Ala natural ganha força no mundo dos vinhos

Com mais opções e cada vez mais adeptos, os vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos harmonizam com um estilo de vida sustentável e livre de padronizações da indústria.


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Foto: Tales Hidequi



“Sou a louca do rótulo”, diz a antropóloga Anna Davison. Ela lê atentamente as informações nutricionais e a lista de ingredientes dos alimentos que compra, privilegia orgânicos, produtores pequenos e locais. Leva esse cuidado também com o que veste, pesquisando a história e a maneira como são confeccionadas as roupas que escolhe. “O vinho veio nesse sentido. Gosto de beber uma taça a cada refeição, hábito que herdei da minha avó italiana”.

Há cerca de dois anos, porém, Anna não se preocupava com a origem do vinho que consumia. A bebida produzida em larga escala pela indústria da vitivinicultura chegava com frequência à sua mesa, até uma amiga introduzi-la ao mundo dos vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos. “A primeira impressão que tive com os vinhos naturais foi a de surpresa. Sensorialmente, são mais diversos e, apesar de eu já ter provado alguns rótulos naturais bem refinados, alguns deles têm algo de ‘selvagem’ em suas características”, diz ela.

Para quem ainda não descobriu essas sensações bebendo vinho, basta pensar no sabor mais complexo de um pão de fermentação natural em comparação ao pão de forma industrializado. Ou nos queijos artesanais em confronto com a oferta corriqueira de laticínios no supermercado. Nas cervejas de mil sabores e estilos elaboradas por pequenos produtores em vários cantos do Brasil. Nos embutidos caseiros, livres de aditivos e conservantes químicos. Abrem-se portas da percepção.

Os vinhos denominados pelo grande guarda-chuva contido na palavra “natural” são elaborados com pouca intervenção química, sem emprego de leveduras fabricadas em laboratório, usadas pela indústria para padronizar perfis, aromas e sabores. E sem os mais de 2 mil aditivos usados para maquiar e conservar as bebidas fermentadas em larga escala, matreiramente apelidadas de “barbies do vinho” pela sommelière Lis Cereja, proprietária da Enoteca Saint VinSaint e pioneira na disseminação do vinho natural no Brasil. Um pouco de sulfito, elemento que ajuda a conservar o vinho, é tolerado por consumidores dos naturais, sobretudo no caso dos brancos, menos resistentes, embora alguns produtores radicais optem por abolir qualquer tipo de conservante.

Além do prazer em provar algo bom, diferente, inesperado, há implicações saudáveis, políticas e ecológicas em consumir esses vinhos. No mundo ideal, as uvas usadas para elaborá-los vêm de fazendas que abandonaram a monocultura, têm compromisso com o meio ambiente e com a biodiversidade. “Das terras desses produtores também vêm milho, farinha, café, outras bebidas fermentadas, queijos e embutidos feitos com animais que vivem soltos e são criados eticamente”, diz Lis, que aponta um movimento de consumo muito além do modismo. “O vinho acompanha a grande tendência de sustentabilidade e de preocupação com a origem dos alimentos que a humanidade vive. Não estamos falando de um estilo de vinho, mas de um estilo de vida.”

Para Bruno Bertoli, sommelier e sócio do winebar paulistano Beverino (as prateleiras na abertura desta reportagem são de lá), fazer e beber vinhos naturais são opções indissociáveis do movimento de restauração da agricultura orgânica, apoiada pela vanguarda da gastronomia. Atitude que encontra cada vez mais adeptos fora dos grandes centros lançadores de tendências. “São práticas éticas, como optar por não consumir frangos criados em confinamento e que têm os bicos cortados para não se agredirem”, compara.

Homem sentado do lado de fora do winebar com taca na mao

Bruno Bertoli, do winebar Beverino: vinho condizente com práticas éticas.Foto Tales Hidequi

No caso específico do vinho, o movimento começa nos anos de 1980, na região de Beaujoulais, ao sul da Borgonha, na França. Vinhateiros descontentes com a massificação do produto no país e no mundo passaram a cultivar uvas organicamente e vinificá-las com métodos de fermentação espontânea. A tendência alastrou-se e ganhou o respaldo de grandes caves, como a Domaine de La Romanée-Conti. Sim, aquela que produz alguns dos vinhos mais caros do mundo (podem chegar a custar mais de U$ 25 mil ou bem mais do que isso em leilões de safras raras), com uvas cultivadas de forma orgânica e biodinâmica.

Hoje grande parte da produção natural de respeito está concentrada na Itália e na Espanha, embora haja iniciativas parecidas em diversos países, em todos com vinicultura bem desenvolvida e em alguns de tímida atividade enológica. “Há vinhos naturais produzidos nos Estados Unidos, fora da Califórnia, na Bolívia, no Peru e no Brasil. A ideia é mais ou menos simples: é como ter uma horta em casa, plantar uvas e fazer seu próprio vinho”, diz Lis Cereja.

Lis traça a curva ascendente do interesse pelos vinhos naturais tendo como medida cada edição de sua Feira Naturebas, que anualmente reúne produtores e importadores. Na primeira edição, realizada em 2013 em seu restaurante, sete produtores brasileiros participaram e foram vendidos 100 ingressos. A mais recente, realizada em 2019, reuniu 200 produtores (30 do Brasil) e cerca de 2 mil pagantes. Além da feira, ela observa o crescimento desse público pelo número de winebars especializados que pipocaram em São Paulo e no Rio de Janeiro e pela assimilação dos vinhos naturais na carta de diversos restaurantes – por convicção filosófica de seus chefs e proprietários ou pela demanda dos clientes.

Tradição, defeitos e qualidades

De acordo com quem trabalha do lado de dentro do balcão, o consumidor de vinhos naturais é jovem, viajado, aberto ao risco das experiências e, sobretudo, tem nome de mulher. Gianluca Zucco, sommelier e proprietário do paulistano Gino Winebar, acredita que as garotas se arriscam mais na hora de provar, enquanto boa parte dos rapazes prefere se manter fiel à segurança de suas cervejas ou de seus destilados. “São vinhos que permitem experiências menos previsíveis. São vivos, mutantes, dão maior prazer na busca e na descoberta”, diz Gianluca, nascido na Itália e radicado no Brasil há 30 anos.

A jornalista Leticia Quatel tem buscado esse tipo de experiência desde 2015, quando provou pela primeira vez os vinhos laranja, em especial as obras-primas de um dos mestres do estilo, o esloveno radicado na Itália Josko Gravner. Os vinhos laranja são feitos a partir de uvas brancas cujas cascas também são maceradas e passam algum tempo em contato com o líquido, o que origina a cor alaranjada ou, como Josko prefere definir, âmbar. Conquistaram Leticia de imediato e a paixão consolidou-se durante um período em que ela viveu em Módena.

“Muitos vinhos naturais, por não serem filtrados, levam resíduos e fragmentos da fermentação para a taça. Eu não me incomodo, acho lindo e delicioso. É como se eu me sentisse mais próxima do que é verdadeiro e, de fato, consigo identificar com mais facilidade notas de aroma e de sabor nesses vinhos”, diz Leticia, cliente do Gino, da Enoteca Saint VinSaint e dos restaurantes ChefVivi e Tuju, que contam com boa oferta de naturais em suas cartas (Gino, Enoteca SaintVinSaind e Chef Vivi, estão atendendo por delivery na pandemia, Tuju suspendeu o funcionamento nesse período).

Homem atras do balcao serve vinho numa ta\u00e7a

Gianluca Zucco, do Gino: ser natural não é atestado de qualidade.Foto Tales Hidequi

Algumas experiências, porém, podem ser infames, como diz Gianluca, que não se considera um xiita dos vinhos naturais e permite-se degustar um grande rótulo vinificado de maneira convencional, como os Barolo da Itália natal. “Há o fator moda, muita gente quer entrar na onda, mas não sabe fazer vinhos, uma atividade que demanda competência e paciência, pois o vinho tem um ciclo vital de pelo menos um ano para ficar pronto. Há produtos imprestáveis do ponto de vista sensorial. Esses eu não bebo e não vendo”, diz Gino.

Uma das críticas recorrentes aos vinhos naturais, por parte de sommeliers e enófilos tradicionais, é a presença de defeitos. Mas é preciso também desconstruir muito do que entendemos por falta de qualidade. “Defeito não é uma categoria pétrea. A acidez volátil presente em alguns vinhos, que remete ao aroma de esmalte, pode ser desagradável, mas para algumas pessoas isso quer dizer frescor”, diz Bruno Bertoli. Ele lembra o aroma de xixi de gato, comum nos Sauvignon Blanc produzidos na região francesa de Sancerre, como exemplo de que um aroma aparentemente nada convidativo pode justamente representar a tipicidade de uma uva em determinado terroir.

Outra desconstrução a ser pensada é a própria noção do que é tradicional. Seria consumir o pão de fôrma de supermercado que invadiu nossas mesas massivamente com a industrialização que veio com o pós-guerra? “A indústria gera preconceitos, como o de que produzir queijo com leite cru não é seguro. Acontece que a alimentação industrial não tem 100 anos. E o que são 100 anos diante de toda a história da alimentação?”, indaga Lis Cereja.

Para quem quiser ir a fundo nessas descobertas, é bom adiantar que há pegadinhas no mundo do vinho natural. Consumir uma bebida fermentada sem adição de leveduras industriais, porém elaborada com uvas de agricultura convencional – carregadas de agrotóxicos e outros aditivos sintéticos –, não quer dizer exatamente optar por um produto sadio ou responsável. Infelizmente, é um expediente usado por alguns produtores brasileiros que não possuem vinhedos próprios e compram as frutas sem se preocupar com sua origem. Para evitar esse tipo de engodo, a regra é tentar rastrear os antecedentes de um vinho desde sua raiz ou contar com as indicações de sommeliers, comerciantes e especialistas de confiança. Ser a louca do rótulo com base.

QUEM É QUEM

Todo vinho biodinâmico é orgânico, mas nem todo vinho orgânico é natural. Entendas as diferenças entre eles.

Vinhos naturais
Regra geral, são vinhos produzidos com técnicas de fermentação selvagem, sem uso de leveduras industriais ou selecionadas para consumir o açúcar das uvas e transformá-lo em álcool. Os vinhateiros naturais preocupam-se em interferir o mínimo possível no processo de fermentação. Quando bem elaborados, podem expressar de forma significativa o terroir em que foram gerados.

Vinhos orgânicos
São produzidos com uvas cultivadas de maneira orgânica, sem o uso de pesticidas, herbicidas ou adubos industriais. É preciso reconhecê-los para além dos selos, pois há produtores que não se preocupam em obter a certificação – cara e complicada – de produção orgânica. Alguns exemplares podem não ser necessariamente naturais, de acordo com os métodos de fermentação e vinificação escolhidos.

Vinhos biodinâmicos
Os produtores biodinâmicos seguem os preceitos da antroposofia, inaugurada pelo filósofo austro-húngaro Rudolf Steiner nos anos 1920. A agricultura biodinâmica busca recuperar a fertilidade da terra com o uso de compostos naturais, à base de plantas e minerais, e incentivar a biodiversidade por meio de culturas heterogêneas. O respeito aos ciclos da natureza, incluindo o calendário lunar, tem grande importância nos métodos biodinâmicos. A uva biodinâmica, portanto, é orgânica. Caso as escolhas do enólogo privilegiarem a fermentação espontânea, teremos um vinho orgânico, biodinâmico e natural.

BONS DE TAÇA

Espumante, branco, tinto, rosé e até laranja: há vinhos naturais e orgânicos de todos os tipos. Confira sete indicações de rótulos.

Vivente 3
Produzido pela Vivente Vinhos Vivos em Colinas (RS), este espumante orgânico e natural tem untuosidade, cremosidade, notas de brioche no aroma e presença de levedura. “É um branco muito fresco, sua efervescência não é tão forte, mas muito agradável”, diz Bruno Bertoli.

Pignoletto Posca Bianca
Este branco da região italiana de Emilia-Romagna é elaborado pela vinícola Orsi Vigneto San Vito com a uva Pignoletto por um processo curioso chamado vasca perpétua. A cada ano uma nova safra é adicionada ao tanque e misturada a safras mais antigas, desde 2011. Parte desse blend é engarrafado e a outra continua no tanque. “Por causa das parcelas mais velhas, ele é parcialmente oxidado, mas quando o produtor é bom e consciencioso, o método pode originar vinhos de grande complexidade, como é o caso do Posca Bianca”, diz Gianluca Zucco.

Era dos Ventos Peverella
A uva Peverella chegou ao sul do Brasil com os imigrantes italianos. Quase extinta, foi resgatada pela vinícola Era dos Ventos, de Luiz Henrique Zanini, em Bento Gonçalves (RS), e origina esse vinho laranja de maceração curta (as cascas ficam pouco tempo em contato com o mosto). Denso e complexo, pode ser oferecido a quem tem um paladar mais clássico.

Giusi Cerasuolo d’Abruzzo
Um rosé biodinâmico, de cor e sabor acerejados, é produzido pela Tenuta Terravia na região de Abruzzo, Itália, com a uva Montepulciano. É bom para os dias quentes, mas também pode acompanhar carnes de caça e de cordeiro. Seu sabor de fruta madura tem uma deliciosa persistência na boca.

Tinto de Rulo Pipeño
Os Pipeños chilenos são vinhos tradicionais elaborados com a uva País, até pouco tempo pouco não muito valorizada, embora tenha sido uma das primeiras espécies Vitis vinifera a chegar à América Latina. Hoje a País é moda e seus vinhos devem ser provados por quem descobre os naturais. Este rótulo, orgânico e natural, produzido pela Tinto de Rulo, passa por tanques de aço e de raulí, madeira própria do Chile e da Argentina, e depois descansa em carvalho por um ano. É fresco, com notas defumadas.

Energie Rouge
A vinícola Domaine Viret, no sul da região do Rhône, é referência francesa da biodinâmica e da cosmocultura, método agrícola que observa e respeita os fluxos telúricos. Seus vinhos descansam em ânforas, como este 100% Syrah. “Fresco, com fruta generosa e mineralidade que sustentam seu equilíbrio”, diz Bruno Bertoli.

Il pioniere Negroamaro e Malvasia Nera
É um dos rótulos ideais para convencer quem desconfia dos vinhos naturais. O tinto orgânico produzido pela Azienda Agricola Biologica Natalino del Prete, na Puglia, é rico, aveludado, tem muita fruta vermelha madura na boca, característica bem tabelada pela acidez vibrante e por certa adstringência.

ONDE ENCONTRAR VINHOS NATURAIS, ORGÂNICOS E BIODINÂMICOS

Beverino
Winebar, atualmente atendendo por delivery via whatsapp (11) 98438-3597.

Cave Léman
Importadora de vinhos naturais e cervejas artesanais.

de la Croix
Importadora especializada em vinhos franceses orgânicos e biodinâmicos.

Enoteca Saint Vinsaint
O restaurante da enoteca de Lis Cereja está fechado durante a pandemia, mas é possível pedir vinhos e outros produtos pela loja online ou pelo whatsapp (11) 95085-0448.

Gino Winebar
Winebar, atualmente atendendo pedidos de vinho pelo whatsapp (11) 98196-9016.

La Vinheria
Loja online especializada em vinhos naturais e orgânicos.

Piovino
Importadora especializada em vinhos naturais italianos.

Vinho Mix
Loja online com vinhos naturais no catálogo.

Wines4You
Importadora focada em vinhos artesanais de pequenos produtores.

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