito sobre o que a digitalização a qualquer custo está fazendo com a criatividade, com o pensamento crítico, com a comunicação e até com as nossas relações.

A festa (e o desfile) que nunca aconteceu

Após quase dois anos experimentando com novos formatos de apresentação, o estilista Jonathan Anderson decidiu apresentar o inverno 2022 masculino de sua JW Anderson nos moldes tradicionais, com um desfile na semana de moda de Milão. A coleção recebeu o nome de A Festa Que Nunca Aconteceu e foi pensada como uma grande celebração – de sobrevivência e também de um novo momento da etiqueta, após algumas mudanças e muitas considerações nos meses de quarentena e lockdown.

Estava tudo praticamente pronto quando, dias antes do evento, a marca decidiu cancelar a apresentação e mostrar as novidades em vídeo. O motivo foi a escalada nos novos casos de Covid-19. A própria fashion week italiana quase não aconteceu devido ao boom de infecções causadas pela variante ômicron. Por isso, vimos um número reduzido de participantes nesta temporada. Muita grife preferiu pausar a produção e esperar por uma possível melhora sanitária.

 

De volta a JW Anderson, o filme foi gravado no Scala Theatre, espaço famoso por noites de loucurinhas, em Londres. Jonathan e sua equipe passaram um dia inteiro lá dentro, experimentando e “brincando”, nas palavras do estilista, com as roupas da nova coleção. Pensa num uniforme de futebol, só que todo de paetê. Ou então num suéter de tricô alongado, tipo um vestido, com desenhos de elefantes na trama. Tem ainda shorts tão curtos que chegam a se confundir com minissaias, bolsas em formato de pombo, tops feitos de tiras de borracha, croppeds com estruturas tubulares que passam por debaixo das pernas e vestidos de camisa polo.

É quase como um documentação visual de tudo que passou pelos olhos e mente do estilista e sua equipe durante os últimos dois anos. Em entrevistas, Jonathan falou que as referências vieram das mais variadas fontes: um documentário sobre o jogador de futebol Cristiano Ronaldo, vídeos de ASMR (muitas das roupas fazem barulho ao se movimentarem no corpo), tutoriais de maquiagem, obras de artes, lembranças (e saudades) de noites malucas em festas e buatchys e toda uma variedade de texturas manuais. Como tipificar tantos roubos? Tem como enquadrar algo que é surrupiado da nossa própria cabeça, algo que nem sabíamos que estava lá ou que foi colocado ali sem que percebêssemos? Não era tudo de domínio público?

 

Não vem ao caso nem faz sentido tentar mapear e explicar o porquê de cada uma dessas referências. O estilista parece estar mais interessado no acaso, no caos, na ingenuidade, na livre associação de elementos e ideias. “Como um time, nós queremos nos apaixonar de novo pela ideia de moda por meio de um processo quase primitivo de colocar as coisas juntas”, disse o designer, em entrevista ao The Business of Fashion.

São ideias que ecoam ensinamentos de Rei Kawakubo, da Comme des Garçons. A estilista já comentou sobre a importância de criar moda sem pensar em roupas propriamente ditas, de olhar as coisas do ponto de vista de uma criança e da completa desconsideração com as formas físicas e tradições do vestir. O verão 2022 da Loewe, marca espanhola da qual Jonathan Anderson é diretor criativo, foi um dos principais destaques da temporada justamente por seguir tais fundamentos.

Mais do que primitivo, trata-se de um processo pessoal e emocional. Um que anda bastante raro em tempos de algoritmos que quantificam tudo e todos. “É sobre encontrar alegria em viver a vida, e leva tempo para perceber que essas são as pequenas coisas que acabam numa passarela”, continuou o estilista, ao Business of Fashion

Podem ser roupas que você, eu e muita gente nunca vai usar. Podem ser peças que não agradam visualmente milhares de seguidores. Ainda assim, são itens que despertam interesse, criam conexões, memórias e engatilham toda uma variedade de sentimentos de uma maneira bem humana. Autêntica até. E autenticidade aqui não tem nada a ver com quem fez antes ou hitou primeiro. Tem a ver com alma.

Agradecimento especial a DRAH.

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