Casa de comida indígena serve ancestralidade e sabor em Manaus

Fundado por uma chef da etnia Sateré-Mawé e um antropólogo do povo Tukano, o Biatüwi vai além do conceito de restaurante tradicional: o espaço oferece uma rica imersão cultural e um cardápio para alimentar o corpo e para a alma.


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“Restaurante, não. Preferimos chamar de casa de comida indígena”, afirma Clarinda Ramos, indígena da etnia Sateré-Mawé, pedagoga, mestra em antropologia social, chef de cozinha e co-fundadora do Biatüwi, em Manaus. “O restaurante da forma comercial que conhecemos é um conceito de origem europeia que não existe na nossa cultura. Aqui, neste espaço, obedecemos à tradição do nosso povo de que a comida deve nutrir tanto o corpo quanto a alma”, complementa.

Localizada num casarão antigo em uma charmosa rua de pedras do centro histórico de Manaus, a poucos metros do Marco Zero, agora rebatizado de Aldeia da Memória Indígena, a casa já se mostra única por si só. A bem preservada construção colonial abrigou anteriormente uma loja de artesanatos indígenas, depois ficou um tempo fechada, até ser cedida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira para hoje encabeçar um movimento que coloca em prática a cultura dos povos ancestrais no contexto urbano.

Nesse oásis silencioso em meio ao frenesi da capital, os visitantes são recebidos no Bahserikowi – Centro de Medicina Indígena, que abre o espaço. Entre garrafadas, chás, ervas e artefatos e peças de arte, começa uma rica imersão cultural. “Aqui apresentamos a vivências e a cultura de duas etinias: Sateré-mawé, do Baixo Amazonas, e Tukano, do Alto Rio Negro”, detalha João Paulo Lima Barreto, o Yupuri, na língua Tukano, etnia a qual pertence. Mestre e doutor em Antropologia Social, foi João Paulo que, ao lado de Clarinda, idealizou tudo isso.

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Clarinda Ramos e João Paulo Lima Barreto: resgate das raízes indígenas no centro histórico de Manaus.Foto: Ivan Câmara

Seguindo pelo corredor do casarão, antes de alcançar a ala gastronômica mais ao fundo, o visitante é convidado a passar pela sala do Pajé para um atendimento. Vale ressaltar que, aos sábados, dia de maior movimento casa, a agenda é bastante concorrida e sempre há fila de espera para as consultas. “Recebemos gente de toda parte. As pessoas vêm em busca de benzeção, aconselhamento e curas para dores do corpo e da alma”, explica João Paulo.

A casa de comida indígena

Chegando aos fundos da casa, uma brigada uniformizada e bem treinada aguarda a clientela no salão, que segue os moldes de um restaurante convencional. Conseguir essa estrutura não foi simples, contam Clarinda e João Paulo. “Nós temos todo o conhecimento da floresta, mas não tínhamos o dinheiro e a estrutura para abrir um negócio no centro da cidade”, revelam. Foi quando conheceram a chef Débora Shornik, paulistana radicada em Manaus desde 2016, à frente do consagrado restaurante Caxiri, em frente ao Teatro Amazonas. Além de ajudar a viabilizar o investimento, Débora ajudou com treinamento da equipe de cozinha e salão.“O objetivo sempre foi dar o suporte, mas jamais decidir por eles. A ideia é que João Paulo, Clarinda e sua equipe contêm suas próprias histórias e de suas comunidades sem intermediários”, pondera a chef, que hoje atua como uma consultora dando suporte quando solicitado.

E que histórias! “Todos que trabalham aqui são indígenas que receberam treinamento profissional, tanto equipe de salão quanto de cozinha”, apresenta Clarinda, orgulhosa. “Quando saímos das nossas comunidades, deixamos para trás grande parte do que somos. Para conviver na cidade com os não indígenas, acabamos deixando de lado nossas práticas culturais. Essa cozinha, esse espaço, é o resgate de tudo isso”, emociona-se.

Na boqueta (janelinha de onde saem os pratos da cozinha), a típica campainha usada para chamar os garçons dá lugar a um simpático chocalho de palha. Dali mesmo é possível avistar um grande moquém, uma espécie de churrasqueira indígena feita de troncos de madeira verde, aqui adaptada para o uso na cozinha profissional. Nele são preparados os diversos peixes da fauna amazônica como o tambaqui, o pirarucu ou o matrinxã, que pode vir inteiro sobre a folha de cacau ou em pedaços puquecados. “A puqueca é uma técnica tradicional da nossa cultura. Nela, enrolamos os peixes em pacotinhos de folhas de cacau e depois assamos na brasa”, conta Clarinda. Para acompanhar, há sempre banana pacova assada na casca, farinha de mandioca do Alto Rio Negro, beiju e pimenta.

Esta última, aliás, a grande estrela da gastronomia dessas etnias e claro, do Biatüwi. “O ‘Biá’ no nome significa ‘pimenta’ na língua Tukano. Alimento sagrado para os povos do Alto Rio Negro, não pode faltar nunca. É usada para limpar, purificar e vitalizar o corpo, além de servir de conservante antisséptico natural para carne de caça e peixes. Ao mesmo tempo em que confere muito sabor”, ensina Clarinda.

pimentas na cumbuca

Pimentas defumadas no moquém.Foto: Ivan Câmara

Outro agente de sabor essencial aos pratos do Biatüwi e das etnias que o compõem, é o tucupi preto, feito a partir da lenta redução do tucupi amarelo, o suco da mandioca brava consumido em todo o Norte do Brasil. Riquíssimo em umami, seu preparo envolve dias de cocção em fogo de lenha até ser reduzido a um molho escuro, aveludado, intenso e defumado. É ele que, ao lado de pimenta Murupi, tempera a Quinhapira, caldo de peixe levíssimo e translúcido consumido no Alto Rio Negro. Servido sempre com beiju de tapioca, tem textura delicada oposta à da encorpada mujeca, em que o peixe é desfiado e engrossado com farinha.

caldo servido em tigela com pedacos de peixe

Quinhapira, caldo de peixe com tucupi preto.Foto: Ivan Câmara

Para ganhar ainda mais sabor, o tucupi preto pode ganhar o acréscimo de pimenta e formigas – que, aliás, são um espetáculo à parte. Muito consumidas pelos indígenas de toda região, elas se prestam como fonte de proteína e sabor, como se fossem uma especiaria com notas de cravo e gengibre. “Acreditamos que consumir formigas garante longevidade e vitalidade, além de ser muito gostoso”, explica João Paulo.

peixa assado na folha com formigas por cima

Peixe assado em folhas de cacau: as formigas acrescentam mais uma camada de sabor ao prato.Foto: Ivan Câmara

No cardápio, as opções de bebidas também incluem boas doses de ancestralidade. Há os fermentados originais como o aluá, feito de abacaxi, o tarubá, que parte da mandioca e o sapó, preparado com pó de guaraná ralado na língua seca do pirarucu, uma potente lixa natural (à venda na casa). A chef Clarinda destaca ainda que todos os ingredientes e matérias-primas usadas na cozinha são provenientes de comunidades indígenas familiares como forma de valorizar a floresta e os que vivem nela.

Passado o primeiro ano de vida, o Biatüwi comemora o sucesso entre a clientela, e seus proprietários querem seguir buscando o reconhecimento para a gastronomia indígena. “Queremos que nossa comida deixe de ser vista como exótica ou mal feita. Pelo contrário, viemos para mostrar que ela reflete toda uma cultura alimentar diária dos povos originários do Brasil e precisa ser valorizada e referenciada”, espera Clarinda.

João Paulo vai além. “Hoje, o casarão já pode ser visto como um espaço vivo, em constante transformação. Mas queremos mais. Queremos ocupar esse lugar com feiras, festivais de música, gastronomia indígena, com todas as nossas práticas culturais. O nosso principal objetivo é manter vivas as nossas culturas”.

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