100 anos de Zuzu Angel
E 45 anos sem. Pedra fundamental da moda brasileira, a costureira (como preferia ser chamada) exportou as técnicas regionais do país que torturou e assassinou seu filho, bem como a matou.
Até o ano de 1970, Zuzu Angel era conhecida pelas estampas alegres de pássaros, flores e papagaios. A partir de 1971, porém, ela se torna não só a estilista mineira que ajudou a exportar a simplicidade e beleza brasileira para outros países, como também a ativista corajosa que denunciou as barbaridades do regime militar e usou todo holofote (inclusive os das passarelas) para perguntar sobre o paradeiro de seu filho — torturado e morto pelo Estado brasileiro sob regime ditatorial (1964-1985).
Exatamente hoje, se estivesse viva, Zuzu Angel comemoraria 100 anos. Além disso, 2021 marca igualmente os 45 anos que se passaram desde que ela também foi morta pelos governantes deste país — os mesmos que lhe tiraram seu filho. Abaixo, contamos e celebramos sua história pessoal e trajetória na moda:
Não se engane pelo sobrenome desta brasileira
No dia 5 de junho de 1921 nascia Zuleika de Souza Netto, em Curvelo, no interior de Minas Gerais. Zuzu, como ficaria conhecida, foi criada em Belo Horizonte, onde começou a trabalhar como costureira para amigas e fez parte da Fundação Pioneiras Sociais, onde costurava uniformes. O exercício logo virou profissão e as suas saias balonê passaram a despontar como a preferida entre as mulheres da elite mineira.
Zuzu Angel com os filhos Hildegard Beatriz, Ana Cristina e Stuart Edgar.Foto: Instituto Zuzu Angel
Depois, ela conheceu o estadunidense Norman Angel Jones, com quem se casou, em 1943, viveu até o ano de 1960 e teve três filhos: Stuart, Hildegard e Ana Cristina Angel Jones. Zuzu chegou a se mudar com a família para Salvador, na Bahia, e esse encontro com uma cultura afrobrasileira tão pulsante só ampliou o seu olhar em relação ao país. Mais tarde, quando se mudou para o Rio de Janeiro, ela se estabilizou, criando os seus três filhos sozinha e costurando na casa que era também o seu ateliê. O espaço ficou conhecido como Zuzu Saias, uma alusão a sua peça tão desejada.
Desde o início, a estilista se interessava pelos materiais banais, mas bastante presentes na vida dos brasileiros. Ela começou misturando a simplicidade do pano de colchão com os detalhes do gorgorão e, depois, a simplicidade do desenho com as referências riquíssimas do país. Enquanto os demais estilistas daqui só pensavam em reproduzir o que viam na Europa, Zuzu se se debruçava sobre as riquezas nacionais. Estavam presentes em suas coleções o folclore, a chita, o rendão, os babados, as fitas e os fuxicos, casados com estampas tropicais, caipiras ou de muitas outras regiões do Brasil. Dentre os materiais que começou a trabalhar, bem antes da maioria dos designers, estão as pedras mineiras, as conchas, as contas de jacarandá e o bambu.
A ascensão no exterior
Curiosamente, o seu nome começou a repercutir melhor no exterior do que por aqui. As estrangeiras que chegavam ao Rio de Janeiro não deixavam de passar em seu ateliê domiciliar. E, assim, Zuzu alcançou uma clientela invejável que contava com Yvone de Carlo, Joan Crawford, Kim Novak, Margot Fonteyn, Liza Minnelli, além das modelos Verushka e Jean Shrimpton.
Liza Minnelli com camiseta de Zuzu Angel.Foto: Instituto Zuzu Angel
Não à toa, foi por meio desse boca a boca estrelado, que, em 1970, ela foi convidada pela Bergdorf Goodman para apresentar uma coleção em Nova York. O desfile ficaria conhecido por Maria Bonita, onde ela apresentou vestidos de algodão colorido, que continham rendas do norte e várias referências ao cangaço.
A crítica de moda Eugenia Sheppard, em sua coluna no WWD, começou a rasgar elogios a brasileira e não demorou muito para as peças da estilista chegarem às araras da própria Bergdorf Goodman, além da Saks e da Neiman Marcus.
Look da coleção Maria Bonita.Foto: Instituto Zuzu Angel
Anjos tristes
A carreira de Zuzu no exterior ascendia, enquanto, no Brasil, o tempo escurecia com a política do horror, imposta pela Ditadura Militar. Stuart, seu filho mais velho, um opositor ferrenho ao governo da época era perseguido. Foi em 1970, que o estudante de economia e bicampeão carioca de remo sumiu. Ele entrou para a chamada lista de desaparecidos políticos, que continha nomes de militantes presos. Mas, na verdade, havia sido duramente torturado e assassinado pelo Estado brasileiro.
Anúncio em busca de Stuart Angel.Foto: Instituto Zuzu Angel
O mundo de Zuzu virou de ponta cabeça. A alegria saía e entravam, em seu lugar, o desespero e a tristeza pela falta do filho. Encontrar Stuart virou a sua maior obsessão. A estilista começou, então, a bater de porta em porta nos quartéis, a apelar para todos os órgãos de segurança, a suplicar pelo filho desaparecido com políticos (inclusive o próprio ex-presidente do Brasil, o ditador Ernesto Geisel) e a fazer denúncias à Anistia Internacional. Tudo, em vão. Zuzu Angel não conseguiu respostas e as suas últimas esperanças de encontrar Stuart vivo deram lugar a certeza da perda. A sua luta ficaria conhecida como a da mãe que desejava ao menos ter o direito de sepultar o filho.
No ano seguinte à morte de Stuart, foi com o seu próprio trabalho que ela decidiu se fazer ouvida. Zuzu foi recebida novamente em Nova York para uma coleção e insistiu que o evento se passasse no consulado brasileiro, que era também a residência do então cônsul Lauro Soutello. De um jeito sutil, mas bastante contundente, ela fez do espaço o palco de um desfile-protesto. A sua filha mais jovem, Ana Cristina, tocava e cantava a música Tristeza, de Vinícius de Moraes. E os seus reconhecíveis vestidos fluidos, sempre tão alegres, trouxeram no lugar das figuras belas do país, as imagens de tanques de guerra, de canhões, de pássaros enjaulados, de manchas vermelhas, de pássaros pretos e anjos entristecidos. O anjo, que viria a ser sua maior marca registrada, foi sua homenagem à Stuart.
O motivo de o desfile ter acontecido no consulado (que é considerado território brasileiro) foi compreendido, tempos depois, não só como uma provocação. Esta foi também uma maneira engenhosa de desviar da possibilidade de ser enquadrada na arbitrária Lei de Segurança Nacional, que poderia sugerir que ela estivesse ferindo a imagem da pátria no exterior.
No entanto, a crítica de moda presente entendeu bem o seu recado. “No dia seguinte, os jornais falaram justamente do que eu queria: ‘Designer de moda pede pelo filho desaparecido’. A coleção de protesto de uma mãe, como disseram, tinha o luto tanto nas braçadeiras pretas dos vestidos, quanto nas minhas olheiras. O Chicago Tribune disse como eu me vestia de preto, com cruzes amarradas na cintura, e um anjo de porcelana no pescoço. Eu continuarei a bater em todas as portas e anunciarei ao mundo, com a minha moda, o que está acontecendo no Brasil. É essa a minha arma”, disse em entrevista sobre as repercussões que leu sobre o desfile.
Moda como arma
Zuzu Angel foi costureira e ativista. As duas coisas juntas. Tanto, que passou a ser procurada pelos parentes de outros militantes desaparecido (e mortos pelo regime militar). Ela abriu uma loja no Leblon, em 1973, espaço que dizia ter criado com bastante sacrifício, durante uma fase muito difícil da vida. Ali, ela comentava, seria muito mais fácil de a encontrarem. Zuzu sabia que sua voz ativa era procurada por quem precisava de apoio, mas também estava na mira dos militares.
Zuzu Angel e modelo com vestido da coleção protesto.Foto: Instituo Zuzu Angel
Em uma das entrevistas que deu na época, afirmou: “Os torturadores que quiserem se confessar podem chegar. Eu já recebo visitas estranhas, gente que parece que vem comprar e fica de conversa. Principalmente mulheres, talvez as esposas deles. Devem querer ver de perto essa louca chamada Zuzu Angel, que sai por aí desafiando as armas de seus maridos, os seus poderes, as suas maldades, todos eles ocultos e protegidos pela impunidade, pelo silêncio imposto pelo Serviço Nacional de Informação, pelos que sabem de todos os meus passos, os meus telefonemas vigiados, tudo gravado, como se eu pudesse alguma coisa contra essa república-não-sei-de-quê.”
O silenciamento
Sabendo que era perseguida, Zuzu deixou um documento com conhecidos caso algo suspeito lhe acontecesse, afirmando que certamente esta teria sido mais uma obra dos assassinos de seu filho.
Na madrugada de 14 de abril de 1976, esse temido momento chegou. Depois de uma noite com amigos, Zuzu dirigia seu carro, de volta para casa, e entrava no túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. Ao sair, um outro veículo não identificado a fechou e ela perdeu a direção, bateu em uma mureta e capotou para fora da pista. Zuzu Angel, a costureira, mãe e ativista, morreu na hora. Hoje, o túnel leva o seu nome como uma forma de homenagem.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, instituída pelo então governo Dilma Rousseff (presidente que também foi presa e torturada pela ditadura militar), confirmou a participação do Estado Brasileiro na morte de Zuzu Angel.
Em 2019, a filha de Zuzu Angel, a jornalista Hildegard Angel, conseguiu finalmente as certidões de óbito de sua mãe e de seu irmão, Stuart, com as mortes identificadas como “causadas pelo Estado Brasileiro, no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”. O espaço do local de sepultamento de Stuart, porém, segue vazio, porque a mãe nunca pode embalar o filho — como cantou Chico Buarque, em Angela, música que compôs em homenagem à costureira.
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