À moda delas

Uma nova geração de estilistas traz a esperança de que o futuro da direção criativa se torne mais feminino e, com isso, chegue a vez das mulheres liderarem um novo capítulo da história da moda.


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Uma Coco Chanel vale por quantos Paul Poirets, Cristóbal Balenciagas, Hubert de Givenchys, Christian Diors, Pierre Cardins, Pierre Balmains e Yves Saint Laurents? A moda sempre foi um território de interesse e atuação majoritariamente feminino, mas sua história, assim como a da civilização patriarcal ocidental no geral, é marcada por uma constrangedora maioria de homens na lista dos estilistas mais importantes de todos os tempos. Frustrante, mas não surpreendente.

Não é que só existiu Coco Chanel até hoje. Tivemos Elsa Schiaparelli, seu rosa choque e sua moda artística surrealista; Vionnet e seus drapeados; Mary Quant e sua minissaia; Vivienne Westwood e o punk para chocar a burguesia fashion; Rei Kawakubo e Miuccia Prada, de diferentes maneiras, quebrando o paradigma da beleza, e, o mais importante, negando a roupa como instrumento de embelezamento da mulher sob o ponto de vista único de sedução social e sexual.


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Chanel, verão 2021.Foto Cortesia | Chanel

É um bloco polpudo de exceções, de gênias que, de tempos em tempos, conseguiram furar a bolha da hegemonia masculina. Mas é isso: a liderança, por todas as óticas, livros e contagens, é dos homens, inclusive na moda recente – um estudo de 2018 da consultoria McKinsey & Company mostrou que só 14% das principais marcas de moda com relevância mundial têm mulheres na direção criativa. Vale lembrar que, até pelo menos os anos 1960, a concorrência foi dizimada por uma estrutura social que, estrategicamente, considerava o trabalho fora de casa uma ocupação mal vista para as mulheres. Até o fim do século 17, era inclusive ilegal que uma mulher fosse modista profissional para a aristocracia da época. De uma maneira ou de outra, sem elas (ou nós), a moda não seria nada.

Por outro lado, é verdade que estar no topo da cadeia alimentar da criação das roupas que vão expressar, de maneira visual os valores e desejos das pessoas, é mais do que poderoso: pode ser revolucionário. Num momento crucial de reanálise global da estrutura de sociedade, as mulheres, pela primeira vez, têm chances reais de tomar a revolução pelas mãos e abrir um novo e diferente capítulo da moda (será que o caráter burguês superficial, esnobe, alienado e excludente da moda não é reflexo do olhar do olhar de quem sempre a liderou?).

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Dior, verão 2021.Foto Cortesia | Dior

No horizonte, se destaca a abordagem visionária de marcas dirigidas por mulheres como Stella McCartney, Donatella Versace e Miuccia Prada (agora em parceria com Raf Simons, será que vale meio ponto?), associada a novos talentos promissores, desde Simone Rocha com sua linguagem disruptiva da liberdade de exercer uma feminilidade única e excêntrica à superjovem Marine Serre, ganhadora do prêmio LVMH de 2017, com uma moda engajada e cheia de looks em celebridades no currículo.

O movimento ganha força com as duas das mais influentes e históricas marcas de moda do mundo sob direção feminina: a italiana Maria Grazia Chiuri, há quase cinco anos na Dior, e a francesa Virginie Viard, desde 2019 na Chanel. “Ambas estão no papel de sucessoras e de representar uma nova mulher. Assumem a direção num momento de movimentos como o #metoo e de outros importantes movimentos feministas. Elas encabeçam uma nova visão da moda feminina”, diz Mariana Rocha, consultora e professora de moda da faculdade Santa Marcelina.

Demorou para chegar a elas, né? Imagina então passar o século 18, o 19 e pelo menos metade do 20 vestindo majoritariamente o que um homem achou melhor para você? “O fato de uma cadeia toda confiar mais numa visão masculina para criar uma roupa feminina é algo que a gente tem que pensar: por que isso ainda acontece? Vejo várias mulheres assumindo lugares de liderança na moda e tenho esperança de que o olhar da mulher sobre o corpo feminino seja, enfim, tão respeitado quanto o do homem.” Essa é a reflexão da estilista Rafaella Caniello, criadora da marca Neriage, um dos nomes que representam esse momento de ressignificação da moda – de ajustar seu radar para captar o tal do espírito do tempo, que mais do que refletir o presente, aponta para o que desejamos. Nisso, muitas grifes comandadas por mulheres estão dando uma lavada.

MODA SEM SANGUE

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Stella McCartney, verão 2021.Foto Cortesia | Stella McCartney

Quando Stella McCartney lançou sua marca, vinte anos atrás, ninguém acreditava que uma grife de luxo conseguiria prosperar sem usar couro. Imagina, uma it-bag de plástico? Bom, ela foi a pioneira da moda de luxo vegana, lançou it-bags e sapatos de couro ecológico e segue como uma das empresas mais influentes do mercado. Stella é uma espécie de Mother of Dragons do que se anuncia o futuro da moda: com causas em prol do bem-estar coletivo. “Hoje em dia, um dos grandes desafios que a gente tem não é fazer mais uma blusa bonita. Nós temos muitas blusas bonitas por aí, inclusive dentro dos nossos armários. Mas usar uma roupa sustentável, feita por meio de uma cadeia respeitosa, uma roupa que não polua, essa é uma luta que vale a pena hoje em dia”, avalia Mariana.

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Chloé, inverno 2021.Foto Cortesia | Chloé

Na área da sustentabilidade, um dos exemplos mais recentes e promissores é o da uruguaia Gabriela Hearst, cuja marca homônima virou case de sucesso de design de luxo responsável, e que acaba de estrear na direção criativa da Chloé. Aqui, não tem essa de perfumaria de marketing vazio de sustentabilidade: mais da metade da seda é de procedência orgânica (o que garante comércio justo para os produtores), mais de 80% do cashmere foi reciclado, e todos os fornecedores de tecidos e aviamentos são certificados.

Grande expoente da moda internacional, a francesa Marine Serre, aos 28 anos, mostra, a quem ainda tiver dúvidas, como criar uma marca de moda consciente da necessidade de poluir e consumir menos não é impeditivo para um design vanguardista, com toques futuristas (ou seja, esqueça essa ideia de que moda sustentável é moda boho, hippie), sucesso comercial (pop-up stores em Paris, Londres e China, e pontos de venda nas principais multimarcas e e-commerces internacionais) e looks usados por estrelas do calibre de Beyoncé, Dua Lipa e Adele.

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Marine Serre, inverno 2021.Foto Cortesia | Marine Serre

No Brasil, Flavia Aranha é a grande pioneira da moda com sofisticação de design e responsabilidade social, num nível de comprometimento que vai do tingimento natural e artesanal ao uso exclusivamente de algodão orgânico ou sustentável, passando pelo contrato de mão de obra composta quase que exclusivamente de mulheres artesãs e pequenos produtores. “Criação, para mim, é muito sobre processo, não é só sobre o produto final. Admiro muito como a Flavia trabalha isso”, comenta Rafaella, fazendo questão de incluir o trabalho da colega estilista junto com os de Miuccia Prada e Phoebe Philo, as diretoras criativas mulheres que mais admira. Mais uma característica dessa nova moda, que não enxerga outros talentos como ameaças, mas como oportunidades de parceria.

DIVERSIDADE, INCLUSÃO, FEMINISMO, ANTIRRACISMO

Igualdade no respeito, no tratamento e nas oportunidades, independentemente das diferenças de gênero, sexo, raça, condição social ou econômica. A luta por uma sociedade justa, humanista, plural e colaborativa é urgente. Por isso, quando Maria Grazia Chiuri estampa na camiseta da Dior a frase “We should all be feminists”, frase da escritora e ativista feminista negra Chimamanda Ngozi Adichie, em seu desfile de estreia na marca, em 2016, ela ganha uma relevância como diretora criativa, para muito além da roupa. Ainda que, até agora, não tenha lançado nenhuma coleção considerada esteticamente surpreendente, seu discurso traz inovação e modernidade, com um alcance avassalador de uma marca do porte centenário e icônico da Dior. Virginie Viard vai pela mesma linha de tornar a mulher da Chanel mais conectada com a realidade, com o mundo que a cerca, por meio de uma moda mais simples, menos rebuscada. Nessa mesma seara, destaque para a inglesa Phoebe Philo, cuja influência minimalista elegante foi tão grande na Céline que, três anos após deixar a marca, ainda coleciona órfãos de seu lifestyle e criações.

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Rihanna.Foto: Getty Images

Mais do que cantora, uma criadora de desejos de moda engajados com a causa do feminismo negro, do antirracismo e da pluralidade estética, Rihanna é um dos nomes mais influentesna liderança fashion atual. Nem mesmo o anúncio de uma pausa indefinida na produção de sua marca de roupas, a Fenty (comprada há dois anos pelo grupo LVMH) tira dela esse crédito. Afinal, já sabemos, a moda que importa de verdade é mais sobre comportamento do que sobre roupa em si.

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