Não estou apresentável, e daí?

Nesta quarentena, a cultura da alta performance também se manifesta na ilusão de que devemos manter visuais impecáveis mesmo quando sequer há público para isso. Você desencanou total do espelho? Não se culpe por isso.


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“Quando o olhar do outro está temporariamente fora da jogada, como fica a nossa relação com o espelho? O que sobra?” Fizemos essas perguntas para o nosso grupo no Facebook, que conta com mais de 2 mil participantes – uma amostragem significativa de aficionados por moda e beleza. A ideia era entender como as pessoas estavam lidando com a autoimagem durante o isolamento. Na primeira entrada que demos neste assunto, a maioria das respostas se assemelhava: em geral, nossas leitoras e leitores, mesmo sem a pretensão de sair de casa, continuam se arrumando pelo simples prazer de se verem bem vestidos. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Primeiro, porque, apesar de ser completamente apaixonado por moda, minha relação com o guarda-roupa tem sido quase inexistente. E a rotina de skincare só tem acontecido no ocasional alinhamento dos planetas ou por intervenção divina. Depois, porque recentemente a gigante Unilever declarou que tem sofrido uma queda vertiginosa na venda de itens como shampoo, condicionador, espuma para barbear e (pasmem) até desodorante.

“Estamos nos adaptando a uma nova demanda e nos preparando para mudanças a longo prazo no comportamento do consumidor em cada um dos países em que estamos presentes”, disse o CEO da Unilever, Alan Jope, em entrevista ao jornal britânico The Telegraph. Ou seja, existe uma previsão para que, depois da quarentena, as pessoas continuem muito atentas à higiene das mãos e das superfícies, mas não tão ligadas às anteriores noções de higiene pessoal. É claro que isso é só uma prospecção, mas quando personagens como as irmãs Khloé e Kourtney Kardashian assumem que estão lavando o cabelo uma só vez por semana, talvez eu não esteja tão sozinho no meu desânimo frente ao espelho.

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Para tirar a prova, voltei ao nosso grupo. Desta vez, fui bem específico e perguntei algo como: “Quem por aqui também está aproveitando a quarentena para se desligar um pouco da preocupação com aparência?”. Apesar de seguirem bastante plurais, as respostas que recebi nessa segunda investida foram um pouco diferentes. A Julia Bacelar deu um tempo da depilação, por exemplo. “Estou dando um descanso para a pele e está sendo bom!”, escreveu. A Mariana do Carmo Alves decidiu que sua maquiagem pós-quarentena será muito diferente do que era antes: “Usava muita base, contorno bem marcado, extensão de cílios… Isso já não faz mais parte do meu dia a dia. Um corretivo, um blush e um lip tint serão suficientes. “Entre nossa própria equipe, temos casos como o do repórter Gabriel Monteiro que, pela primeira vez, está deixando o cabelo crescer e testando a técnica do co-wash.

O essencial é relativo

O fio que liga esses depoimentos parece ser o desejo de conectar-se com aquilo que cada um considera estar mais próximo do essencial. Assim, há quem troque o tempo antes investido em uma maquiagem carregada por uma rotina de skincare mais ampla. Da mesma forma, tem também quem desanimou e deixou quase tudo de lado (assim como eu). A princípio, não há problema nisso. Aliás, pelo contrário: arrumar-se é um processo que despende energia psíquica e, em tempos de pandemia – quando temos que absorver uma quantidade extensa e diária de catástrofes, além de lidar com as nossas responsabilidades –, toda reserva que pudermos fazer dessa energia é bem-vinda.

Entretanto, quem opta por esse caminho acaba tangenciando uma série de questões. Por exemplo: qual é o limite entre a reserva de energia e o desleixo insalubre? Existem estudos que apontam para o abandono das rotinas de higiene como um sintoma de depressão ou de ansiedade descontrolada. Em que medida podemos esbarrar nisso? Para responder a essas pergunta, é preciso dar uns três passos para trás. “Estamos passando por uma pandemia e a vida como a gente conhecia mudou. Isso implica que não é porque você apresenta alguns sintomas de ansiedade mais evidentes ou até mesmo de depressão que você automaticamente já está diagnosticado com esses transtornos”, pondera a psicóloga Juliana Vicente, pós-graduada em Dependência Química pela UNIFESP. Ou seja, se o cotidiano se alterou drasticamente, os parâmetros para avaliarmos o nosso próprio bem-estar precisam se ajustar às novas circunstâncias: “Estamos vivendo um momento de exceção. Não há referências do que fazer em certas esferas da vida”. Rotinas terão de ser reconstruídas do zero a partir de um processo de tentativa e erro, avalia Juliana. A partir dessa nova configuração, será possível entender melhor o quanto esses sintomas estão ou não nos impossibilitando de seguir em frente com nossas vidas. “Quem vai poder bater esse martelo é um profissional da saúde mental. Isso posto, se esses sintomas estão aparecendo com muita frequência, é importante que algum tipo de acompanhamento psicológico seja procurado para entender a melhor maneira de contornar essa situação”, diz a psicóloga.

Despressurizando…

Você deve ter notado: desde o início da quarentena, a resposta das redes foi uma avalanche de conteúdo de incentivo à alta produtividade nesse período. Se por um lado começar um novo hobbie, praticar ioga, meditar todos os dias e estar sempre arrumado dentro de casa pode ser muito benéfico para uma série de indivíduos, isso não pode valer como regra geral. Para alguns, esse exagero acaba virando um atalho para a frustração. “A gente vive na sociedade do cansaço. É como se fôssemos obrigados a dar conta de tudo, sempre. No entanto, todos nós temos fragilidades e vulnerabilidades e precisamos abraçar isso também”, aponta Juliana. “Em um mundo que não para de oscilar, como exigir de nós mesmos estabilidade total? Tem dias em que vamos conseguir sair da cama e fazer tudo o que precisamos e queremos, mas tem dias em que vamos precisar parar tudo e ficar só assistindo Netflix”, argumenta. Assim, segundo Juliana, a melhor estratégia para atravessar esse período da nossa história é tentar encontrar pontos de firmeza no meio da turbulência. “Conheço pessoas que estão fazendo festas online para ver os amigos e relaxar um pouco. É evidente que essas relações virtuais não suscitam em nós o mesmo efeito do contato físico, mas ajudam. É importante ter uma rede de apoio e solidariedade para que as pessoas participantes possam dividir o que estão sentindo durante esse processo.”

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Você não precisa estar “apresentável” todos os dias. Se isso lhe fizer bem, ótimo. Mas não alcançar esse objetivo durante a quarentena não pode, ou pelo menos não deveria, ser um fator contribuinte ao estresse e à ansiedade a que já estamos submetidos no isolamento social. Por fim, olhos sempre abertos para entender a situação em que nos inserimos pela perspectiva do acolhimento. “E, claro, se crises mais intensas começam a surgir ou se você está sentindo qualquer dificuldade para lidar com tudo o que está acontecendo nesse momento, a psicoterapia é extremamente indicada”, lembra Juliana. Muitas instituições estão disponibilizando atendimento online gratuito e, na saúde pública, dentro do SUS, existe o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Apesar de estarem funcionando com suas atividades relativamente reduzidas, eles ainda estão na ativa. Lembre-se: pedir ajuda é um sinal de força e não de fraqueza.

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