O vestir como cultura: caminhos possíveis
Qual é a riqueza obtida ao ampliar o olhar para a moda como uma expressão cultural, em vez de um universo só voltado para o consumo?
Podemos considerar que a moda é uma importante expressão cultural, embora nem sempre tenha sido enxergada dessa forma. Na academia, esse viés foi estudado por alguns campos, principalmente o da sociologia, em contraposição ao senso comum que muitas vezes localizava todo o complexo cultural do vestir no âmbito da superficialidade. Para dar apenas um exemplo, em nosso país temos Gilda de Mello e Souza, uma importante referência nos estudos sobre estética e indumentária no Brasil, que em 1987 lançou em formato de livro O Espírito das Roupas: a Moda no Século 19, pela Companhia das Letras. Os escritos acabaram se tornando uma das principais publicações sobre moda, cultura e sociedade até os dias de hoje.
Gilda nos conduz a pensar a roupa, e todas as linhas que costuram essa questão, quando nos propõe fazer uma expansão do olhar sobre o objeto “moda”. Ainda que estudando os modos de vestir da sociedade branca do século 19 e muito inspirada nos costumes e jeitos de vestir europeus da época, o estudo da autora entrelaça estética e sociologia, abrindo precedentes para pensarmos como o vestir pode auxiliar a compreensão tanto de um indivíduo quanto de uma comunidade.
Como já vimos em um texto publicado em minha coluna sobre outras histórias da (e na) moda, podemos deslocar o olhar para pensar outras possibilidades de moda que extrapolam corpos e costumes brancos e europeus. Pensar o vestir e fazer moda, definitivamente, não é uma exclusividade apenas desse grupo.
Adepta do Kamafêu de Oxossí em São José de Ribamar – Maranhão 2019.Foto: Silvana Mendes
Quando pensamos em moda, muitas vezes lembramos das marcas famosas, dos negócios e das transações milionárias e de um luxo excessivo. É fácil ter o olhar dirigido a esses elementos se tivermos em vista apenas a moda que ganhou destaque na imprensa internacional. Por anos, foi ela a responsável por fundamentar as bases do que seria chic e moderno numa tentativa de construção de uma zona de influência de escala global. O universo glamouroso dos desfiles em que só convidados podem participar, o ambiente das modelos supermagras e quase sempre brancas, as grandes maisons francesas de alta-costura, com as suas mil e uma “regras de etiqueta”, são exemplos disso. Mas e a moda das ruas? E a possibilidade de pensar a moda a partir das memórias de família e do que aprendemos com o nosso entorno?
A narrativa sobre a moda que é difundida de maneira mais ampla pela elite que construiu esse assunto é uma narrativa excludente, e isso se reforça nos cursos de moda do Brasil. Eles são, em sua maioria, caros e de difícil acesso, tendo em sua grade uma moda cristalizada e pouco plural. Sempre houve, porém, uma disputa sobre essa narrativa. Sempre estiveram por aqui outras vozes que tinham na herança simbólica de suas famílias e nas experiências às margens todos os argumentos necessários para chamar a atenção para o fato de que a moda é muito mais do que a esfera do consumo.
As atuais dinâmicas de consumo dão conta apenas de mostrar, claro, as ideias dos grupos que têm dinheiro, produzindo mais chances de difundir suas ideias e aparecer. Como nos conta Stuart Hall, intelectual jamaicano-britânico, expoente dos estudos culturais e decoloniais em A Identidade Cultural na Pós-modernidade, publicado no Brasil pela editora Lamparina em 2015, a globalização é um processo desigual e tem a sua própria forma de poder.
Contudo, fica cada vez mais evidente que é por meio da implementação de políticas públicas de educação, como as de cotas e planos de erradicação de desigualdades sociais, que garantiremos o acesso de outras pessoas e vozes, que, por conseguinte, trarão outros tipos de moda para o centro da discussão. Quando conseguimos garantir o acesso de outras pessoas ao ensino superior, instrumentalizadas e capacitadas a fazer uma reflexão densa sobre esse assunto, é possível quebrar a narrativa única.
Lembremos aqui de O Perigo de uma História Única, que Chimamanda Ngozi Adichie nos apresentou originalmente em formato de TED Talk, em 2009, e que, em 2019, ganhou a versão para livro, publicado pela Companhia das Letras. Para a nossa discussão, poderíamos pensar no problema da moda única, que conta apenas as mesmas narrativas, que não contempla experiências fora da elite e serviu de ferramenta para silenciar vários movimentos culturais ao longo dos anos. A internet e as redes sociais mudaram um pouco isso, fazendo com que os olhares fossem ampliados e as vozes que antes eram silenciadas, sem muita chance de repercussão, ganhassem mais escuta.
Foto: Silvana Mendes
Pensar a moda como uma expressão cultural e, portanto, inserida em um contexto cultural, fruto de ações coletivas, é pensar esse universo não só como ação de empresas e de marcas. E aqui é interessante lembrar como o pensamento decolonial contribuiu com essa perspectiva – não só para a moda, como também para os estudos culturais. Ao deslocar o ponto de interesse dos grandes produtores de cultura e olhar para quem estava às margens nos processos culturais e sociais, joga-se luz em outras experiências. São as possibilidades do pensamento decolonial como uma forma de saber que nos ajudam a pensar a moda como um potente registro histórico e social de expressões culturais.
Em Olhares Negros: Raça e Representação, bell hooks investiga de maneira crítica as “velhas narrativas, sugerindo formas alternativas de contemplar a negritude, a subjetividade das pessoas negras e, por necessidade, a branquitude”. Ainda nesse livro, lançado no Brasil em 2019, pela editora Elefante, a autora resgata uma ideia de Samia Mehrez que indica a descolonização como um ato de confronto com um sistema de pensamento hegemônico. Trata-se de um grande processo de libertação histórica e cultural, tanto para o colonizado como para o colonizador. O processo de descolonização só se torna libertador quando envolve as duas partes.
Os flertes com pensamentos decoloniais nos ajudam a adentrar a esfera de construção e representação de imagem, moda e cultura. O que eram as roupas, sapatos e penteados de mulheres e homens negros que abalavam as pistas dos bailes de música soul durante as décadas de 1970 e 80, em São Paulo e no Rio de Janeiro? É bem provável que as pessoas dessa época se lembrem dos bailes da Chic Show, por exemplo. Em Ôrí (1989), Beatriz Nascimento narra essas experiências. Eu cresci ouvindo meus tios contarem sobre essas festas e de como eram, de fato, eventos em que as pessoas se arrumavam e criavam ali culturas de moda para aquele local. Antes disso, em São Paulo, durante a década de 1960, pessoas negras que não podiam frequentar os clubes de pessoas brancas criaram os seus próprios clubes para que pudessem exercer a sociabilidade e celebrar suas culturas de dança, música e moda. O famoso Aristocrata Clube era um desses lugares, a cujas festas a comunidade negra ia “na estica”.
Aristocrata Clube.Acervo Pessoal
Atravessando o Atlântico e desaguando no Mali da década de 1960, Malick Sidibé, conhecido como “o olho de Bamako”, registrou em suas fotos as noites animadas em clubes e festas da cidade, embaladas ao som do twist, estilo musical inspirado em melodias do rock’n’roll que chegava lá por meio das ondas de rádio. Malick capturou passos de dança, roupas pensadas para as ocasiões de festa e um novo futuro, que estava sendo desenhado em um país que se livrara havia pouco do estigma colonial, ganhando sua independência da França em 1960.
De volta às experiências brasileiras, não podemos deixar de lembrar as belezas do Ilê Aiyê da Bahia, que anualmente colorem as ruas do bairro do Curuzu, em Salvador, com as cores branco, amarelo, vermelho e preto de seus tecidos. Todo ano são produzidas novas estampas, que contam a história do Carnaval daquele ano. Para além da criação dos motivos têxteis, existe uma cultura de adorno que é construída dentro da comunidade, que explora a criatividade de usos, amarrações e costuras. A elegância das mulheres negras portando seus turbantes e roupas elaboradíssimos é carregada de simbolismos e heranças estéticas e culturais africanas e afro-brasileiras, constantemente reinventados por meio do corpo e dos fazeres da diáspora.
Comunidades de religiões afro-brasileiras também deslocam a ideia de moda, entendendo-a como cultura e elevando a indumentária a um importante elemento religioso. Podemos aqui compreender as roupas e os adornos como “panos de frente” para a comunicação de uma identidade cultural coletiva. Para além de cobrir o corpo, a indumentária é entendida como uma maneira de se voltar às origens africanas e manter a história viva. Muitas vezes, é compreendida como uma forma de fé. Na contramão do mercado, que incentiva todo mundo a usar a mesma coisa, as comunidades de terreiro têm na própria feitura das roupas a ideia de fé. Muitas vezes são eles os responsáveis pela criação das vestimentas religiosas. As peças feitas à mão, com rigores de detalhes, guardados em segredo e produzidos em um tempo que se difere daquele do consumo, assumem a forma de guardiãs da cultura dessas comunidades.
Fica entendido que o conceito de moda difundido pelas elites nunca deu conta de celebrar as riquezas estéticas, históricas e culturais que se insurgem em narrativas e discursos e movimentos nas brechas das sociedades. São essas vozes as que sempre pensaram o vestir como uma expressão de arte e como uma maneira de se comunicar e contar outras tantas histórias.
Quebrar as narrativas hegemônicas, construir conhecimentos que não são mediados pelos negócios e pensar a moda como cultura, trazendo a diversidade para o centro da discussão, é um importante passo para começarmos a descolonizar o olhar e projetarmos futuros possíveis e mais plurais a partir da elaboração de um pensamento que pode assumir uma característica anticapitalista e produzir efetivamente a valorização de processos de criação além daquelas das grandes indústrias.
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