Peru de Natal, um frangão metido à besta
Às vésperas da ceia, destrinchamos a jornada gastronômica dessa simbólica ave de festa.
Numa crônica extraordinária de Mário de Andrade (1893-1945), o pai do jovem narrador é retratado como o puro-sangue do desmancha-prazeres. No primeiro Natal depois de sua morte, o filho propôs uma ceia diferente da habitual, em que todos se empanturram de castanhas e monotonias.
Queria comer peru, um prato de festa para sua família, que deveria ser guarnecido de duas farofas, a gorda com miúdos, e a seca dourada na manteiga, num ritual de sensualidade, em que todos acabassem alagados de uma felicidade familiar.
No Brasil, o peru sempre ocupou um espaço delimitado e localizado no tempo associado ao Natal. Tem um posicionamento simbólico tão forte que não transcende. Ninguém tem coragem de destrinchá-lo, por exemplo, e fazer com que ele integre o universo doméstico do cotidiano. É como se destrinchá-lo significasse desmontar o peru de Natal.
Leia também:
Como preparar pernil assado e outros clássicos natalinos
Se escavarmos a história, num primeiro momento o peru surge no país acompanhado de elementos nacionais, como a própria farofa, um marcador forte da cozinha brasileira. Depois dos anos 1950, com a entrada da comida internacional e dos aparelhos domésticos, num cenário de modernidade, marcado pelo pavê, pelo estrogonofe, pelo coquetel de camarão, pelo uso de creme de leite e pela presença dos enlatados, há uma radicalização dessa comida de exceção, e o peru passa a ser combinado ao doce – compostas, abacaxis, ameixas, fios de ovos.
No momento em que o peru entra nesse registro americanizado, não sai mais. Passa a pertencer a esse lugar, da comida compartilhada restrita a ocasiões especiais, e se mantém, até hoje, confinado a ele. Costuma desempenhar uma certa função de teatralidade. Salvo raras exceções, é preparado inteiro e fatiado à mesa, num ritual carregado de exotismo.
Na Europa do século 18, no mainstream culinário, era associado a status social: demonstrava abundância e estava reservado ao chefe da família o ritual de cortá-lo em partes e dividi-las entre os convidados.
No Brasil, até a cerimônia que se constituiu em torno do abate do peru era marcada por dramaticidade. O bicho era dado vivo de presente na véspera da ceia. Quando começava a se acostumar com o quintal, abriam-lhe o bico e despejavam pinga goela abaixo. Já tonto de bêbado, desmontava-se molenga no chão e o degolavam na parte pelada do pescoço. O ritual de matar a ave, que reunia toda a família, era mais proveitoso do que o próprio bicho à mesa, que não passava de um frangão assado metido à besta.
No Dona Benta, a orientação era colocá-lo de ponta cabeça para depená-lo ainda quente, chamuscá-lo no fogo para tirar as penugens e esfregá-lo com fubá amarelo para que ficasse claro. Em seguida, a recomendação era acomodá-lo em vinho branco, vinagre, sal, alho, cebolas, alfavaca e pimentas, até o dia seguinte.
Sua principal força parece estar na ideia de exceção à qual se atrela – mais do que no sabor que é capaz de oferecer. Aliás, o tempero do peru industrializado é uma aberração: padroniza o gosto e destrói o principal marcador identitário da família.
Uns anos atrás, lembro de ter visto orientações da Rita Lobo de como destemperar o peru industrializado. É mesmo muito esquisito a gente renunciar ao tempero doméstico e adotar um gosto exógeno nas ceias de Natal. Um triste fim para o peru brasileiro nessa suposta ocasião de felicidade maiúscula, como diz Mário de Andrade.
Luiza Fecarotta é jornalista de gastronomia, pesquisadora da cozinha brasileira e professora de escrita.
Leia também:
Chefs provam que chuchu é chique
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes



