Sem álcool na balada? Você não está sozinho

Cada vez mais pessoas abrem mão dos estímulos etílicos e provam que os sóbrios também se divertem. Mas viver sem álcool ainda é um desafio social.


viver sem álcool
Ilustração: Barbara Marcantonio



Entre discussões sobre saúde mental, machismo e privilégios, um fato chamou a atenção nas semanas iniciais do BBB 24: a capacidade da participante Beatriz Reis de conseguir se divertir absurdamente na balada sem beber. Totalmente sem álcool.

Na primeira festa desta edição do reality show, Yasmin Brunet ficou boquiaberta com a informação de que a vendedora de 23 anos, que se jogou no pagode com o cantor Belo, só tinha bebido água e guaraná. 

Do lado de fora da casa, milhões de espectadores ficaram igualmente chocados. Mas também houve muita gente que se identificou com a diva do Brás: “Na festa, eu sou a Beatriz do BBB, danço horrores sem beber nada”, escreveu uma usuária do X, antigo Twitter. “Eu sempre achei que não beber no BBB seria um problema, mas a Beatriz é 200% eu: a mais animada e a mais sóbria de todas as festas”, escreveu outra.

As reações à animação sem álcool de Beatriz são uma boa amostra de um direcionamento já apontado por pesquisas há alguns anos: a geração Z (que engloba os nascidos entre 1995 e 2010) bebe menos do que as gerações anteriores.

De acordo com o Relatório Covitel, uma pesquisa sobre hábitos de saúde dos brasileiros, em 2023, a quantidade de jovens de 18 a 24 anos que bebem três ou mais vezes por semana caiu de 10,7% para 8,1%, em comparação à pré-pandemia. 

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A queda não é um fenômeno brasileiro: no Reino Unido, a terra dos pubs, diversas pesquisas apontam um declínio no consumo de bebidas alcoólicas pela gen Z. Nos Estados Unidos, um estudo de 2020 indica que o número de estudantes universitários que se declaram abstêmios pulou de 20% para 28% em dez anos. 

Uma maior preocupação com a saúde e o bem-estar, acentuada pelos anos de pandemia, somada a mais informação e ações de incentivo à redução do álcool, como o movimento Dry January (janeiro seco), são alguns dos motivos apontados por especialistas para explicar a tendência.

Os benefícios, de fato, são comprovados. Em 2019, uma pesquisa da Universidade de Sussex mostrou que 71% dos participantes disseram ter mais energia durante o dia e uma melhora no sono com uma dieta sem álcool. 

Parar de beber: um desafio social

Apesar dos números animadores, no entanto, quem tenta parar de beber ainda não encontra um caminho fácil. “É complicado. Se você não estiver grávida ou tomando medicação, as pessoas têm uma tendência a falar: ‘Toma só uma dose’”, diz a psiquiatra Debora Kussunoki, de São Paulo. “É como se você estivesse recusando a socialização. Temos uma sociedade bastante vinculada ao uso de álcool”, avalia.

E tamanha vinculação dificulta também a avaliação de quando se torna uma questão de saúde parar de beber. 

“Há variadas classificações: as pessoas que não bebem; as que têm consumo moderado; as que têm consumo episódico muito grande, como uma compulsão alimentar, ou seja, é a pessoa que não bebe todos os dias, mas, quando bebe, enfia o pé na jaca”, enumera a psiquiatra.

“Tem também o grupo de uso mais nocivo, que são as pessoas que já têm uma série de problemas. E, por fim, você tem a dependência mesmo da substância.” De acordo com a psiquiatra, com base em diferentes levantamentos, 75% das pessoas que fazem uso nocivo da bebida acreditam que bebem com moderação.

“Quem acaba tendo a percepção desse problema são as pessoas ao redor. O indivíduo começa a ter problemas no trabalho, de saúde, não consegue fazer nada que não tenha vínculo com o álcool”, diz Debora. Não à toa, um dos primeiros passos ao entrar para os Alcoólicos Anônimos é assumir que tem um problema para iniciar o tratamento. “Muita gente não assume, acredita que bebe só um pouco a mais”, relata Debora.

Será que estou bebendo muito?

Mas, afinal, qual seria uma quantidade aceitável para o consumo de álcool?

De acordo com os parâmetros divulgados pelo National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA), dos Estados Unidos, o consumo de álcool é considerado moderado quando se limita a até duas doses por dia para homens e uma dose por dia para mulheres.

“Em duas horas, se um homem beber mais do que cinco drinks, já passaria, por convenção, do que é considerável ‘ok’. Para a mulher, são quatro. O dano fisiológico do álcool para mulheres é mais agressivo do que para os homens”, explica Debora Kussunoki.

A psiquiatra destaca, no entanto, que uma relação complicada com o álcool, ou até mesmo a dependência, não tem a ver apenas com o número de doses. “Ela tem conexão com o prejuízo social, físico, financeiro e no trabalho: as consequências.”

Sem álcool e com prazer

Em 2021, a educadora sexual Clariana Leal resolveu fazer um detox de álcool de um mês. Desde então, ela nunca mais bebeu. “Eu queria testar e foi tão bom, apesar de estranho socialmente falando. Foi bom não viver aquele lugar ruim que eu estava com o álcool. Hoje não pretendo voltar”, diz.

Clariana começou beber aos 13 anos, quando fugia de casa para ir a festas com as amigas. Era comum passar mal, mas sempre conseguia voltar para casa antes dos pais acordarem. “Quando comecei a morar sozinha na época da faculdade, o álcool também fez parte da vida social. É uma ferramenta facilitadora, que desinibe, nos deixa mais corajosos e dispostos. Aos 18 anos, eu estudava cedo e matava aula para beber no bar e jogar sinuca. Se você acorda às seis da manhã e vai para o bar, talvez tenha uma questão”, relembra.

Aos 22, com o término de uma relação, começou a beber muito e quase todo dia. Foi ali a primeira vez que pensou em parar. “Frequentei o AA na época para entender e lembro que tinha muita vergonha. Meus amigos estavam todos bebendo, até da mesma forma que eu.” Ela era a única mulher nas reuniões, e a pessoa mais jovem.

“Fiquei constrangida e menti, disse que estava lá por causa do meu pai. Lá eu ouvi histórias pesadas, de pessoas que perderam suas famílias por conta do álcool, que moraram na rua. Saí com a sensação de que eu não tinha problema, que eu estava apenas sendo uma jovem inconsequente”, relembra.

O episódio que motivou o detox foi acontecer já perto dos 30 anos. Clariana foi a uma festa e, na hora de voltar, não conseguia chamar um carro por aplicativo, pois estava “muito bêbada.” Resolveu, então, pegar um táxi. “Eu estava apagada na corrida. Ele me deixou em casa e, na hora de passar o cartão, colocou a corrida por 2 mil reais. Eu estava tão doida que passei sem ver.”

Pouco tempo depois, resolveu fazer o detox de um mês sem álcool, que continua até hoje. A adaptação, porém, não foi tão simples. “Achei tudo um saco. Eu saía e odiava, não entendia. É um momento estranho. Eu bebia desde os 13 anos, então, nunca tive uma vida social sóbria, sendo que eu não uso mais nada. O álcool era a minha droga. Essa primeira vivência foi um choque, eu demorei uns seis meses até me acostumar.”

Com o tempo, Clariana começou a perceber as diferenças com a sobriedade, principalmente em relação às suas emoções. “Demorou muito até eu entender meu desejo, quem eu era flertando, porque o álcool era uma muleta para mim. Se eu via alguém, só conseguia chegar na pessoa se estivesse muito alterada. Além disso, me trouxe bem-estar. Eu saio e fico sem ressaca de três dias, sem preocupação em relação ao que eu fiz, disse ou com quem fiquei.” (leia também o texto Sexo, álcool e consentimento, escrito por Clariana Leal para a ELLE)

Nada inocente

Aceito e até estimulado socialmente, o consumo de álcool muitas vezes passa por “inofensivo” perante outras drogas. A diretora de produção de cinema Carolina Padilha, 42, teve essa percepção errônea.

Sóbria há três anos, ela fez uso de cocaína na adolescência, conseguiu abandonar o vício e ficou mais de uma década sem usar nada. “Lá pelos 30, quando comecei a trabalhar com cinema, tive um reencontro com o álcool. E essa relação se estreitou, mas eu achava que estava tudo certo, porque não tinha mais cocaína”, relembra.

Carolina explica que, com o álcool, chegou ao “fundo do poço”. “Hoje, sóbria, vejo como eu me escondia ali. O álcool era um antidepressivo, um estimulante, um abafador.” O seu uso abusivo contribuiu parcialmente com o fim de seu casamento e, anos depois, em uma nova relação, o assunto veio à tona novamente. “Aí, resolvi buscar auxílio. Liguei para um psiquiatra pedindo ajuda para parar de beber.”

O processo foi difícil, mas recompensador. “Basicamente, eu me descobri de novo: quem era a Carolina, do que eu gosto, o que eu sei fazer e até meu sono. Eu tinha medo de dormir sozinha. Hoje eu amo estar sozinha”, conta. “Tudo isso não veio só de tirar o álcool, mas do processo da terapia, das reformulações que eu fiz de mim mesma”, complementa.

Carolina diz ver com bons olhos os movimentos das pessoas que querem parar de beber. “Eu acho legal, isso não tinha antes. As pessoas achavam superesquisito parar de beber, me perguntavam se eu não tomava nem um vinhozinho.”

No que depender da geração Z, se tudo correr bem, vai ser possível ir para a balada e tomar seu bom drink sem álcool sem ter que dar satisfações a ninguém.

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