Quando a tragédia vira arte
Impossível prever como a pandemia e o isolamento forçado vão influenciar a produção artística nos próximos anos. Mas vale olhar para trás e ver como episódios dramáticos inspiraram obras e movimentos em diversos períodos.
Cena de naufrágio foi o título original que o pintor romântico Théodore Géricault (1791-1824) escolheu para a pintura que seria a grande obra de sua vida, hoje uma das mais importantes da arte ocidental. Quando foi exibida pela primeira vez no Salão de Paris de 1819, o episódio ao qual se referia nem precisava ser nomeado para ser reconhecido pelo público: o naufrágio da Fragata de Medusa ocorrido três anos antes na costa da África, documentado à exaustão com relatos sobre assassinatos, homens se atirando ao mar e cenas de canibalismo.
A Balsa da Medusa (1819), pintura a óleo de Théodore Géricault.
Universal Images Group / Getty Images
A Balsa da Medusa (1819), como ficou conhecida, foi umas das primeiras pinturas baseadas em um evento real – uma grande tragédia que abalou a monarquia francesa e atraiu o interesse das pessoas pela maneira dramática como foi retratada. Era uma época em que a representação da realidade de forma objetiva ganhava força com o surgimento de museus históricos, diários pessoais, da fotografia e outros dispositivos óticos. Géricault passou três anos obcecado pelo assunto, coletando toda espécie de material: construiu uma réplica do barco em seu estúdio, colecionou reportagens e estudou cadáveres em hospitais. Duas testemunhas que publicaram um relato na época também foram usadas como modelo para a reconstituição da cena em que os sobreviventes parecem avistar um barco ao longe, prestes a serem salvos.
A obra de Géricault é um exemplo emblemático para pensar sobre o impacto de tragédias coletivas na produção artística. Especialmente agora, quando atravessamos uma pandemia global sem precedentes – e nenhuma cultura permanece a mesma após uma crise como essa. Se ainda é cedo para especular o que vai surgir depois disso, pode-se ao menos olhar para o passado para entender o impacto de eventos como esse na arte.
Dois séculos depois, a catástrofe e as consequências do naufrágio que inspiraram A Balsa da Medusa não parecem tão relevantes. Mas a obra manteve sua força. Como define o escritor Julian Barnes no ensaio “Géricault: catástrofe transformada em arte” (Mantendo um Olho Aberto, ed. Anfiteatro, 2015), “A catástrofe se tornou arte: é para isso, afinal, que serve a arte.”
A história dessa pintura é responsável também por um certo imaginário idealizado sobre a figura do artista, que sacrifica a vida em função de um compromisso com a própria arte. Géricault representa bem essa ideia. Ele passou oito meses sem deixar o ateliê – chegou a raspar a cabeça para indicar que não sairia mais às ruas enquanto não finalizasse a pintura. O empenho não foi recompensado: teve problemas financeiros e de depressão, e tela só foi comprada pelo Louvre após sua morte precoce aos 32 anos, vítima de tuberculose.
Artistas no front
O caso de Géricault foi excepcional para a época por mais um motivo: não se tratava de uma obra comissionada, o que deu ao pintor a liberdade de assumir uma visão crítica ao governo e um caráter subversivo. Já no século 20, as duas Grandes Guerras foram marcadas por trabalhos produzidos nos fronts de batalha sob encomenda de governos. Na Inglaterra, um dos países que mais investiu nessa atividade, o Ministério da Informação criou em 1918 o British War Memorials Committee, responsável por comissionar obras para formar um memorial da Primeira Guerra (1914-18). Essa coleção pertence hoje ao Imperial War Museum, que ainda mantém um programa contemporâneo comissionando artistas para desenvolverem trabalhos em áreas de conflitos onde o Reino Unido esteja envolvido.
We Are Making A New World (1918), de Paul Nash.
Imperial War Museums / Getty Images
Mas os pontos altos do acervo ainda são obras de artistas como Paul Nash (1889-1946) e as paisagens devastadas que retratou em pinturas como We are making a new world (1918), um dos ícones sobre o imaginário da Primeira Guerra. Apesar do título quase efusivo, que poderia servir aos propósitos nacionalistas a favor da batalha, o que vemos é uma cena nada idealizada: árvores mortas e tombadas sobre um solo perfurado, sem sinal de presença humana; um novo mundo pouco convidativo a se habitar. Em uma carta enviada à mulher, ele comenta sobre o impacto de presenciar tudo aquilo: “Não sou mais um artista interessado e curioso. Sou um mensageiro que vai trazer de volta a palavra dos homens que estão lutando para aqueles que querem que o conflito dure para sempre.”
Se considerarmos a influência das duas Grandes Guerras para além da representação, quase todos os movimentos artísticos surgidos na primeira metade século 20 têm relação com esses eventos – dos futuristas, para quem as batalhas eram eventos gloriosos, aos dadaístas, que surgem como resposta contrária à exaltação da violência. Próximo a este movimento, o alemão Kurt Schwitters é um exemplo cuja produção foi atravessada pelo entreguerras. O cenário de ruínas pós-Primeira Guerra têm um papel decisivo nas colagens que vai desenvolver a partir de resíduos como bilhetes de bonde, embalagens e madeiras gastas. A ideia de criar relações entre todas as coisas do mundo o inspirou a desenvolver o conceito Merz, palavra inventada por ele e espécie de movimento artístico de um homem só.
Colagem de Kurt Schwitters exibida na mostra 100 anos de Merz, realizada em Hannover, em 2019.
Picture alliance / Getty Image
A experiência de isolamento também definiu sua obra mais importante. Como resultado da crise social e política da Alemanha, ele passa a produzir no espaço doméstico, construindo no quarto da casa dos pais sua primeira Merzbau – colagem espacial com resíduos que encontrava nas ruas. Em 1943, a primeira versão foi destruída em um bombardeio dos aliados, mas Schwitters realizou outras duas durante o exílio na Noruega (1937) e na Inglaterra (1947).
Imaginário de pandemias
Exemplos como esses pareciam histórias muito distantes até outro dia, quando ainda não atravessávamos uma pandemia global de proporções inéditas e consequências nebulosas. Ainda é cedo e até injusto com os artistas contemporâneos especular que arte vai surgir como resposta a esse contexto. Até porque o que se espera é uma mudança estrutural de um meio que se profissionalizou e pode desmoronar com a crise gerada pela pandemia, como escreveu o crítico Jerry Saltz no site Vulture.
Talvez o imaginário de pandemias mais próximo ao atual contexto sejam trabalhos relacionados a disseminação da AIDS entre os anos 1980 e 1990. Foi na virada entre as duas décadas que a artista Nan Goldin organizou como curadora a exposição “Witnesses: Against Our Vanishing” (testemunhas: contra o nosso desaparecimento), no espaço independente Artists Spaces, em Nova York. Reunindo trabalhos inéditos de artistas como Kiki Smith, David Wojnarowicz e Vittorio Scarpati, a mostra foi um marco ao representar comunidades LGBT em situações de uma intimidade que contrariavam a maneira estigmatizada como eram vistos na época. Como artista, Goldin também acompanhou de perto o avanço da doença de amigos próximos, como do casal Gilles Dusein e Gotscho, que fotografou durante dois anos, até a morte de Gilles, em 1993.
Fotos de Philip-Lorca diCorcia, exibidas na mostra Witnesses: Against Our Vanishing, de 1989.Imagens cedidas por Artists Space, Nova York
Manifestação realizada em frente à galeria Artists Space, em Nova York, em novembro de 1989, no dia da abertura da mostra organizada pela fotógrafa Nan Goldin, para combater o estigma em torno dos portadores de HIV.Foto Artists Space
A propagação do HIV e sua origem é também um tema que a fotógrafa carioca Alice Miceli passou a pesquisar recentemente para um novo projeto. Depois de ter realizado duas séries que lidam com a ideia de contaminação de espaços – uma sobre Chernobyl e outra sobre campos minados de guerra –, ela estava nos últimos meses em uma residência artística no Instituto de Saúde Global, na Suíça, desenvolvendo uma pesquisa sobre os primeiros padrões de epidemias quando foi surpreendida pelo avanço da Covid-19. Nesse caso, foi a realidade que invadiu sua pesquisa artística de forma improvável – e a influência no novo projeto ainda não é clara para ela: “Não consegui ter um distanciamento frio para entender o impacto na pesquisa. Aquele movimento do pintor, que dá dois passinhos para trás para ver o todo, ainda não consegui fazer”, conta a artista.
Ilustração retrata médico do século 17 paramentado para o combate à peste negra: material de pesquisa da fotógrafa Alice Miceli, que está estudando os padrões das pandemias para um novo trabalho artístico. Arquivo pessoal
Por enquanto, talvez a obra que melhor represente esse momento não seja exatamente uma imagem de tragédia, mas outro ícone do Romantismo: Viajante Sobre o Mar de Névoa (1818), de Caspar David Friedrich. A figura solitária que vemos de costas sobre um pico rochoso contemplando uma paisagem nebulosa costuma ser evocada como sinônimo de um imaginário de incerteza e autorreflexão – nada mais parecido com o que vivemos agora.
Viajante sobre o mar de névoa (1818), de Caspar David Friedrich.
De Agostini / Getty Images
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