Milly Lacombe e a importância de “Perigosas Sapatas”

A escritora relembra a relevância das tiras, que traduziram o que é ser lésbica nas miudezas do cotidiano, derrubando muros de preconceito, e que ganham coletânea no Brasil.


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Mil novecentos e oitenta e três foi um ano curioso. Para quem não estava prestando atenção, passou batido, mas para um grupo identitário que ainda vivia na sombra, 1983 foi definidor. Mil novecentos e oitenta e três começou num sábado, teve logo em janeiro a notícia da prisão de um ex-oficial do alto comando da Gestapo durante o regime nazista, que estava foragido, o lançamento do primeiro álbum em estúdio da banda Metallica, que revolucionaria o rock, e o Grêmio campeão da Libertadores. Já para a comunidade lésbica brasileira e estadunidense o ano de 1983 seria como nenhum outro até então; entraria para a história como o primeiro do resto de nossas vidas.

No Brasil, em 1983, as lésbicas paulistanas tomavam o Ferro’s bar, no bairro do Bixiga, numa ação conhecida como a nossa Stonewall (bar em Nova York que deu nome à revolta da comunidade LGBTQ estadunidense, que, em 28 de junho de 1968, enfrentou a polícia em nome de seus direitos). A intervenção foi uma resposta organizada à intensa repressão que lésbicas sofriam por parte da polícia e que começou a escalonar no dia 15 de novembro de 1980, durante operação comandada pela Polícia Militar de São Paulo chamada Operação Sapatão, que prendeu todas as frequentadoras do Ferro’s, o grande reduto lésbico da época. O evento fez com que a comunidade se organizasse e também com que a publicação Chanacomchana, produzida e distribuída pelo Grupo de Ação Lésbica-Feminista, tomasse rumos de um ativismo mais forte que culminaria com a ocupação do Ferro’s em 1983.

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Foto: Divulgação/Todavia

Enquanto isso, nos Estados Unidos daquele ano, as tirinhas Perigosas sapatas (Dykes to watch out for), da cartunista Alison Bechdel, ganhavam as páginas dos jornais, levando para dentro das casas das famílias estadunidenses o dia a dia de uma dúzia de mulheres lésbicas: suas dores, seus prazeres, seus desejos, seus conflitos e sonhos. O espírito do tempo fazia com que a lesbiandade tomasse a frente da luta do que, anos depois, viria a ser conhecido como o movimento LGBTQIA+.

O papel da cartunista Bechdel nesse levante foi determinante. Ao traduzir o que era ser sapatão nas miudezas do cotidiano, mostrando que nossas dores, alegrias, sofrimentos, desejos, tristezas, sonhos e encrencas eram as mesmas das demais pessoas, Bechdel foi derrubando, tijolo a tijolo, os muros que o preconceito, o machismo, a misoginia, o colonialismo e o patriarcado ergueram ao longo de décadas.

O livro é um documento histórico da jornada do ativismo sapatão estadunidense e, ao mesmo tempo, um retrato cheio de beleza das intensas e profundas relações entre mulheres

As tirinhas, que retratavam o dia a dia de amigas lésbicas numa indeterminada cidade estadunidense, tiveram vida longa dentro dos Estados Unidos, mas a obra de Bechdel só ficou famosa internacionalmente em 2006, quando ela publicou Fun home – Uma tragicomédia em família, autobiografia em quadrinhos.

Por isso, só agora chega ao Brasil O essencial de Perigosas Sapatas, uma seleção cronológica das melhores tirinhas feita por Bechdel desde 1983. O livro é um documento histórico da jornada do ativismo sapatão estadunidense e, ao mesmo tempo, um retrato cheio de beleza das intensas e profundas relações entre mulheres – sejam românticas, familiares, sociais.

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Foto: Divulgação/Todavia

Passados quase 40 anos desde o lançamento de Perigosas sapatas, Bechdel, em entrevista à ELLE, disse que, ao longo desse período, o ativismo LGBTQ foi perdendo uma certa radicalidade para focar em coisas mais institucionais, como casamento gay e o ingresso de gays nas forças armadas. Em 2016, quando o casamento entre pessoas do mesmo sexo finalmente passou a ser legal nos Estados Unidos, a luta outra vez mudou. “Me parece que a juventude ativista está buscando iniciativas mais progressistas de tentar construir coalizões com outros grupos e me anima saber que muitos desses movimentos progressistas têm hoje lideranças lésbicas ou LGBTQs. As fundadoras do Black Lives Matter, por exemplo, são mulheres queer”, disse à ELLE.

Bechdel, hoje com 61 anos, lamentou que as coisas precisem ficar muito ruins para serem transformadas, citando o assassinato de George Floyd, em 2020 – uma atrocidade que, segundo ela, galvanizou um oceano de transformações e entendimentos a respeito do que é o racismo estrutural. “O que aprendi é que a história não se movimenta numa espécie de trajetória linear e crescente em direção ao progresso, em direção a direitos humanos”, disse antes de completar: “As coisas podem sofrer uma reviravolta a qualquer momento e nos colocar outra vez em tempos sombrios. Estamos num momento como esse, mas a luta se luta como sempre: juntos e juntas. Mulheres, minorias raciais, queers – temos que trabalhar unidas”.

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