Sexo, álcool e consentimento

O que a escolha pela sobriedade tem revelado sobre mim e sobre minha sexualidade.


Ilustração com garrafas de vinho e plaquinhas dizendo "sim" e "não" para falar sobre álcool e consentimento
Ilustração: Mariana Baptista



Virei dessas pessoas monotemáticas desde que algo aparentemente pequeno, porém muito significativo, me atravessou. Explico: depois de uma piora crescente das minhas ressacas, que já perto dos 30 anos alcançavam a difícil média de três dias, independentemente da quantidade de álcool ingerida, água tomada e comida no estômago etc., acordei num desses dias que você fala “nunca mais eu bebo de novo”. E, diferente de todas as outras vezes, realmente não bebi mais. Óbvio que não foi só a ressaca, mas sim um conjunto de efeitos colaterais que não compensavam a alegria exacerbada do momento, mas só agora, passado alguns meses, que entendi o quanto minha sexualidade se revelou de uma outra maneira junto com a sobriedade. 

Você passa pelo início da vida adulta acreditando que uns drinques vão apenas ajudar a varrer pra debaixo do tapete aquela timidez que te atrapalha a criar laços com os outros, que uma tacinha de vinho resolve a dor no sexo que a tensão vaginal proporciona (o que não é só uma mentira das grandes, mas também de uma crueldade imensa), que ficar bêbada é a melhor forma pra iniciar qualquer interação sexual que seja. Eu passei por isso e vi todas minhas primeiras experiências florescendo regadas a álcool: o primeiro beijo, a primeira relação com um homem e os primeiros flertes com mulheres. Absolutamente nenhuma dessas interações passou pela luz cristalina da consciência não alterada. No lugar disso, só muitos flashes de cenas turvas.

Cientificamente, são vários os fatores e as situações que influenciam em como o corpo vai reagir às quantidades de álcool ingeridas. Mas o que acontece, no geral, além do visível desequilíbrio e sonolência (ou euforia no começo), é que temos que lidar com cérebro, coração, fígado, estômago e rins sendo diretamente afetados. Mas não “só”: a ereção, seja clitoriana ou peniana, também vira um alvo com a diminuição da velocidade de transmissão das mensagens entre o cérebro e o restante do corpo. Se estamos nessa busca maior pelo tal do autocuidado nos últimos anos, será que a bebedeira vai seguir fazendo parte das nossas vidas? Não sei, talvez certas coisas nunca mudem, talvez a gente se adapte e aprenda a ser um pouco mais sagaz nesse quesito.

Ultimamente, escutamos por aí o rumor de que a geração Z é a que menos bebe, usa substâncias ilícitas e faz sexo. Será? Primeiro, existem sei lá quantos milhares de recortes entre aqueles que são chamados de geração Z (pessoas nascidas entre 1995 e 2010). Mas, sim, os estudos ao redor do mundo confirmam que essa possa ser uma tendência real. Por exemplo, o maior estudo sobre comportamento ligado à bebida no Reino Unido concluiu que, em 2019, a geração com 16 a 25 anos de idade era a mais abstêmia – 26% deles não bebiam, em comparação com 15% entre a geração que mais bebia (55 a 74 anos de idade). Já nos EUA, o instituto Gallup concluiu que pessoas entre 35 a 54 anos estão mais dispostas a beber do que a geração anterior. Até trends de sobriedade nas redes sociais mais populares entre adolescentes só crescem. Uma delas é a hashtag #SoberTok no TikTok.

Claro, pra além das pesquisas, um dos fatores mais decisivos pra todas essas mudanças de comportamentos sociais foi a pandemia. Vi muitos relatos de pessoas que diminuíram drasticamente o consumo de álcool, enquanto outras passaram a beber mais pra conseguir lidar com a realidade cruel que assustava todos nós. Eu mesma vivi algumas peculiaridades, como meu corpo ter, de um dia pra noite, decidido rejeitar vinho sem mais nem menos (só o cheiro me dava ânsia). No entanto, o gostinho da cerveja gelada parecia uma poção mágica de serotonina descendo pela garganta. 

Mais ponto importante: uma pesquisa do Google em 2019 apontou que a maioria dos jovens estão associando o álcool com termos negativos, como abuso – e aqui até eu me incluo nessa parcela. No começo do ano, voltando de uma festa, bem mais pra lá do que pra cá, não consegui chamar um Uber e acabei entrando num táxi mesmo. E o que rolou? Primeiro, importante avisar aqui que não vou relatar nenhuma violência física, ok? Continuando, ao notar o meu estado, quase inconsciente, o motorista conseguiu aplicar um golpe (que depois descobri ser famoso entre os taxistas do Rio de Janeiro) que custou um rombo de 2 mil reais na minha conta bancária. Lembro de ter acordado só na tarde seguinte, ainda bem confusa, e ter demorado pra entender o que tinha realmente acontecido. Primeiro, o desespero total – e haja ligação pro banco, pro ponto de táxi, pra polícia etc.. Mas logo depois um alívio imenso junto com o pensamento de que “foi apenas dinheiro, poderia ter acontecido algo muito pior comigo”.

Isso me engatilhou uma série de lembranças de experiências ruins onde, com certeza, aconteceu ou talvez tenha acontecido a ultrapassagem dos meus limites por parte de outras pessoas enquanto eu estava mais vulnerável após alguns drinques. Obviamente, a culpa NUNCA é da vítima, nem do tamanho da roupa que ela veste ou do quanto ela bebeu, mas sabemos que muitos caras se aproveitam desses “descuidos” (em aspas, por saber a dor e a problemática que é as mulheres precisarem estar em estado de alerta 24 horas por dia, afinal, relaxar também é sinônimo de descuido pros homens?), e na minha trajetória não foi diferente. Me vi retornando a situações de risco toda vez que a chavinha da diversão etílica virava e passava a ser algo não tão divertido assim. A verdade é que, em certo ponto, essa conta simplesmente não fechava mais e o preço já tinha ficado muito alto (literalmente). 

Não precisei e nem quero diminuir meu lado da piranhice, mas comecei a entender mais o que era desejo genuíno e o que era só um fogo no rabo alastrado pelo álcool.

Mas, passado os acúmulos de chacoalhões da vida e a necessidade de despertar, o que vem acontecendo nos últimos meses é justamente a redescoberta de quem eu sou flertando, socializando, desejando, transando e por aí vai. Eu, que sempre orgulhosamente me auto intitulei uma “piranha ética” (referência ao livro The Ethical Slut, que aborda a não monogamia), me vi menos afobada, mais pé no chão e observadora, como quem faz uma triagem maior nas trocas sexuais. Não precisei e nem quero diminuir meu lado da piranhice, mas comecei a entender mais o que era desejo genuíno e o que era só um fogo no rabo alastrado pelo álcool.

Num estudo do New York University’s Center for Drug Use and HIV Research (CDUHR), com voluntários de 18 a 35 anos da cidade de Nova York, onde se comparou os efeitos do sexo sob álcool ou sob uso de maconha, a maioria relatou que, quando bebia, notava mais ressecamento vaginal, menos seletividade nas escolhas dos parceiros e parceiras e arrependimento após a relação. Joseph J. Palamar, professor no Departmento de Saúde Populacional na NYU Langone Medical Center e líder do estudo, disse que, mesmo muitas pessoas não considerando que homens se arrependam de fazer sexo, “muitos dos homens entrevistados expressaram arrependimento porque não se sentiam atraídos pela pessoa na manhã seguinte”. E quem nunca, né? Quantos de nós já não voltamos pra casa naquele famoso walk of shame pensando “por quê?” Se livrar da ressaca física é bom, mas da ressaca moral é uma coisa que não consigo nem descrever de tão incrível.

A ideia de que beber nunca é um problema, mas sempre uma solução, é o que nos seduz desde cedo pra esse sonho divertido, mas que, muitas vezes, se não houver cuidado, pode virar pesadelo. Sei que demonizar também não é a solução. O álcool é essa substância muito bem vista, até exigida como rito de passagem pra independência e que, se usada com atenção e junto de boas doses de autoconhecimento (e água, sempre água), pode realmente nos levar pra esse estado leve e gostoso. Como diria a eterna Gal, é preciso estar atenta e forte. Assim como é preciso saber a hora de parar, diminuir, seguir, pedir ajuda, voltar, conforme o que o corpo e a saúde mental solicitarem.

Nossa sexualidade é tão fluida quanto os momentos da vida. Na verdade, ela dança junto com eles, por isso requer tanta atenção: pra que a gente não se estranhe quando o ritmo for outro, quando o passo da dança ficar um pouco mais lento, pra que depois possa acelerar novamente. Não beber está sendo algo capaz de trazer esse outro ângulo pro sexo e pra mim mesma enquanto mulher adulta, mas pra você pode ser qualquer outra coisa que funcione, qualquer novo hábito, qualquer novo fim ou começo. Não importa a geração, o que todos temos em comum é a vontade de aprender a nos relacionarmos melhor, com os outros e com nosso íntimo. Então, o que será que pode te ajudar a iniciar esse processo de aprendizagem? Só você pode encontrar a resposta, mas eu te desejo uma boa busca e menos ressacas pelo caminho.

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, ela responde mensalmente as dúvidas do público da ELLE.

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