Moda televisionada

Com o cruzamento anabolizado entre áudio e vídeo na pandemia, cresce a atenção sobre o trabalho de figurinistas e stylists na TV brasileira.





A pandemia aumentou a sede pelo audiovisual e, contrariando as previsões sobre a supremacia do streaming, a televisão soube se renovar na feira da audiência. Com reprises de novelas, novas dramaturgias ou reality shows, é perceptível a retomada de influência desta plataforma nos debates sociais, inclusive na moda. Com isso, a atuação de figurinistas e stylists ganha destaque e parece se articular melhor em uma área historicamente desvalorizada.

A verdade é que fatalismos quase nunca se aplicam aos meios de comunicação. O cinema não matou o rádio, o digital não fez o impresso sumir e o streaming não derrubará a TV. As reprises de novelas são um sucesso – algumas com maior audiência do que nas exibições originais –, os telejornais bateram recordes e o Big Brother Brasil, bom, mesmo quem não assiste, provavelmente sabe alguma coisa.

A moda também continua forte nas telas. A quantidade de perfis no Instagram focados em looks de novela e celebridades é um indício de como a televisão ainda tem reflexo no consumo e no guarda-roupa de muita gente. Um exemplo recente, é o infame lenço de Carla Diaz, no BBB. Não foi trabalho de uma figurinista, porém denota o poder da linguagem televisiva.


“A gente tem um ótimo termômetro chamado 25 de março. Eu sei que estou gerando consumo”, afirma a figurinista Cristiane Cândido, que trabalhou 12 anos no SBT e também passou pelas emissoras Globo, Band e Record. Segundo ela, até mesmo as joalherias, que não têm um produto acessível, demonstram interesse em estar na tela, especialmente na dramaturgia. HStern e Antonio Bernardo, por exemplo, sempre forneceram peças para a Rede Globo para dar veracidade ao figurino de personagens abastadas.

Figurino é arte

Apesar da importância de figurinistas para a imagem de moda, é comum confundir sua atuação com a de um stylist. O compromisso do figurino é com a narrativa, seja ela de um filme, série, novela, programa de auditório ou telejornal. Já o do styling, com a imagem de moda pura e simplesmente. O que não quer dizer que não tenha vez na televisão. Com a suspensão de tapetes vermelhos e eventos sociais, o olhar sobre muitas apresentadoras ficou ainda mais focado no que elas vestem. Hoje, postar fotos do look assinado antes de entrar no ar é comum. Sabrina Sato e Luciana Gimenez, para citar algumas, o fazem com frequência.

Quem começou a associar etiquetas de peso às apresentadoras foi o stylist Thidy Alvis com Adriane Galisteu, há mais de 20 anos, quando ela comandava o Superpop, na RedeTV!. “As marcas não estavam acostumadas a emprestar roupas para celebridades na televisão. Não havia registro de um programa que tivesse vestido sua apresentadora, ao vivo, com um look Reinaldo Lourenço, desfilado naquela manhã, na São Paulo Fashion Week”, conta ele que, além de Galisteu, tem Eliana e Fernanda Keulla como clientes fixas.

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As atrizes Taís Araújo, Regina Casé e Adriana Esteves, protagonistas da novela Amor de Mãe.Foto: Globo/João Cotta

“As mulheres falavam: quero ver o que a Adriane vai usar hoje. Ela podia aparecer com um look customizado Armani ou com Havaianas e um jeans rasgado. A telespectadora gostava de ser surpreendida”, continua Thidy. “Isso ainda existe e temos retorno. Antes, nos mandavam cartas. Hoje, a resposta é imediata com as redes sociais.”

Para Marie Salles, figurinista responsável pela novela Amor de Mãe, da Globo, que bateu recorde de audiência nas suas últimas semanas, o Instagram ajudou a pulverizar a atenção. “A televisão continua sendo uma vitrine, inclusive dentro das mídias sociais. As pessoas estão consumindo muito mais TV, seja aberta ou fechada. Vejo muitos adolescentes assistindo às novelas no streaming e comentando os estilos dos personagens”, opina.

Com tamanha polifonia, as figurinistas precisam estar conectadas a diferentes frentes. “Os figurinos de tramas contemporâneas se alimentam tanto do lançamento de grandes marcas nacionais e internacionais, quanto de influencers e pequenos produtores de moda que ganharam visibilidade nas redes”, diz a figurinista Natália Duran, que trabalha na novela Quanto Mais Vida Melhor, a primeira 100% concebida pela Globo durante a pandemia. A previsão de estreia é para o segundo semestre deste ano.

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As personagens Bebel (Camila Pitanga) e Jade (Chico Diaz) na novela Paraíso Tropical.Foto: Globo/João Miguel Jr.

Achou que eu não ia voltar?

Na primeira fase de lockdown, diferentes plataformas de streaming disponibilizaram conteúdos de graça ou com descontos. A previsão não era boa para a televisão: já havia um movimento de evasão, principalmente dos mais jovens, e a produção teve de ser interrompida, ficando praticamente restrita aos telejornais.

“Começou a ter reprise de novela. A Rede Globo parou, isso nunca aconteceu”, conta Karla Monteiro, figurinista e conselheira da FIAR, Figurinistas e Associados do Rio de Janeiro. “Foi ali que entendi o tamanho da pandemia. A TV tem esse poder de te colocar no mundo”, continua.

“No fim das contas, é o mesmo consumo audiovisual. Com o tempo, só mudou o tipo de tela e a portabilidade. A influência é a mesma.” – Nathalia Anjos

No Brasil, há uma relação histórica de afeto com a televisão não só de quem assiste, mas também de quem faz. Quando se conversa com uma figurinista com anos de experiência em novela, é evidente sua paixão pelo processo em um ritmo quase industrial. O guarda-roupa de uma obra de teledramaturgia pode ter em torno de 50 mil itens. Para Salve Jorge, exibida entre 2012 e 2013, Karla fazia uma média de 127 trocas de roupa por dia.

“A gente fez uma conta uma vez: uma novela é mais ou menos o equivalente a se trabalhar em dois longas-metragens por semana, em relação ao volume de looks”, detalha. “Na última que fiz na Globo, Além do Horizonte, eu tinha 26 camareiros, 6 assistentes e gravava 5 frentes por dia.”

A televisão foi o primeiro dispositivo que introduziu o audiovisual a milhões de casas. Para os mais velhos, existe uma ligação de costume e credibilidade. Para os mais novos, que se dividem entre YouTube, TikTok e Netflix, a pandemia trouxe uma necessidade de explorar o maior número possível de frentes de conteúdo.

“As pessoas veem o produto na TV e querem aquilo que está lá, mas a melhor estratégia, muitas vezes, é estar na televisão, no Instagram e no YouTube, em diferentes lugares.” – Wládia Goes

“No fim das contas, é o mesmo consumo audiovisual. Com o tempo, só mudou o tipo de tela e a portabilidade. A influência é a mesma”, explica Nathalia Anjos, coordenadora dos cursos de moda e beleza do Senac e especialista em neurociências e comportamento pela PUC-RS. “O ritual de assistir coisas para se informar e se divertir faz parte de todas as gerações”, continua ela.

“A internet fez mais sucesso ainda quando começou a ter mais vídeo. Quando vemos uma imagem estática, o cérebro a concebe em um universo que se move”, afirma Nathalia, que também é autora do livro O Cérebro e a Moda e já trabalhou como figurinista e diretora de arte. “A televisão já entrega a narrativa pronta, acaba sendo mais fácil e atraente. Aí é que está o seu poder”.

Senso comum

O alcance da TV é exemplificado quando um personagem cai no gosto popular e o movimento passa a ser notado em vitrines e, atualmente, nos feeds das redes sociais. Exemplos não faltam: desde a onda da pulseira-anel e delineador marcado da personagem Jade, interpretada por Giovanna Antonelli em O Clone (2001), até a logomania na época de Avenida Brasil (2012), graças à icônica Carminha, personagem de Adriana Esteves.

Avenida Brasil tinha, com Carminha, o uso dos logos, o tamanho das correntes, aquele branco superbem cortado. Você vai catando os elementos e eles transmitem muita coisa daquele contexto do país”, diz Cristiane. A bolsa que a vilã sempre carregava, dourada e coberta por monogramas, era assinada por Michael Kors, que soube aproveitar o rebuliço do momento e, dentre outras razões, inaugurou a primeira loja no Brasil naquele ano (hoje são duas, além de dois outlets).

Na época, o cenário era de entusiasmo e expansão econômica e social, daí o sucesso dos monogramas que conotam sucesso e luxo. Hoje, a febre com logos de grifes, como Louis Vuitton, Versace e Balmain, se conecta mais a um outro significado. A marcação também transmite estabilidade e normalmente tem bom desempenho comercial, dois pontos desejados em um momento de crise.

Segundo Cristiane, o figurino normalmente não é feito para ser a primeira coisa que desperta a atenção – apesar de ser a fala não dita e um importante instrumento dramático. Quando ele cria alvoroço, é muito menos sobre as peças e mais sobre quem assiste. “A TV talvez seja onde a gente mais observa um senso comum, principalmente na novela. Tem alguma coisa em um personagem de sucesso que toca a sociedade e a roupa faz muito parte disso”, explica a figurinista.

Em resumo, a TV vende bem. Porém, para as marcas, não basta vestir as personagens de Marina Ruy Barbosa e Giovanna Antonelli em uma cena para garantir o lucro. “As pessoas veem o produto na TV e querem aquilo que está lá, mas a melhor estratégia, muitas vezes, é estar na televisão, no Instagram e no YouTube, em diferentes lugares”, explica a figurinista e produtora de moda Wládia Goes, que trabalhou 15 anos na TV Bahia (afiliada local da Globo) e, hoje, tem a dupla As Figurinistas, com Flávia Botelho. “Antes, você colocava um brinco na apresentadora e todo mundo já queria comprar na hora. Agora, a estratégia precisa ser mais dinâmica”, finaliza.

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